Geórgia Santos

Aquela voz tamanha

Geórgia Santos
9 de novembro de 2022

Na adolescência, o meu primeiro namoradinho ria de mim porque eu ouvia o que ele chamava de música de velho. Um bobo, ele. Ninguém era velho há 20 anos. Mas eu entendo de onde vinha o estranhamento. Naquele período da vida, eu só não ignorava meus contemporâneos quando me equilibrava em cima de um salto alto e me espremia dentro de uma minissaia.

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Sozinha, sem maquiagem, eu ouvia apenas Chico, Bethânia, Caetano, Gil e Gal

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Eu lembro de ouvir o sussurro de Não Identificado ao me apaixonar pela primeira vez, por esse mesmo namoradinho que preferia ouvir System of a Down, e não entender muito bem o porquê de aquela  canção me comover daquela forma. Eu lembro de ensaiar Canta Brasil com exuberância para a semana da pátria, tentando emular uma expressão comovida e uma beleza que só vem com a idade e a rebeldia.

Eu lembro de me esforçar para conseguir cantar Festa no Interior sem desafinar, com seus babados, xotes e xaxados e me frustrar por não ser a melhor cantora do país, ignorando qualquer possibilidade de, talvez, só talvez, ter estabelecido um padrão muito alto. Mas eu também lembro de me redimir quando foi a vez de cantar Samba Rasgado, aquele cantinho no coração que até hoje gosto de imitar. Afinal, quem é que não admira uma cabrocha bonita, cantando e sambando? Aliás, eu lembro do primeiro carnaval com álcool de que participei e todos cantavam Balancê. Tá bem, era uma versão menos nobre, mas lá estava Gal.

Eu lembro, ainda, de causar surpresa ao escolher Divino, Maravilhoso como a minha canção de formatura no Ensino Médio, porque naquela época não era preciso estar atento e forte. Mas eu sempre soube que se trata de uma canção atemporal, feliz ou infelizmente. Ou não é disso que precisamos agora?

Aliás, eu lembro de levar essa mesma canção para a faculdade, com os olhos firmes para este sol e para esta escuridão, e passar noites inteiras ouvindo ao lado do meu melhor amigo. Nós bebíamos e dançávamos e fumávamos riscando DVDs com o uso, sabendo e ao mesmo tempo ignorando que tudo era perigoso, que tudo era divino e maravilhoso. Ali eu lembro de também ouvir Gabriela e me empedrar, consciente de que nasci assim e serei sempre assim.

Eu lembro de pensar que queria que meu casamento fosse igual a Chuva, Suor e Cerveja. A gente se embala, se embora, se embola, só para na porta da igreja. A gente se olha, se beija e se molha de chuva, suor e cerveja. Eu lembro de ser arrebatada pela potência de Vaca Profana e amadurecer com o leite das assombrosas tetas. Assim como lembro de agora, de respeitar minhas lágrimas, mas muito mais minha risada. E eu lembro por causa da voz dessa mulher sagrada.

Mas eu entendo de onde vinha aquele estranhamento do namoradinho apenas hoje, porque naquela época eu não entendia. Não entendia porque nunca vi essas pessoas como anteriores à mim, mas como parte de tudo o que a gente é. No presente, não no passado. E Gal, bom, Gal jamais seria anterior à mim, porque sempre esteve no futuro, mais livre do que toda a minha geração, por isso aquela voz tamanha.

Ela cantou tudo e todos. Ela provocava aquele povo com casaco de general, cheios de anéis, aos mostrar a virilha no biquíni vermelho da capa de Índia, em 1973. Ela libertava todas as mulheres e afrontava o conservadorismo quando usava batom vermelho e cantava com um violão na mão e pernas abertas. Ela segurava a onda tropicalista no osso quando os outros doces bárbaros estavam exilados em Londres. Ela fumava o que queria nas dunas que ficaram com seu nome. Ela enfrentava o autoritarismo na base do grito, atenta e forte, sem tempo de temer a morte. Ela escancarava a hipocrisia com o seio à mostra enquanto conclamava o Brasil todo a mostrar a cara, em 94. Ela foi nossa primeira diva pop, a Gracinha, a Gaúcha do Giló. Gal foi Legal, Índia, Tropical, Baby, Profana, Bem, Mal, Barato, Total, Plural, Fa-Tal. 

Gal Costa morreu hoje, dia 09 de novembro de 2022, aos 77 anos. Eu queria fazer uma canção pra ela, singela, brasileira, mas não sei como. Por isso, escrevo uma ode com a minha voz adolescente, juntando pedaços do quebra-cabeças da minha formação emocional. Não sei, comigo ainda não vai tudo azul, mas contigo, Gal, vai tudo em paz.

Geórgia Santos

Nada de leite mau para os caretas (um ensaio sobre intolerância)

Geórgia Santos
4 de setembro de 2017

Meu amado marido me deu um disco da Gal. O Profana tem na primeira faixa uma das minhas músicas favoritas de todos os tempos: Vaca Profana, de Caetano Veloso. Ouvi a canção. Ouvi de novo. E de novo e de novo. Eu amo tudo a respeito desse som e do que ele diz. Comecei a pensar no porquê quando a letra respondeu à minha pergunta. Sim.

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Respeito muito minhas lágrimas

Mas ainda mais minha risada

Inscrevo, assim, minhas palavras

Na voz de uma mulher sagrada

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Sim. É isso. Mas vai além. Eu gosto do tom de berro e desabafo tão atuais. Em tempos de ódio e intolerância, é difícil ser amoroso e tolerante, eu confesso. E essa canção me dá a licença poética que eu preciso.

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Dona das divinas tetas

Derrama o leite bom na minha cara

E o leite mau na cara dos caretas

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Sim. Derrama o leite mau na cara dos caretas. Conforme vou ouvindo a música que consegue ser baiana e global ao mesmo tempo, mais eu cedo ao caminho fácil da intolerância. A canção vai me abrindo as portas da intransigência e eu não quero ser legal com os caretas. Quero que eles provem do próprio veneno.

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Vaca de divinas tetas

La leche buena toda en mi garganta

La mala leche para los “puretas”

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Sim. Quero que eles provem do leite mau. Mas será que quero, mesmo? Será que intolerância combate intolerância? Tenho a impressão que só funciona na matemática essa história de que “negativo” com “negativo” dá “positivo”. Conforme a música vai evoluindo, Gal canta sem ressentimentos e vai acalmando minha sanha.

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Caretas de Paris e New York

Sem mágoas, estamos aí

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Sim. Caretas de Sampa e Porto Alegre, sem mágoas, estamos aí. Tá, talvez não tão sem mágoas assim, mas acho que não vou desistir de me livrar delas. Não desistirei de me livrar das mágoas nem da intolerância. E conforme a agulha vai correndo o vinil, mais me convenço de que precisamos de muito amor e paciência pra resistir a essa batalha barulhenta.

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Dona das divinas tetas

Quero teu leite todo em minha alma

Nada de leite mau para os caretas

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No final das contas, nós, não caretas, também somos cheios de falhas e inconsistências. Temos nossos vícios e cometemos nossas injustiças. Ainda não aprendemos a tolerar o diferente, mesmo que nos cubramos de razão em nome do bom senso e, vejam só, da tolerância. Também sabemos ser hipócritas. Também nos deixamos cegar. A gente também sabe ser careta.

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De perto, ninguém é normal

Às vezes, segue em linha reta

A vida, que é “meu bem, meu mal”

Deusa de assombrosas tetas

Gotas de leite bom na minha cara

Chuva do mesmo bom sobre os caretas