Yo No Soy de Aquí

Parecidas, pero no mucho: cinco exemplos que Montevideo pode dar a POA

Alvaro Andrade
12 de abril de 2018

Elas rivalizam no pôr do sol mais bonito, são banhadas por  grandes rios, sede de dois grandes clubes com  torcidas apaixonadas e com quase dois milhões de moradores devotos do mate e da carne assada: são muitas as características e hábitos que aproximam Montevideo e Porto Alegre, mas infelizmente as semelhanças param por aí.  Enquanto a capital uruguaia encanta por sua limpeza e organização, a capital dos gaúchos sofre com o sucateamento dos serviços públicos usado como bandeira eleitoral. Abaixo cinco exemplos que poderiam melhorar a qualidade de vida dos porto-alegrenses.

 

1 Transporte público

Dificilmente um usuário de ônibus precisará caminhar mais que duas quadras no embarque, desembarque ou transbordo em Montevidéu. O plano diretor permitiu uma distribuição muito eficiente das linhas, que graças a um trânsito fluido, também são bastante pontuais. Além disso, a passagem é ligeiramente mais barata (36 pesos, o que equivale a R$ 4,20) e o sistema de transporte coletivo oferece algumas facilidades singelas, mas que fazem diferença, como o rastreamento das linhas por aplicativos e a possibilidade de recarga do cartão em redes de cobrança que se assemelham à casas lotéricas instaladas em todos bairros da cidade. As empresas que operam as linhas são cooperativas de trabalhadores, garantindo comprometimento com a qualidade e autonomia sindical.

2 Água limpa

A qualidade de vida do montevideano também se explica por sua relação com o rio da Prata, que de tão grande é carinhosamente chamado de mar. A cidade está de frente para a orla, com uma rambla de mais de 20 km totalmente urbanizada, com áreas para prática de vôlei de areia à rubgy. No verão, as praias são todas balneáveis e contam com serviço diário de limpeza da areia e salva-vidas.

3 Mobiliário urbano

Os espaços publicitários obedecem um plano diretor bastante específico, que mimetiza os anúncios na paisagem. Na maior parte da cidade, são verticais com cerca de 2 metros de altura e 1,5m de largura. Outdoors são bastante raros, restritos às laterais ou topo de edifícios. Embora as paradas de ônibus sejam bem simples, em todas elas há informação das linhas que atendem o ponto. A sinalização viária também tem identidade visual específica e os termômetros de rua, além de informarem a temperatura, oferecem prognóstico do dia seguinte e o fator de radiação UV.

4 Segurança

Montevidéu é considerada a capital mais segura da América Latina, embora  a sensação de insegurança venha crescendo entre os uruguaios. Mesmo assim, os níveis de violência são muito inferiores a Porto Alegre. Em 2017, foram 157 homicídios na capital uruguaia, frente a 574 na capital gaúcha. Além de uma menor desigualdade social, há um permanente investimento em videomonitoramento e valorização da carreira de policial, inibindo a corrupção.  A legalização da maconha também inibe o crescimento do poder do crime organizado.

5 Patrimônio histórico

São cada vez mais comuns as gruas da construção civil pela cidade e nota-se uma expansão imobiliária vertical, especialmente nos bairros mais procurados e caros, como Pocitos e Punta Carretas. Mas a maior parte da cidade conserva suas características arquitetônicas, onde predomina o art-deco. A prefeitura inclusive oferece isenção de imposto predial por uma década aos proprietários que investem na reforma de prédios antigos, desde que preservadas as características originais.

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Como comprei maconha nas farmácias uruguaias

Alvaro Andrade
28 de março de 2018

Aonde o senhor vai apresentar o atestado de domicílio?

A pergunta é feita por uma simpática policial que preenche o formulário no 11º Distrito, em uma tranquila rua do bairro Malvin, em Montevideo. Eu poderia ter inventado uma desculpa, como abrir conta em banco ou fazer ficha na biblioteca, mas resolvi testar o sistema.

És para el registro de adquiriente de cannabis en la farmacia, respondo caprichando no portuñol.

Cada envelope vem com 5g e custa 200 pesos, aproximadamente 24 reais.

