Voos Literários

Como parar o tempo

Flávia Cunha
31 de julho de 2019

Um aplicativo de celular que simulava o envelhecimento a partir de fotos atuais dos usuários movimentou as redes sociais nesse mês de julho. Deixando de lado a discussão sobre invasão de privacidade virtual, o saldo que fica é de muitos jovens horrorizados com as rugas e papadas que terão (ou não) com o passar dos anos. 

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Mas o que existe por trás do pavor de ficar velho?

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Em uma sociedade em que o padrão é a juventude eterna, resolver não se submeter a padrões estéticos acaba sendo um ato de rebeldia. Isso acontece atualmente com a Xuxa, apresentadora por quem sempre nutri uma complacente aversão. Acontece que a Rainha dos Baixinhos resolveu deixar que a passagem do tempo ficasse explícita no seu rosto. E tem chovido haters criticando a aparência de Xuxa, desde o cabelo muito curto até as rugas, normais em uma mulher de 56 anos. Ao entrar na brincadeira do aplicativo de envelhecimento, a apresentadora deu uma alfinetada nos críticos ao comentar:

Gente… resolvi não fazer mais fotos com filtros…. essa sou eu … pelo menos é assim que muita gente me vê “.Ao perceber como o envelhecimento provoca um desconforto em muitas pessoas, fui em busca de três livros que podem nos provocar reflexões sobre o assunto.

Em Como Parar o Tempo, do escritor britânico Matt Haig, nos deparamos com a trajetória de Tom, um homem de mais de 400 anos com a aparência de 40. Como isso é possível? Ele é um tipo de ser humano que envelhece mais lentamente do que o normal. O que poderia ser a felicidade de muitas pessoas obcecadas com a própria imagem, para Tom transforma-se em uma maldição. Perseguido a partir da época da Inquisição por acreditarem que sua juventude eterna era obra de bruxaria, o personagem chega ao século 21 extremamente abatido mentalmente, mostrando que a vitalidade e a vontade de viver precisam ir muito além da aparência. Em determinado momento da narrativa, o personagem Tom, desiludido com tudo, nos brinda com o seguinte raciocínio a respeito da humanidade: 

“Ocorreu-me que seres humanos não vivem além dos cem anos porque simplesmente não aguentavam. Psicologicamente, quero dizer. Você se acaba. Não há você o suficiente para seguir em frente. Você fica muito entediado com a própria mente. Com o modo como a vida se repete. Como, depois de um tempo, não há mais sorriso ou gesto inédito. Não há mudança na ordem do mundo que não ecoe outras mudanças na ordem do mundo. E as notícias param de ser novidade. A palavra ‘novidade’ torna-se uma piada. É tudo um ciclo. Um ciclo rodando lentamente para baixo. E sua tolerância pelos seres humanos, fazendo os mesmos erros de novo e de novo e de novo e de novo outra vez, começa a desaparecer.”

Mas será que é apenas a aparência que amedronta as pessoas em geral a respeito da velhice? Um dos medos mais comuns é da solidão e do abandono por parte de parentes e amigos. O enredo de Enquanto a Noite Não Chega, do brilhante escritor gaúcho Josué Guimarães, mostra esse temor em uma situação-limite. Os protagonistas dessa história são um casal de idosos em uma cidade fantasma. Todos os seus filhos e demais familiares já faleceram. O povoado em que moram foi abandonado ao longo dos anos pelos demais habitantes, restando apenas eles e o coveiro. O trabalho que esse terceiro personagem ainda tem a executar é um grande incômodo para os velhinhos:

Dom Eleutério ficou sério, ruminando em silêncio os seus pensamentos. Tornou a balançar a cadeira desconjuntada. Comentou, como se não desse muita importância ao que dizia: 

– Não gostei da conversa dele ontem de noite, a querer saber como vai a saúde da gente, se a chuvinha do outro dia não gripou ninguém aqui em casa, a dizer que na nossa idade qualquer grau acima ou abaixo na temperatura pode ser muito perigoso. 

– Ele não é médico – disse ela, retomando o crochê.

