Voos Literários

Por um feminismo sem preconceito etário

Flávia Cunha
7 de março de 2021

O preconceito etário ainda é uma realidade em pleno século 21 relacionado, principalmente, às mulheres.  A cantora Madonna, de 62 anos, é  um desses alvos, O motivo das criticas? Querer seguir com o mesmo comportamento,  associado à sensualidade, que teve desde o início de sua bem-sucedida carreira.

Mas já foi bem pior.  Vejamos esse texto do século 19:

 

“Uma jovem tem ilusões demais, é inexperiente demais e o sexo é cúmplice demais de seu amor, para que um rapaz possa sentir-se lisonjeado; ao passo que uma mulher conhece toda a extensão dos sacrifícios a serem feitos. Enquanto uma é arrastada pela curiosidade, por seduções estranhas às do amor, a outra obedece a um sentimento consciencioso. Uma cede, a outra escolhe.”

O trecho acima é do clássico A Mulher de Trinta de 30 Anos, de Honoré Balzac, escrito entre 1829 e 1842.  Nesta época, não era comum haver heroínas românticas com a idade mencionada no título da obra. Sendo assim, o escritor francês prestou uma homenagem ao elogiar a “maturidade” feminina. Ao longo dos tempos, seu nome ficou associado ao termo balzaquiana, para referir-se a mulheres com mais de três décadas de vida.

Visão datada

Se no século 19 Balzac foi considerado lisonjeiro por valorizar a beleza e qualidades das mulheres após ultrapassarem a casa dos 20 anos, nos dias atuais os argumentos do autor soam descabidos. Primeiro, por fazer comparações diminuindo as jovens para enaltecer as maduras. Também é curioso que o rapaz mencionado no texto como muito jovem tem ele mesmo… 30 anos! A partir disso, podemos perceber que a passagem do tempo é avaliada de forma diferente, de acordo com o gênero.

Velhice como defeito

Evidente que nos dias atuais o conceito de velhice mudou, até porque a expectativa de vida é maior. Porém, muitas mulheres jovens, e em desconstrução para temas como luta antirracista e a causa LGBTQUIA+, ainda falham no que diz respeito ao preconceito etário. Não é incomum ouvirmos entre grupos femininos com faixa etária entre 20 e 30 anos comentários depreciativos sobre os próprios corpos e comportamentos, associando-os a uma suposta velhice precoce.

Feminismo x Velhice

Além disso, há uma lacuna na luta feminista nos direitos das mulheres idosas e um silenciamento sobre a liberdade dos corpos na maturidade. Dentre as causas para esse mau comportamento feminino e feminista, estaria a de que jovens  acabam cedendo aos padrões sociais. O discurso da indústria da beleza associa juventude aos ideais de perfeição e consequente empoderamento corpóreo, relegando as mulheres mais velhas às sombras. Saiba mais a respeito dessa visão aqui.

Sabedoria que distancia da luta

No artigo Feminismo e Velhice, a professora de Antropologia Guita Grin Debert apresenta um argumento diferente. A especialista destaca que, ao longo dos últimos anos, houve uma mudança na percepção da velhice, buscando associá-la a fatores positivos. Sendo assim, poderia haver um entendimento entre as feministas de que as mulheres mais velhas deveriam ser sábias e, portanto, mais dóceis:

“A raiva e a fúria necessárias à luta ficam barradas quando o distanciamento, a neutralidade, a imparcialidade próprias da sabedoria passam a ser uma característica da boa velhice, porque se impede aos velhos galvanizarem essas emoções e sentimentos na luta por mudanças sociais.”

Para saber mais sobre envelhecimento, sugiro a leitura do livro A Reinvenção da Velhice, da antropóloga Guita Grin Debert.

Reforçando a visão da antropóloga, considero que a raiva em mulheres mais velhas é julgada como uma atitude ranzinza. Já mulheres mais jovens seriam consideradas rebeldes, libertárias. Dessa forma, ainda é necessário que haja a conscientização das feministas para bandeiras associadas à maturidade e envelhecimento. A necessidade aumenta em um país como o Brasil, onde reformas como a da Previdência nos indicam um futuro muito preocupante para todos, incluindo as mulheres.

Avós da Razão

Além disso, em um feminismo realmente libertador e inclusivo, é preciso lutar pelo fim do preconceito etário. O ageismo, como também é chamado, é completamente descabido nos dias atuais. As Avós da Razão, youtubers idosas que alcançaram grande sucesso e visibilidade, respondem, neste vídeo, sobre o questionamento de uma fã sobre se aos 40 anos já pode considerar-se velha.

Imagens Site oficial Madonna/Reprodução

Voos Literários

Como parar o tempo

Flávia Cunha
31 de julho de 2019

Um aplicativo de celular que simulava o envelhecimento a partir de fotos atuais dos usuários movimentou as redes sociais nesse mês de julho. Deixando de lado a discussão sobre invasão de privacidade virtual, o saldo que fica é de muitos jovens horrorizados com as rugas e papadas que terão (ou não) com o passar dos anos. 

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Mas o que existe por trás do pavor de ficar velho?