A policial segue impávida, carimba o formulário e me deseja boa tarde, sem perder a simpatia no trato. Percebo que o único a estranhar aquela situação sou justamente eu, que em breve seria o mais novo cadastrado entre os 22.550 consumidores que tem direito a comprar na farmácia 10g de cannabis por semana em duas variedades de diferentes potências cultivadas em instalações do Exército. Parece roteiro de ficção, mas é Uruguai no más.

Para obter o registro não basta ir à polícia comprovar domicílio. Aos estrangeiros também é exigida residência permanente no país, uma papelada que dei início em Porto Alegre e foi resolvida após nove meses no Uruguai sem muita burocracia. De posse da cédula uruguaia, seda, isqueiro e comprovante de domicílio, fui bem feliz até a agência dos Correios mais próxima. Uma simpática casa, com amplo pátio às margens de uma das principais avenidas da cidade. Na entrada, algumas encomendas esperam entrega; dentro, um ambiente desorganizado e cheio de avisos de papel presos com alfinete no quadro verde com moldura de madeira. Na porta, novamente a polícia.

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Me aproximo e digo que desejo fazer o cadastro para comprar marirruana

O atendente não entende meu portunhol. Repito em tom de voz mais alto: para la cannabis el la farmacia. Ele toma minha identidade uruguaia, analisa com a calma típica do paisito e me insere no sistema, o que não inclui nenhuma informação pessoal a não ser um cadastro demográfico com idade, nível de formação e cidade onde vivo. O que permite saber o perfil médio do usuário por aqui: a maioria é de homens, entre 30 e 40 anos, com ensino médio ou superior completo.

Do meio da bagunça surge um leitor de impressões digitais; nove dos dez dedos da minha mão são registrados e em menos de dois minutos recebo um comprovante. Saio ainda processando aquele momento: o sistema é visualmente prosaico, envolvendo formulários de papel e um guichê típico de qualquer filme do Darín; por outro lado é extremamente eficiente e eu tenho direito a participar disso.

Desavisado, corro até a primeira farmácia ávido por, enfim, agarrar meus pacotes. No ônibus para o bairro Pocitos, onde está uma das quatro farmácias que toparam a empreitada de vender maconha ao lado da aspirina, já vou planejando o esperado momento da degustação da erva produzida por empresas contratadas pelo governo. A ansiedade é interrompida pelo desembarque; caminho triunfante até a farmácia, ensaiando mentalmente o portunhol pra não precisar repetir o pedido.

Era dia de testar o sistema. E ele mostrou que ainda precisa ser aprimorado. Na porta da farmácia, escrito a mão no melhor estilo uruguaio, a frase do apocalipse:

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“NO HAY MARIJUANA”

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Abalado, abro a porta e pergunto por previsão de chegada. A atendente, com o pouco que lhe resta de paciência depois de responder essa pergunta sei lá quantas vezes no dia, me informa que só a partir do dia 06 de março.

Saio googleando alguma informação e deparo com um app que mapeia e informa em qual farmácia ainda há estoque. A mais próxima está a 200km. Rapidamente faço contas mentais e percebo que vou precisar segurar as pontas. O governo criou a demanda mas não deu conta do recado. As empresas designadas pra cultivar a ganja falharam no ciclo e houve um hiato na produção, desabastecendo uma legião de 22 mil usuários que romperam a desconfiança e colocaram seus dedos amarelados no sistema. A degustação vai ter que esperar.

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Três semanas depois…

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Carros passam buzinando, pessoas filmam da janela dos ônibus, outros mandam trabalhar. São 08h30 de uma segunda-feira, o verão está acabando e a maconha voltou às prateleiras das farmácias uruguaias. Na semana anterior, o governo anunciou que o estoque seria reposto, o que foi suficiente para eu e as torcidas do Peñarol e Nacional nos unirmos neste importante compromisso no raiar do primeiro dia verdadeiramente útil desde o Natal.

Na fila que dobra a esquina antes das 9 da manhã, pessoas de todas as idades, gêneros e orientações sexuais conversam animadamente, fumam algum porro que alguém colocou na roda e tomam mate tranquilamente. A polícia passa e apenas observa de dentro da viatura. Poderia ser na Califórnia, ou uma cena utópica desses musicais dos anos 70, mas é século XXI, América do Sul, no mesmo país que foi pioneiro no voto às mulheres, no casamento homoafetivo, na legalização da prostituição e do aborto.

