O ano de 2020 da América do Sul será uma extensão do turbulento 2019. A observação não é tanto um exercício de futurologia, senão uma análise das pautas que marcaram os últimos 12 meses. Peguemos alguns exemplos…
A Venezuela tem alguma perspectiva de solução do impasse político que iniciou neste ano? Nicolás Maduro não parece disposto a negociar e ainda conta com a sustentação da cúpula militar do país. O líder da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, desidratou e não parece mais ser o “autoproclamado” presidente que se vendeu no primeiro semestre. A violência segue nas ruas, com ataque a bases militares, e a escassez de alimentos persiste, com mais uma ceia de Natal suprida com aves russas. A Colômbia, ao lado, com todos os seus problemas, vive reflexos da situação venezuelana.
Do norte, vamos para o sul. A Argentina, mesmo com troca de governo, não apresenta sinais de recuperação. É verdade que Alberto Fernández não completou um mês na Casa Rosada, mas as políticas implementadas pelos peronistas repetem as que fracassaram com o neoliberalismo de Mauricio Macri. Aumentos de impostos foram aprovados pelo Congresso e também devem vigorar na populosa província de Buenos Aires, que cerca a capital do país.
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O tranquilo Chile entrou em erupção e até agora o presidente Sebastian Piñera não acertou a medida capaz de satisfazer uma população incomodada com anos de desequilíbrio econômico e social. A crise prossegue, bem como as incertezas sobre o futuro político do país
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A Bolívia, com a renúncia de Evo Morales, vive expectativa de uma nova eleição, com garantias de transparência. As primeiras pesquisas apontam uma divisão entre Carlos Mesa, ex-presidente moderado e opositor de Evo, e um jovem líder cocaleiro do partido do líder de origem indígena. Os artífices da ruptura colocada em prática vão aceitar os resultados das eleições organizadas por eles próprios?
Peru e Equador viveram dias intensos pela corrupção e decisões econômicas controversas, respectivamente, que acabaram desaguando nas ruas, em protestos e reações oficiais violentos. Já Brasil e Paraguai estão em um período de estabilidade, no qual, de forma contraditória, a instabilidade é a regra. A novidade mesmo vai ficar com o Uruguai, com novo governo.
Com uma crise (ou mais) por semana no continente, me sinto mal em repetir o tema “Uruguai” na terceira coluna que escrevo para o Vós. Mas é do pequeno país de 3 milhões de habitantes que vêm os melhores exemplos políticos da América do Sul. E, diante da imensa turbulência pela qual passamos, é nos uruguaios que devemos buscar inspiração.
As eleições deste domingo (24) devem confirmar a vitória de Luis Lacalle Pou, do conservador Partido Nacional, à presidência uruguaia. As pesquisas e a lógica apontam para o fim dos 15 anos de governo da Frente Ampla. Não é necessário ir muito longe, no tempo ou no território, para perceber que as forças políticas que chegam ao poder não gostam de deixá-lo.
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Pois no Uruguai é diferente…
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O ex-presidente José “Pepe” Mujica deixou claro qual será o papel da FA caso os prognósticos se confirmem. “Se tivermos que ser oposição, seremos oposição, e não esperem que estejamos com uma pedra em cada mão”, afirmou em entrevista a uma rádio local. A frase não é de um político demagogo querendo parecer democrata. É discurso, mas é prática.
Em 2014, tive a oportunidade de encontrar Mujica. Era repórter de uma emissora de rádio de Porto Alegre e fui escalado para uma coletiva de imprensa do então presidente uruguaio no Palácio Piratini, sede do governo gaúcho. Estávamos em processo eleitoral e, naquele momento, Marina Silva era quem ameaçava as chances de Dilma Rousseff na corrida ao Planalto. Me posicionei na ponta da fila de jornalistas para a rodada de perguntas e preparei a minha.
– Presidente, o senhor conhece Marina Silva? O que acha da candidata que concorre contra Dilma Rousseff?
Dei azar. A assessoria de imprensa responsável pela organização do evento tinha montado duas filas. Apesar de eu ser o primeiro de uma, eles começaram pela outra e o colega que estava na ponta oposta fez justamente a pergunta que eu tinha planejado. A resposta de Mujica, no entanto, me marcou:
– Seria de mau gosto que eu, presidente do Uruguai, me pusesse a opinar sobre a política brasileira diante da imprensa – afirmou – Vocês que são brasileiros que se resolvam.