– E nem padre para andar mexericando coisas. Se ele voltar hoje com a mesma conversa vou apontar a porta da rua e dizer que é a serventia da casa, que fique lá pelo seu cemitério, que é sua obrigação, e nos deixe em paz.”

O que resta, depois do medo do abandono e de doenças, é a incógnita da Morte. Por mais fé e teorias que possamos ter, ninguém realmente sabe o que acontece lá “do outro lado”. No romance Fim, de Fernanda Torres, a morte é o lugar comum. O grande mérito do enredo é mostrar como cada personagem encontra o final de sua vida de uma forma diferente, pelas escolhas que fez ao longo de sua própria trajetória. 

Torçamos para que, quando atingirmos o término de nossas existências, NÃO tenhamos um obituário parecido como esse descrito no livro de Fernanda Torres:

O filho de Sílvio Motta Cardoso Filho, Inácio, comunica o falecimento de seu malquisto pai,  infiel marido, abominável avô e desleal amigo. Peço perdão a todos os que, como eu, sofreram ultrajes e ofensas, e os convido para o tão aguardado sepultamento.”

E para encerrar esse texto falando de vitalidade, luta e resistência, necessárias em qualquer faixa etária, selecionei trechos de uma carta de Caio Fernando Abreu ao amigo e também escritor José Marcio Penido: 

Ninguém me ensinará os caminhos. Ninguém nunca me ensinou caminho nenhum, nem a você, suspeito. Avanço às cegas. Não há caminhos a serem ensinados, nem aprendidos. Na verdade, não há caminhos. E lembrei duns versos dum poeta peruano (será Vaflejo? não estou certo): ‘caminante, no hay camino, se hace camino al andar’ […] Zézim, vamos lá. Sem últimas esperanças. Temos esperanças novinhas em folha, todos os dias. E nenhuma, fora de viver cada vez mais plenamente, mais confortáveis dentro do que a gente, sem culpa, é.”

Voos Literários

Batalha literária da Copa . Uruguai x Portugal

Flávia Cunha
30 de junho de 2018

Na segunda batalha do Voos Literários, vamos a dois competidores com trajetórias bem distintas  – assim como Uruguai e Portugal em Copas do Mundo – mas que tem curiosas relações com suas respectivas nacionalidades. No gramado, o Uruguai levou a melhor em 2018. Mas como será no papel? Inspirada pelas oitavas de final da Copa do Mundo, proponho uma espécie de super trunfo de livros dos países classificados nessa fase da competição. Para a escolha das obras, criei o seguinte critério: escritores contemporâneos e ainda em atividade. Vamos às duas competidoras dessa batalha.

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Representante do Uruguai . Carmen Posadas, 64 anos

Minibiografia .  Começou sua carreira como escritora com livros infantojuvenis e consagrou-se na literatura adulta, tendo recebido diversos prêmios ao longo de sua trajetória.  Nascida em Montevideu, também tem cidadania espanhola, após muitos anos morando na Europa. Sua obra é apreciada por leitores de língua espanhola de diferentes países e já foi traduzida para 21 idiomas.

Livro escolhido para essa batalha . As Moscas Azuis, lançado em 1996

Motivo da escolha . É o primeiro romance dessa grande escritora. Além disso, tem um enredo bem interessante. O protagonista, um homem decidido a suicidar-se acaba envolvido na tentativa de resolver a trama de um assassinato.

Bônus . Carmen Posadas também é reconhecida como articulista, tendo ganho em 2017 o prêmio Rei da Espanha de Jornalismo pelo artigo Sonhar em Espanhol.

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Representante de Portugal, José Mario Silva, 46 anos

Minibiografia . Apesar de ter nascido em Paris, o escritor foi levado pelos pais com poucos meses de vida para morar em Portugal, onde segue residindo. Licenciado em Biologia, trabalha como jornalista desde 1993.  Publicou poesias e contos.

Livro escolhido para essa batalha . Efeito Borboleta e outras histórias, de 2010

Motivo da escolha . Ganhei um exemplar dessa obra durante uma aula do professor Luis Augusto Fischer, na UFRGS, em 2013, ano em que ele foi escolhido como patrono da Feira do Livro de Porto Alegre. Desde então, tem um lugar especial na minha biblioteca pessoal.