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Em uma sociedade em que o padrão é a juventude eterna, resolver não se submeter a padrões estéticos acaba sendo um ato de rebeldia. Isso acontece atualmente com a Xuxa, apresentadora por quem sempre nutri uma complacente aversão. Acontece que a Rainha dos Baixinhos resolveu deixar que a passagem do tempo ficasse explícita no seu rosto. E tem chovido haters criticando a aparência de Xuxa, desde o cabelo muito curto até as rugas, normais em uma mulher de 56 anos. Ao entrar na brincadeira do aplicativo de envelhecimento, a apresentadora deu uma alfinetada nos críticos ao comentar:

Gente… resolvi não fazer mais fotos com filtros…. essa sou eu … pelo menos é assim que muita gente me vê “.Ao perceber como o envelhecimento provoca um desconforto em muitas pessoas, fui em busca de três livros que podem nos provocar reflexões sobre o assunto.

Em Como Parar o Tempo, do escritor britânico Matt Haig, nos deparamos com a trajetória de Tom, um homem de mais de 400 anos com a aparência de 40. Como isso é possível? Ele é um tipo de ser humano que envelhece mais lentamente do que o normal. O que poderia ser a felicidade de muitas pessoas obcecadas com a própria imagem, para Tom transforma-se em uma maldição. Perseguido a partir da época da Inquisição por acreditarem que sua juventude eterna era obra de bruxaria, o personagem chega ao século 21 extremamente abatido mentalmente, mostrando que a vitalidade e a vontade de viver precisam ir muito além da aparência. Em determinado momento da narrativa, o personagem Tom, desiludido com tudo, nos brinda com o seguinte raciocínio a respeito da humanidade: 

“Ocorreu-me que seres humanos não vivem além dos cem anos porque simplesmente não aguentavam. Psicologicamente, quero dizer. Você se acaba. Não há você o suficiente para seguir em frente. Você fica muito entediado com a própria mente. Com o modo como a vida se repete. Como, depois de um tempo, não há mais sorriso ou gesto inédito. Não há mudança na ordem do mundo que não ecoe outras mudanças na ordem do mundo. E as notícias param de ser novidade. A palavra ‘novidade’ torna-se uma piada. É tudo um ciclo. Um ciclo rodando lentamente para baixo. E sua tolerância pelos seres humanos, fazendo os mesmos erros de novo e de novo e de novo e de novo outra vez, começa a desaparecer.”

Mas será que é apenas a aparência que amedronta as pessoas em geral a respeito da velhice? Um dos medos mais comuns é da solidão e do abandono por parte de parentes e amigos. O enredo de Enquanto a Noite Não Chega, do brilhante escritor gaúcho Josué Guimarães, mostra esse temor em uma situação-limite. Os protagonistas dessa história são um casal de idosos em uma cidade fantasma. Todos os seus filhos e demais familiares já faleceram. O povoado em que moram foi abandonado ao longo dos anos pelos demais habitantes, restando apenas eles e o coveiro. O trabalho que esse terceiro personagem ainda tem a executar é um grande incômodo para os velhinhos:

Dom Eleutério ficou sério, ruminando em silêncio os seus pensamentos. Tornou a balançar a cadeira desconjuntada. Comentou, como se não desse muita importância ao que dizia: 

– Não gostei da conversa dele ontem de noite, a querer saber como vai a saúde da gente, se a chuvinha do outro dia não gripou ninguém aqui em casa, a dizer que na nossa idade qualquer grau acima ou abaixo na temperatura pode ser muito perigoso. 

– Ele não é médico – disse ela, retomando o crochê.

– E nem padre para andar mexericando coisas. Se ele voltar hoje com a mesma conversa vou apontar a porta da rua e dizer que é a serventia da casa, que fique lá pelo seu cemitério, que é sua obrigação, e nos deixe em paz.”

O que resta, depois do medo do abandono e de doenças, é a incógnita da Morte. Por mais fé e teorias que possamos ter, ninguém realmente sabe o que acontece lá “do outro lado”. No romance Fim, de Fernanda Torres, a morte é o lugar comum. O grande mérito do enredo é mostrar como cada personagem encontra o final de sua vida de uma forma diferente, pelas escolhas que fez ao longo de sua própria trajetória. 

Torçamos para que, quando atingirmos o término de nossas existências, NÃO tenhamos um obituário parecido como esse descrito no livro de Fernanda Torres:

O filho de Sílvio Motta Cardoso Filho, Inácio, comunica o falecimento de seu malquisto pai,  infiel marido, abominável avô e desleal amigo. Peço perdão a todos os que, como eu, sofreram ultrajes e ofensas, e os convido para o tão aguardado sepultamento.”

E para encerrar esse texto falando de vitalidade, luta e resistência, necessárias em qualquer faixa etária, selecionei trechos de uma carta de Caio Fernando Abreu ao amigo e também escritor José Marcio Penido: 

Ninguém me ensinará os caminhos. Ninguém nunca me ensinou caminho nenhum, nem a você, suspeito. Avanço às cegas. Não há caminhos a serem ensinados, nem aprendidos. Na verdade, não há caminhos. E lembrei duns versos dum poeta peruano (será Vaflejo? não estou certo): ‘caminante, no hay camino, se hace camino al andar’ […] Zézim, vamos lá. Sem últimas esperanças. Temos esperanças novinhas em folha, todos os dias. E nenhuma, fora de viver cada vez mais plenamente, mais confortáveis dentro do que a gente, sem culpa, é.”