A resposta evasiva (e, aparentemente, tosca e grosseira como de um gaucho do campo) era mais do que isso. Mujica sabia que não cabia a um chefe de Estado estrangeiro opinar sobre as eleições de outro país.
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A postura poderia servir de modelo para outros líderes, como o brasileiro Jair Bolsonaro, que adora opinar sobre o voto alheio. Mas as lições democráticas de Mujica vão além. Com seus ideais, a oveja negra uruguaia sabe, todavia, que a realidade é que manda
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“Se a ideologia substitui a realidade, aí estás vivendo o fictício e isso te leva à ruína ou a conclusões fantasiosas, que não o são. Eu tenho que lutar para melhorar a vida das pessoas na realidade concreta de hoje e não fazê-lo é uma imoralidade. (…) Estou lutando por ideais, macanudo. Mas não posso sacrificar o bem-estar da gente por ideais. A vida é uma e é muito curta.”
Em uma América Latina que dá golpes, persegue e mata por ideologia (ainda que use o disfarce de ser contra ideologias), proponho o mujiquismo. Se não der certo, ao menos, vamos aprender com o velho.
Cercado por dois gigantes de 210 e 45 milhões de habitantes, o Uruguai está acostumado com a coadjuvância. Não foi diferente no domingo, 27 de outubro. Enquanto os argentinos iam às urnas para eleger o peronista Alberto Fernández contra Mauricio Macri, atraindo as atenções do continente, os orientales também realizavam eleições presidenciais. A discrição do Uruguai e de sua população de 3,5 milhões de pessoas contrasta com a agitação vivida pela América do Sul neste ano de 2019. Até o Chile entrou em erupção, depois de Paraguai, Equador e Bolívia – sem contar os instáveis Brasil e Venezuela, além da economicamente dramática Argentina.
Os uruguaios vivem um momento de relativa tranquilidade econômica, social e política. O PIB cresce há 16 anos, contrariando o comportamento de seus vizinhos. Em 2004, por exemplo, o principal problema que as pessoas apontavam no país era o desemprego. Enquanto quase a metade da população tinha essa preocupação naquela época, hoje apenas 14% elege a falta de trabalho como um problema no Uruguai.
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O recorte temporal de uma década e meia não é por acaso
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Foi em 2005 que a Frente Ampla, coalizão de partidos de esquerda, assumiu o poder em um país marcado pela dualidade entre blancos e colorados. O partido de Tabaré Vázquez e José “Pepe” Mujica quebrou uma sequência de mais de 150 anos de alternância entre dois perfis de direita, uma conservadora e rural e outra liberal e urbana, cujas práticas mais as aproximam do que as separam. A experiência bem sucedida da esquerda no poder começou mais cedo, com o próprio Vázquez assumindo a prefeitura da capital, Montevidéu, em 1990 (desde então, a FA nunca deixou o comando da cidade). Se construiu uma era de respeito às instituições, de avanços no campo dos direitos humanos e de desenvolvimento num continente onde direita e esquerda deixam a desejar em alguns (ou todos) os quesitos.
Coube justamente ao último intendente de Montevidéu defender o bom legado frenteamplista. O engenheiro Daniel Martínez foi escolhido para representar a bandeira de esquerda em eleições sem precedentes na história uruguaia.
A renovação de quadros foi interessante. O senador Lacalle Pou (filho do ex-presidente Lacalle) teve que enfrentar o magnata Juan Sartori nas primárias do Partido Nacional (blanco). Nascido no Uruguai, mas radicado na Europa, Sartori voltou ao país se dizendo o outsider capaz de revolucionar a política local, mesmo com os suspeitos auxílios da família russa de sua esposa, cujo pai é dono do clube de futebol Monaco, e do estrategista miamense-venezuelano JJ Rendón, especialista em fake news. No Partido Colorado, o Chicago boy Ernesto Talvi desbancou o octogenário ex-presidente Julio María Sanguinetti nas prévias. A grande surpresa, no entanto, foi a candidatura do ex-comandante do Exército Guido Manini Ríos. Preso por reclamar da previdência dos militares e depois demitido por criticar o Judiciário pela condenação de criminosos da ditadura militar, o general entrou na política como um crítico da esquerda (não confundi-lo com Bolsonaro, Manini Rios está mais para Mourão).
