Catraqueanas

Origem, Identidade e os dois lados do muro

Gustavo Mittelmann
4 de abril de 2017

Esse espaço deveria falar de inovação, tecnologias, audiovisual e internet. E eu tinha um texto pronto para postar ontem relacionando os grandes telões verticais ao lado do palco no Lollapalooza e a coluna que escrevi no dia 13 de fevereiro falando dessa tendência. Mas ontem o metrô explodiu na Rússia, e achei que já estava na hora de falar sobre um assunto que vem martelando na minha cabeça há algum tempo. Hoje, o ataque químico na Síria me fez ter certeza de que preciso falar de algo mais relevante; que não interessa se as telas estão de pé, se os corpos estão deitados no chão.

“Me identifiquei com ele na difícil posição de ter orgulho das origens e, ao mesmo tempo não me identificar com a comunidade na qual deveria estar inserido”

Há alguns meses, participei de um encontro de 20 anos da formatura da minha turma do Colégio Israelita Brasileiro de Porto Alegre. Saí de lá tomado por frustrações e questionamentos. Lembrei do meu avô, que, há quase um século, saiu de uma de nossas sinagogas dizendo que jamais colocaria os pés lá de novo, porque aquilo se tratava de negócios e não de religião. Me identifiquei com ele na difícil posição de ter orgulho das origens e, ao mesmo tempo não me identificar com a comunidade na qual deveria estar inserido. E não só por observar essa aspiração quase maçônica de funcionamento.

Cegueira unilateral

Antes que você se pergunte qual a relação da minha crise de identidade com os atentados, eu explico: está no ódio, na intolerância, na falta de senso de justiça e na cegueira unilateral. É absolutamente inadmissível que a segunda geração depois dos guetos e do holocausto se posicione de forma confortável do lado fora do muro. É revoltante ver um médico judeu pedir uma estátua ao invés de condenação para outro médico, soldado do exército israelense, que atirou contra a cabeça de um palestino ferido e rendido.

“O dever de todo judeu dessa e de todas as próximas gerações é questionar; é destruir os muros e romper as barreiras”

É desencorajador ver estes, que são descendentes como eu, louvarem o muro de Gaza, o muro de Trump ou qualquer outra forma concreta ou abstrata de segregação. Ao contrário do que ouvi das mesmas pessoas da minha turma, não é dever moral de todo judeu defender o Estado de Israel. O dever de todo judeu dessa e de todas as próximas gerações é questionar; é destruir os muros e romper as barreiras. É enxergar a questão territorial como tal, e não como uma disputa religiosa, porque não é.

Não nos regozijemos, vaidosos, com os milhões de russos, milhares de etíopes e judeus de outras nacionalidades acolhidos por Israel. Um povo tantas vezes expatriado tem que ter a humanidade de olhar para os outros e não apenas para si; perceber que também está negando pátria a seres humanos.

Não sejamos arrogantes de achar que o fato de ter os Estados Unidos como padrinho e financiador desde o surgimento, faz com que Israel seja sempre e indubitavelmente o lado certo. Este é o lado que interessa a eles até o momento. Como assim já foram Saddam Hussein e até mesmo o Estado Islâmico. Questionemos. Sempre.

“A bagagem que carregamos deve nos fazer aprender e crescer, e não ser desculpa para replicar qualquer malefício que tenhamos sofrido”

Eu tenho muito orgulho de onde venho mas, para mim, e certamente pro meu avô, judaísmo não é um pacote ideológico, político ou territorial. De fato, não considero nem mesmo o aspecto religioso do judaísmo o principal. O que deveria nos unir são os mais de cinco mil anos de uma cultura de superação, aceitação, integração e diálogo. A bagagem que carregamos deve nos fazer aprender e crescer, e não ser desculpa para replicar qualquer malefício que tenhamos sofrido. A história está feita, mas o futuro é nossa responsabilidade. Por isso, repito: eu tenho muito orgulho de onde venho; mas não gosto do caminho que estão seguindo. Afinal, não existe lado certo em um muro.