Bônus . Apenas os minicontos no fim do livro já valem a leitura. Entre eles, destaco meu preferido:

“Noções de geometria afectiva

Os triângulos amorosos nunca são equiláteros.”

Voos Literários

Batalha literária da Copa . França x Argentina

Flávia Cunha
30 de junho de 2018

Inspirada pelas oitavas de final da Copa do Mundo, proponho uma espécie de super trunfo de livros dos países classificados nessa fase da competição. Para a escolha das obras, criei o seguinte critério: escritores contemporâneos e ainda em atividade. Vamos às duas competidoras dessa batalha.

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Representante da França  .  Marie NDiaye, 51 anos

Minibiografia . Filha de uma francesa e de um senegalês, publicou seu primeiro livro em 1985. Tem uma vasta obra de livros adultos e alguns infantojuvenis. Também é dramaturga e foi uma das roteiristas do filme Minha Terra África, de 2010.

Livro escolhido para essa batalha  .  Três Mulheres Fortes, publicado em 2010

Motivo da escolha . Com esse título, não tem como não chamar a atenção de uma feminista. Mas a verdade é que retratar o sexo feminino sem pudores e em situações-limite é o ponto forte dessa obra.

Bônus . O livro foi vencedor do Prêmio Gouncourt em 2009, uma dos mais respeitados da França.

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Representante da Argentina  .  Samanta Schweblin, 40 anos

Minibiografia . Nascida em Buenos Aires, a escritora resgata o realismo fantástico na literatura argentina e é considerada sucessora de Julio Cortázar. Também integra listas dos escritores contemporâneos mais promissores em língua espanhola.

Livro escolhido para essa batalha . Pássaros na Boca, o primeiro da autora publicado no Brasil

Motivo da escolha . Apesar do peso da comparação com Cortázar pode ser uma maldição, os 18 contos da obra fazem jus à herança literária. Um mundo insólito repleto de estranhezas é o universo dessa obra. Para quem gosta de mergulhar na realidade paralela do realismo fantástico, é uma boa pedida.

Bônus . O livro é vencedor do prêmio Casa de Las Américas, o mais prestigiado em língua espanhola.

Voos Literários

Dica de leitura: Canção de Ninar, por Lu Thomé

Flávia Cunha
26 de junho de 2018

Muita gente por aí reclama do conteúdo do que vê postado pelas redes sociais. Pois eu tenho o privilégio de cultivar uma “bolha” de alto nível, com assuntos culturais sempre em destaque. Por isso, é comum haver indicações de leituras com texto muito bem escritos passando constantemente pelas minhas atualizações.

Foi assim que tive acesso a essa resenha da jornalista e coordenadora editorial Lu Thomé, uma figura querida, competente e reconhecida no meio literário do Rio Grande do Sul. O livro indicado por ela é forte e trágico: Canção de ninar, de Leila Slimani. Ainda não tive oportunidade de ler, mas fiquei bastante curiosa após o relato de uma profissional da área:

As opiniões se dividem a respeito deste livro. Vi leitores apaixonados. Vi críticos implacáveis. O estilo de Slimani é seco, pontual, enfiando o dedo direto em uma ferida aberta e purulenta. Uma vez me disseram que meus textos são como um trem andando no trilho. Veloz, curto, com socos em intervalos constantes. Se uma escritora pode representar isso com perfeição é Slimani. As frases curtas, o estilo direto, a crueza que conta a cada linha sem grandes descrições ou voltas. Ela não emprega tempo ou esforços para preparar o terreno. Não precisa disso. E constrói um narrador em terceira pessoa que é implacável com todos – até mesmo com as crianças. Não é um texto para qualquer leitor, e não porque seja rebuscado ou sofisticado. Pelo contrário: é mundano, é simples, é direto no ponto máximo que a literatura permite. Mas algo mais sintomático ocorre: é uma narrativa forte que encontrará – inevitavelmente – mais eco nas mães (e eu não escrevo mulheres aqui de forma proposital). É mais do que um exercício de empatia: é um espelho na nossa cara, refletindo nossas escolhas, nossos problemas, nossos embates, nossa solidão, nossas possibilidades, nossas loucuras e – especialmente – nossas culpas. Porque só quem já ouviu um “Como é que tu consegue?” sabe todo o universo que está envolvido nesta simples, direta e bruta pergunta. Um livro sobre os conflitos sociais, os problemas domésticos, o peso da rotina, o mercado de trabalho opressivo. Mas, essencialmente, um grande livro sobre a maternidade.