Postulantes em campo e eleitores nas urnas, a eleição de domingo não foi uma surpresa. As pesquisas acertaram a liderança de Martínez, que fechou com 39% dos votos. Lacalle Pou, com seus 28%, vai ao segundo turno. O candidato de direita já recebeu o apoio dos derrotados Talvi e Manini Ríos, que marcaram 12% e 11% respectivamente.
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Um simples (e simplório) exercício matemático nos permite supor que, com a soma dos votos opositores à Frente Ampla, Lacalle Pou será o novo presidente do Uruguai. Alguns fatores podem ser determinantes nos debates decisivos até o segundo turno
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A segurança (ou falta de) foi o ponto de maior fragilidade no último ciclo da FA no governo. Os números de homicídios aumentaram em 35% no ano passado e política flexível sobre a maconha ainda divide o país. No entanto, a reforma constitucional proposta pela oposição que criava uma força policial militar no país e que previa até a prisão perpétua para alguns crimes foi rejeitada pela população.
A ver também o papel de lideranças importantes, como Mujica, que voltou à política e foi eleito senador, e Vázquez, que enfrenta um câncer de pulmão. Outro ponto interessante é o fator Bolsonaro. O presidente brasileiro declarou preferência a Lacalle Pou. Será mais uma bola fora do Mick Jagger? O próprio Lacalle rejeitou o apoio, dizendo não ser correto que um líder estrangeiro influencie a eleição de outro país. Além de ter noção dos limites institucionais, o candidato tem noção do que pode sofrer com o toque do Midas al revés. Manini Ríos, o militar, também criticou Bolsonaro pela intromissão.
Com o governo da Frente Ampla em xeque, estamos diante do fim de uma era de esquerda no Uruguai? No dia 24 de novembro, finalmente, os discretos vizinhos do Prata serão protagonistas na América do Sul.
Na segunda batalha do Voos Literários, vamos a dois competidores com trajetórias bem distintas – assim como Uruguai e Portugal em Copas do Mundo – mas que tem curiosas relações com suas respectivas nacionalidades. No gramado, o Uruguai levou a melhor em 2018. Mas como será no papel? Inspirada pelas oitavas de final da Copa do Mundo, proponho uma espécie de super trunfo de livros dos países classificados nessa fase da competição. Para a escolha das obras, criei o seguinte critério: escritores contemporâneos e ainda em atividade. Vamos às duas competidoras dessa batalha.
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Representante do Uruguai . Carmen Posadas, 64 anos
Minibiografia . Começou sua carreira como escritora com livros infantojuvenis e consagrou-se na literatura adulta, tendo recebido diversos prêmios ao longo de sua trajetória. Nascida em Montevideu, também tem cidadania espanhola, após muitos anos morando na Europa. Sua obra é apreciada por leitores de língua espanhola de diferentes países e já foi traduzida para 21 idiomas.
Livro escolhido para essa batalha . As Moscas Azuis, lançado em 1996
Motivo da escolha . É o primeiro romance dessa grande escritora. Além disso, tem um enredo bem interessante. O protagonista, um homem decidido a suicidar-se acaba envolvido na tentativa de resolver a trama de um assassinato.
Bônus . Carmen Posadas também é reconhecida como articulista, tendo ganho em 2017 o prêmio Rei da Espanha de Jornalismo pelo artigo Sonhar em Espanhol.
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Representante de Portugal, José Mario Silva, 46 anos
Minibiografia . Apesar de ter nascido em Paris, o escritor foi levado pelos pais com poucos meses de vida para morar em Portugal, onde segue residindo. Licenciado em Biologia, trabalha como jornalista desde 1993. Publicou poesias e contos.
Livro escolhido para essa batalha . Efeito Borboleta e outras histórias, de 2010
Motivo da escolha . Ganhei um exemplar dessa obra durante uma aula do professor Luis Augusto Fischer, na UFRGS, em 2013, ano em que ele foi escolhido como patrono da Feira do Livro de Porto Alegre. Desde então, tem um lugar especial na minha biblioteca pessoal.
Bônus . Apenas os minicontos no fim do livro já valem a leitura. Entre eles, destaco meu preferido:
Aonde o senhor vai apresentar o atestado de domicílio?
A pergunta é feita por uma simpática policial que preenche o formulário no 11º Distrito, em uma tranquila rua do bairro Malvin, em Montevideo. Eu poderia ter inventado uma desculpa, como abrir conta em banco ou fazer ficha na biblioteca, mas resolvi testar o sistema.
És para el registro de adquiriente de cannabis en la farmacia, respondo caprichando no portuñol.
Cada envelope vem com 5g e custa 200 pesos, aproximadamente 24 reais.
A policial segue impávida, carimba o formulário e me deseja boa tarde, sem perder a simpatia no trato. Percebo que o único a estranhar aquela situação sou justamente eu, que em breve seria o mais novo cadastrado entre os 22.550 consumidores que tem direito a comprar na farmácia 10g de cannabis por semana em duas variedades de diferentes potências cultivadas em instalações do Exército. Parece roteiro de ficção, mas é Uruguai no más.
Para obter o registro não basta ir à polícia comprovar domicílio. Aos estrangeiros também é exigida residência permanente no país, uma papelada que dei início em Porto Alegre e foi resolvida após nove meses no Uruguai sem muita burocracia. De posse da cédula uruguaia, seda, isqueiro e comprovante de domicílio, fui bem feliz até a agência dos Correios mais próxima. Uma simpática casa, com amplo pátio às margens de uma das principais avenidas da cidade. Na entrada, algumas encomendas esperam entrega; dentro, um ambiente desorganizado e cheio de avisos de papel presos com alfinete no quadro verde com moldura de madeira. Na porta, novamente a polícia.
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Me aproximo e digo que desejo fazer o cadastro para comprar marirruana
O atendente não entende meu portunhol. Repito em tom de voz mais alto: para la cannabis el la farmacia. Ele toma minha identidade uruguaia, analisa com a calma típica do paisito e me insere no sistema, o que não inclui nenhuma informação pessoal a não ser um cadastro demográfico com idade, nível de formação e cidade onde vivo. O que permite saber o perfil médio do usuário por aqui: a maioria é de homens, entre 30 e 40 anos, com ensino médio ou superior completo.
Do meio da bagunça surge um leitor de impressões digitais; nove dos dez dedos da minha mão são registrados e em menos de dois minutos recebo um comprovante. Saio ainda processando aquele momento: o sistema é visualmente prosaico, envolvendo formulários de papel e um guichê típico de qualquer filme do Darín; por outro lado é extremamente eficiente e eu tenho direito a participar disso.
Desavisado, corro até a primeira farmácia ávido por, enfim, agarrar meus pacotes. No ônibus para o bairro Pocitos, onde está uma das quatro farmácias que toparam a empreitada de vender maconha ao lado da aspirina, já vou planejando o esperado momento da degustação da erva produzida por empresas contratadas pelo governo. A ansiedade é interrompida pelo desembarque; caminho triunfante até a farmácia, ensaiando mentalmente o portunhol pra não precisar repetir o pedido.
Era dia de testar o sistema. E ele mostrou que ainda precisa ser aprimorado. Na porta da farmácia, escrito a mão no melhor estilo uruguaio, a frase do apocalipse:
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“NO HAY MARIJUANA”
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Abalado, abro a porta e pergunto por previsão de chegada. A atendente, com o pouco que lhe resta de paciência depois de responder essa pergunta sei lá quantas vezes no dia, me informa que só a partir do dia 06 de março.
Saio googleando alguma informação e deparo com um app que mapeia e informa em qual farmácia ainda há estoque. A mais próxima está a 200km. Rapidamente faço contas mentais e percebo que vou precisar segurar as pontas. O governo criou a demanda mas não deu conta do recado. As empresas designadas pra cultivar a ganja falharam no ciclo e houve um hiato na produção, desabastecendo uma legião de 22 mil usuários que romperam a desconfiança e colocaram seus dedos amarelados no sistema. A degustação vai ter que esperar.
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Três semanas depois…
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Carros passam buzinando, pessoas filmam da janela dos ônibus, outros mandam trabalhar. São 08h30 de uma segunda-feira, o verão está acabando e a maconha voltou às prateleiras das farmácias uruguaias. Na semana anterior, o governo anunciou que o estoque seria reposto, o que foi suficiente para eu e as torcidas do Peñarol e Nacional nos unirmos neste importante compromisso no raiar do primeiro dia verdadeiramente útil desde o Natal.