Sinopse: Apesar da relutância do marido, Myriam, mãe de duas crianças pequenas, decide voltar a trabalhar em um escritório de advocacia. O casal inicia uma seleção rigorosa em busca da babá perfeita e fica encantado ao encontrar Louise: discreta, educada e dedicada, ela se dá bem com as crianças, mantém a casa sempre limpa e não reclama quando precisa ficar até tarde. Aos poucos, no entanto, a relação de dependência mútua entre a família e Louise dá origem a pequenas frustrações – até o dia em que ocorre uma tragédia. Com uma tensão crescente construída desde as primeiras linhas, Canção de ninar trata de questões que revelam a essência de nossos tempos, abordando as relações de poder, os preconceitos de classe e entre culturas, o papel da mulher na sociedade e as cobranças envolvendo a maternidade. Publicado em mais de 30 países e com mais de 600 mil exemplares vendidos na França, Canção de ninar fez de Leïla Slimani a primeira autora de origem marroquina a vencer o Goncourt, o mais prestigioso prêmio literário francês.

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Voos Literários

Vitor Diel – Uma dica de leitura para quem ama os animais

Flávia Cunha
13 de março de 2018

É bom quando a gente pede algo para alguém e acaba sendo surpreendido. Foi o que aconteceu comigo quando combinei de o Vitor Diel escrever uma dica de leitura para o Voos Literários. Ele resolveu escrever sobre o livro Platero e eu, de Juan Ramón Jiménez, que eu absolutamente desconhecia.

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O poeta espanhol Juan Ramón Jiménez ganhou o prêmio Nobel de Literatura em 1956 e foi influenciador  de grandes nomes da Literatura, como Garcia Lorca

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Abaixo, segue a dica de leitura do jornalista e editor da fanpage Literatura RS, destaque literário do Prêmio Açorianos de 2016. Um texto poético e sensível, combinando com a obra escolhida:

Quando falamos dos animais, falamos de nós mesmos. A relação entre essas duas espécies funciona como um espelho para os arranjos que estabelecemos com nosso psiquismo, nossa sensibilidade e nossos afetos. É em função dessa verdade, ainda um tanto opaca, que com frequência nos sentimos especialmente tocados pelas narrativas sobre os animais. Por isso, Platero e eu, de Juan Ramón Jiménez, é e sempre será uma das histórias mais delicadas e sensíveis já produzidas pela literatura espanhola.

É pelas lentes dos olhos do burro Platero que conhecemos o universo do povoado de Moguer. O personagem-narrador conduz Platero com ternura e amor por entre situações que revelam a dor, a injustiça, a alegria, a simplicidade, a malícia, a carícia, a crueldade e o lirismo que existe na vida. A ingenuidade do animal, que às vezes zurra, como zurram os burros, é também a ingenuidade do narrador, coração de poeta que sofre com a solidão e aspereza do mundo. Moguer é amarela, branca e azul, cálida e espaçosa, e está assentada no interior da Espanha do início do século XX. O vilarejo recebe de volta o narrador: o filho que retorna e visita suas memórias de infância, o túmulo do pai, a casa onde nasceu, os ciganos andarilhos, sempre com o discreto Platero ao lado.

A introdução da história já determina a doçura da narrativa:

“Platero é pequeno, peludo, suave; tão macio por fora, que parece todo de algodão, parece não ter ossos. Deixo-o solto, e ele vai para o prado, e acaricia mansamente com o focinho, mal as tocando, as florzinhas cor-de-rosa, azul-celeste e amarelo-ouro… Chamo-o docemente: ‘Platero!’, e ele vem até mim com um trotezinho alegre, como se viesse rindo, como que num desprendimento ideal. (…) É terno e mimoso como um menino, como uma menina…; mas forte e rijo por dentro, como de pedra. Quando aos domingos, passo montado nele pelas últimas ruelas da aldeia, os homens do campo, de roupa limpa e vagarosos, ficam olhando: – Ele tem aço… Tem aço. Aço e, ao mesmo tempo, prata de luar”.