Na fila que dobra a esquina antes das 9 da manhã, pessoas de todas as idades, gêneros e orientações sexuais conversam animadamente, fumam algum porro que alguém colocou na roda e tomam mate tranquilamente. A polícia passa e apenas observa de dentro da viatura. Poderia ser na Califórnia, ou uma cena utópica desses musicais dos anos 70, mas é século XXI, América do Sul, no mesmo país que foi pioneiro no voto às mulheres, no casamento homoafetivo, na legalização da prostituição e do aborto.
Depois de 45 minutos, estou no balcão da farmácia onde uma força-tarefa atende aos clientes: como uma linha de produção fordista que identifica, entrega e cobra um a um dos usuários. Nem precisa dizer que a demanda pelo remédio de Marley é muito maior que por aspirina. Decido por experimentar as duas variedades. Compro Alpha e Beta, 9% de THC. A primeira predominante índica, com efeito relaxante e brisa mais suave; a outra sativa, com pegada mais ativa, criativa e inspiradora.
Passo meu indicador esquerdo pelo leitor digital sem apresentar nenhum documento; levo 10g de cogollos para casa, entregues em um envelope selado e carregado de informações e alertas, como qualquer outro produto da prateleira com suas advertências e tabela nutricional. A brincadeira sai por módicos 400 pesos, como 48 reais.
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A galera do grupo do Whats no Brasil chora, as directs no Instagram fritam. Habemus maconha uruguaia
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Ônibus direto pra casa, azar a padaria, a larica fica pra depois. Pego o kit, vou pra sacada, ponho um Pink Floyd no shuffle. Escolho as três maiores flores; são buds compactos, frescos e muito cheirosos; tem um aroma doce e é possível notar os tricomas, sinal de que foi colhido na época correta para atingir o melhor efeito.
Faço um brinde à gravura do Mujica na parede e prendo fogo. A primeira tragada enche o pulmão e a tossida é inevitável. A brisa já se faz presente, a vista diminui, as nuvens ganham densidade e os acordes de atingem em cheio os sentidos. Não é um petardo que anula a iniciativa do sujeito, mas um sopro de inspiração pra se deter aos detalhes da vida.
Sistema testado, sistema aprovado. Que boa erva cultivam os uruguaios.
Meio ano já é tempo suficiente para algumas constatações sobre o Uruguai. O tempo ajuda a consolidar percepções, derrubar mitos e ter uma visão menos romântica do país que se tornou a panaceia sul-americana.
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Como não amar um país movido a parrilla?
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1 – Amsterdã latina – Para os cidadãos uruguaios, a política sobre a maconha é de fazer inveja aos países de primeiro mundo: é permitido cultivar, comprar em farmácias (!!!) ou participar de cooperativas de cultivo. Enfermos começam a ter acesso aos derivados medicinais para tratamento de doenças crônicas. Mas turistas podem guardar o isqueiro e tirar o cachimbo da chuva pois não é nada fácil – nem permitido – conseguir um cogollo por aqui.
2 – Qualidade de vida x custo de vida – Aqui está o xis da questão: Morar em Montevideo é sentir-se seguro, ter serviços sempre próximos, 20km de orla urbanizada, limpeza eficiente e parques conservados. Mas viver a cidade custa caro: alimentação e moradia são os itens mais pesados do orçamento, seguidos por luz e combustível. Em geral, o custo de viver é pelo menos 20% mais caro que Porto Alegre, por exemplo.
3 – Imigração x oferta de empregos – Não são apenas os brasileiros que ‘descobriram’ a promissora qualidade de vida dos orientais. Cubanos e venezuelanos também estão na disputa pelas vagas de trabalho de nível básico. A situação é ainda mais complicada para vagas de nível técnico ou superior, já que o mercado é muito restrito.
4 – Educados sim, hospitaleiros talvez – idosos e mulheres têm preferência nos ônibus, todos cumprimentam-se e conversam amenidades. Amizades são cultivadas com esmero. Mas não espere intimidade imediata ou grande receptividade. Uruguaios são bastante reservados e ganhar a confiança deles demanda mais do que um churrasco em fim de semana.
5 – Tenha teu mate – Não chegue na roda do chimarrão esperando tua vez. Primeiro porque não tem roda, segundo porque não haverá tua vez. O mate é um patrimônio individual do uruguaio.
6 – Capital, pero no mucho – Montevideo tem metade da população uruguaia, três shoppings centers, grandes clubes de futebol, é uma capital repleta de parques, mas tem seus limites. A vida noturna da cidade é discreta, shows musicais de destaque são raros. O que se sobressai é o incentivo público a dança e dramaturgia, com espetáculos semanais no Teatro Solis. Comer e descobrir novos restaurantes acaba sendo o principal programa do fim de semana.
Por trás da aparente tranquilidade montevideana, havia no átrio centenário do Teatro Solís uma bruma de contida expectativa. Era o frio na barriga característico de grandes amigos a espera de um reencontro: embora haja intimidade, nada permite o desleixo. Sendo assim, todos portavam-se no limite da ansiedade, aguardando com discrição e elegância.
O burburinho que emanava dos 1200 assentos diminuiu ao passo que escureceu a luz do palco. Sem cerimônias, percussão, baixo e violão tomaram seus assentos para só então o charme de um tímido Jorge Drexler romper da coxia para a primeira das muitas ovações que receberia naquela noite especial: após 13 anos, o montevideano que deixou a medicina para ser músico voltava a tocar no principal palco do seu país. Não vou me recordar da sequência das músicas, mas não há como esquecer a troca de gentilezas entre artista e público por 2h30 de espetáculo.
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Enquanto na plateia não se avistava sequer um telefone celular, no palco Drexler agia como um anfitrião exemplar, fazendo-nos sentir como se o Solís fosse nossa casa
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Mesmo tocado pelo natural nervosismo inerente à estreia de uma turnê internacional, Drexler deixou todos à vontade: não se furtou de pedir ‘respeito aos cinquentões’ após arrancar assovios enquanto tirava o casaco. Passada metade da apresentação, sem cerimônias incluiu no set, de improviso, a canção pedida por alguma fã na multidão. Com a intimidade permitida somente aos conterrâneos, cantou lendo as músicas do novo álbum na partitura. Quando errou, não titubeou em recomeçar e da plateia também veio o conforto: “No te preocupes, Jorge. Estás en casa”. Quando acabou, precisou voltar duas vezes para render-se aos aplausos intermináveis de quem, após aqueles momentos, sentia-se um pouco mais amigo de Jorge Drexler.
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Para nós, recém-chegados mas profundamente adeptos ao que Vitor Ramil cunhou de estética do frio, sentir-se tão confortável no ambiente proporcionado pelo artista foi um afago inesquecível
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Lanna e eu sentimo-nos um pouco mais em casa na noite de 4 de outubro. Tão em casa que após dois dias pudemos dizer isso pessoalmente a Drexler, num daqueles encontros casuais que são possíveis apenas em um país de escalas tão reduzidas quanto a vaidade de seus maiores expoentes, fazendo valer o dito de que por aqui ‘naides és más que naides’.
Imigrar não significa ignorar o que acontece no Brasil. Independente da distância, é impossível repercutir a espiral de retrocessos vividos desde o golpe de 2016. Ao mesmo tempo, sucita um dilema permanente, uma espécie de culpa de alguém que optou por um confortável autoexílio enquanto amigos e colegas tentam formar uma resistência aos constantes ataques a direitos que jamais imaginei que seriam retirados. Nasci em 85, sou filho de militante política criado no berço da democracia e da liberdade.
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E eis me aqui vivendo em outro país em busca de liberdades e oportunidades que vejo recrudescerem todo dia na terra onde nasci
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É uma angústia, uma sensação de impotência. Uma dúvida sobre minha dignidade em dizer alguma coisa sobre minha terra a partir do conforto da tela do celular enquanto a luta é travada no dia-dia. Mas também sei que no Brasil, tomar posição nesta disputa reduziu meu círculo social, que aliado à escalada da violência foram determinantes para trocar de endereço.
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Eu já não me sentia livre para me expressar, não me sentia mais confortável para circular, não via sentido no que estava fazendo
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Já faz quase meio ano e ainda fico dividido entre minha liberdade de escolher um local onde tenho tranquilidade para planejar a vida e o sentimento de egoísmo por deixar para trás os problemas de onde nasci. O futuro me parece cada vez mais tenebroso do outro lado da fronteira e não sei bem quando volto, até por que sinto ainda não consegui partir completamente.