A pradaria, a estrada de chão, os terraços esbranquiçados, as casas antigas, as tradições cristãs, vemos tudo pelos olhos do burrinho, que não só é amigo e companheiro, mas também cúmplice: “Trato Platero como se fosse uma criança. Se o caminho se torna escarpado e o peso é muito para ele, desço para aliviá-lo. Beijo-o, provoco, ele se irrita… Mas entende bem que gosto dele, não me guarda rancor. É tão igual a mim, tão diferente dos outros, que cheguei a acreditar que sonha meus sonhos”.

Em 136 capítulos curtos (articulados com certa independência, numa dinâmica semelhante a Vidas Secas, do brasileiro Graciliano Ramos e que também joga luzes sobre a relação homem-animal através da cadela Baleia), Platero e eu dá fôlego a reflexões sobre a solidão da existência, a inevitabilidade do fim e a importância do lirismo e da beleza na relação do sujeito com o mundo e consigo mesmo. O burrinho Platero é a lente de aumento através da qual o narrador revela-nos a realidade material; no caso, carregada de ternura, exatamente como deveriam ser todas as relações entre os homens e entre esses e os animais.

Platero e eu – edição bilíngue

Juan Ramón Jiménez

Ilustrações de Javier Zabala

280 páginas

WMF Martins Fontes

2010

A coluna Voos Literários está pedindo dicas de leituras para pessoas do meio cultural do Rio Grande do Sul. Tem mais dicas de livros bacanas aqui e aqui.

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Voos Literários

Camila Toledo: uma dica de leitura para refletir no Carnaval

Flávia Cunha
6 de fevereiro de 2018

O Carnaval está aí, com muita música, fantasias originais, glitter e purpurina. Tem festa e animação, mas também pode ter abuso e objetificação dos corpos femininos. Nesse contexto, a erotização e a objetificação da mulher negra pode ser ainda mais grave.

E quando pedi uma dica de leitura para a Camila Toledo, vocalista da banda MotherFunky (de funk, soul, black music e groove) e criadora do projeto especial Billie Holiday, deixei-a bem vontade para escolher a obra em questão. Como ativista da causa negra e feminista, Camila acabou escolhendo um livro que aborda justamente o tema da objetificação dos corpos negros. Com a palavra, essa mulher incrível, que também foi criadora do Festival NosOutras (que tive a honra de auxiliar na produção):

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“A gente fala de objetificação do corpo negro sem saber o quão profunda essa questão pode se tornar”

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“Fala-se das mulheres hipersexualizadas, do negro como apenas fonte de trabalho. A história e as marcas desse pensamento vêm sendo descobertas pouco a pouco. Existe uma estrutura social de pensamento ainda escravagista que repete que o corpo negro está a serviço da sociedade.

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Estou lendo um livro da escritora Rebecca Skloot. Depois de muito escrever para revistas científicas, Rebecca interessou-se por desvendar a historia das células He-La: Células que revolucionaram a medicina como a entendemos hoje, por serem das raras células que se mantém vivas até hoje, mantidas em cultura.

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A linhagem dessas células é responsável por avanços imensuráveis na ciência e também lucros igualmente imensuráveis. Essas células foram coletadas de uma mulher negra norte americana, Henrietta Lacks ao ser internada em um hospital para negros na Virginia já perto da morte.  As células eram de uma câncer e, como era de praxe com os pacientes negros, foram coletadas sem o consentimento da paciente.

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Assim, os lucros e louros gerados com as células nunca foram repassados a família. Em A Vida Imortal de Henrieta Lacks, a escritora conta da dificuldade de conversar com a família, que rechaça com todas as forças a forma como o corpo de Henrietta fora “usado” pela ciência.

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Um relato sobre objetificação, desrespeito e fundamentalmente sobre as marcas da crua e imposta servilidade negra à sociedade ocidental. Eu comecei a ler esse livro no ano passado e já tive que parar várias vezes, como fiz com Mulheres, Raça e Classe, da Angela Davis, e o Hibisco Roxo, da Chimamanda Ngozi Adichie.

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Essas leituras, pra mim, que sou ansiosa e negra, geram dois desconfortos: A necessidade de desacelerar pra me concentrar na leitura e as revelações sociais.  Em tempos de redes sociais, ler é uma vitória. E poder ter contato com as doenças sociais que permeiam a vida da gente é um privilégio. Mas requer determinação e resiliência. Indico fortemente esse livro, que além de uma leitura fluida, eleva a discussão sobre objetificação do corpo negro para um outro nível.”

A coluna Voos Literários está pedindo dicas de livros para personalidades do meio cultural do Rio Grande do Sul. O primeiro a dar uma indicação de leitura foi o Duda Calvin.

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Voos Literários

Duda Calvin – Uma dica de leitura punk para empreendedores

Flávia Cunha
16 de janeiro de 2018

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A coluna Voos Literários vai apresentar, ao longo de 2018, dicas de leituras de personalidades do meio cultural do Rio Grande do Sul. A nossa seleção não se restringiu a envolvidos com Literatura, justamente por acreditarmos na leitura como um hábito acessível a qualquer pessoa e não apenas a intelectuais e estudiosos da área.

O primeiro convidado é Duda Calvin, vocalista da banda Tequila Baby, professor de história e produtor:

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“Para todos aqueles que querem tocar seus projetos pessoais em frente, como uma banda de punk rock, por exemplo, A Cauda Longa, do Chris Anderson mostra que o mundo neste novo século mudou a forma como se consome cultura e os produtos ligados à ela. A Internet mudou a forma como se divulgam as coisas e como vamos chegar a estas novas informações. Antes, todos os músicos concorriam ao segmento pop, tudo era medido por execuções em rádio.  Agora, existem outros instrumentos de medição de popularidade, downloads, acessos, likes, etc… E uma banda tem o seu nicho de trabalho, e dentro deste seu nicho, sua popularidade é quantificada. Como trabalhar com isso? Confere no livro.”

 

 

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Confira um trecho da apresentação de A Cauda Longa (Long Tail):

“Este livro é, em parte, um projeto de pesquisa econômica, com a ajuda e a participação de alunos e professores das escolas de negócios de Stanford, MÍT e Harvard. Também é o fruto de mais de cem palestras, de sessões de brainstorming e de visitas físicas a empresas e a grupos setoriais que estão vendo a Cauda Longa mudar seus mundos. E ainda é produto da colaboração com dezenas de empresas e de executivos que comigo compartilharam muitos megabytes de dados internos, proporcionando-me visão sem precedentes da microeconomia de mercados emergentes na era on-line. 

O mais fascinante neste momento é que a economia do século XXI já está esboçada de maneira evidente nos bancos de dados das Googles, Amazons, Netflixes e iTuncs da vida, em cujos muitos terabytes sobre comportamentos dos usuários se encontra uma pista de como os consumidores atuarão nos mercados de escolhas infinitas, questão que até recentemente ainda não era significativa, mas cuja compreensão agora tornou-se fundamental.

[…]

Finalmente, gostaria de acrescentar uma nota sobre paternidade. Embora eu tenha cunhado o termo “The Long Tail” (Cauda Longa), não posso reivindicar qualquer crédito pelo desenvolvimento do conceito de usar a economia eficiente do varejo on-line para compor um grande estoque de itens com baixo volume de vendas. Essa proeza coube a Jeff Bezos, por volta dos idos de 1994. Devo boa parte do que aprendi às minhas conversas com ele, a seus colegas na Netflix e na Rhapsody e a outros que há anos estão atuando nessa área.

Esses empreendedores são os verdadeiros inventores das ideias aqui expostas. O que estou tentando fazer é sintetizar os resultados num referencial único. Obviamente, essa é a função da economia: ela busca desenvolver modelos simples e facilmente compreensíveis que descrevam os fenômenos do mundo real. O desenvolvimento desse arcabouço já é em si um avanço, embora seja algo que se esmaece diante das invenções originais de todos os que descobriram e analisaram o fenômeno em primeira mão.”

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*Foto: VINÍCIUS COSTA/AGÊNCIA PREVIEW – Arquivo Pessoal (Facebook)