Depois de 45 minutos, estou no balcão da farmácia onde uma força-tarefa atende aos clientes: como uma linha de produção fordista que identifica, entrega e cobra um a um dos usuários. Nem precisa dizer que a demanda pelo remédio de Marley é muito maior que por aspirina. Decido por experimentar as duas variedades. Compro Alpha e Beta, 9% de THC. A primeira predominante índica, com efeito relaxante e brisa mais suave; a outra sativa, com pegada mais ativa, criativa e inspiradora.

Passo meu indicador esquerdo pelo leitor digital sem apresentar nenhum documento; levo 10g de cogollos para casa, entregues em um envelope selado e carregado de informações e alertas, como qualquer outro produto da prateleira com suas advertências e tabela nutricional. A brincadeira sai por módicos 400 pesos, como 48 reais.

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A galera do grupo do Whats no Brasil chora, as directs no Instagram fritam. Habemus maconha uruguaia

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Ônibus direto pra casa, azar a padaria, a larica fica pra depois. Pego o kit, vou pra sacada, ponho um Pink Floyd no shuffle. Escolho as três maiores flores; são buds compactos, frescos e muito cheirosos; tem um aroma doce e é possível notar os tricomas, sinal de que foi colhido na época correta para atingir o melhor efeito.

Faço um brinde à gravura do Mujica na parede e prendo fogo. A primeira tragada enche o pulmão e a tossida é inevitável. A brisa já se faz presente, a vista diminui, as nuvens ganham densidade e os acordes de atingem em cheio os sentidos. Não é um petardo que anula a iniciativa do sujeito, mas um sopro de inspiração pra se deter aos detalhes da vida.

Sistema testado, sistema aprovado. Que boa erva cultivam os uruguaios.

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Uruguai – Seis meses, seis aprendizados

Alvaro Andrade
23 de novembro de 2017

Meio ano já é tempo suficiente para algumas constatações sobre o Uruguai. O tempo ajuda a consolidar percepções, derrubar mitos e ter uma visão menos romântica do país que se tornou a panaceia sul-americana.

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Como não amar um país movido a parrilla?

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1 – Amsterdã latina – Para os cidadãos uruguaios, a política sobre a maconha é de fazer inveja aos países de primeiro mundo: é permitido cultivar, comprar em farmácias (!!!) ou participar de cooperativas de cultivo. Enfermos começam a ter acesso aos derivados medicinais para tratamento de doenças crônicas. Mas turistas podem guardar o isqueiro e tirar o cachimbo da chuva pois não é nada fácil – nem permitido – conseguir um cogollo por aqui.

2 – Qualidade de vida x custo de vida – Aqui está o xis da questão: Morar em Montevideo é sentir-se seguro, ter serviços sempre próximos, 20km de orla urbanizada, limpeza eficiente e parques conservados. Mas viver a cidade custa caro: alimentação e moradia são os itens mais pesados do orçamento, seguidos por luz e combustível. Em geral, o custo de viver é pelo menos 20% mais caro que Porto Alegre, por exemplo.

3 – Imigração x oferta de empregos – Não são apenas os brasileiros que ‘descobriram’ a promissora qualidade de vida dos orientais. Cubanos e venezuelanos também estão na disputa pelas vagas de trabalho de nível básico. A situação é ainda mais complicada para vagas de nível técnico ou superior, já que o mercado é muito restrito.

4 – Educados sim, hospitaleiros talvez – idosos e mulheres têm preferência nos ônibus, todos cumprimentam-se e conversam amenidades. Amizades são cultivadas com esmero. Mas não espere intimidade imediata ou grande receptividade. Uruguaios são bastante reservados e ganhar a confiança deles demanda mais do que um churrasco em fim de semana.

5 – Tenha teu mate – Não chegue na roda do chimarrão esperando tua vez. Primeiro porque não tem roda, segundo porque não haverá tua vez. O mate é um patrimônio individual do uruguaio.

6 – Capital, pero no mucho – Montevideo tem metade da população uruguaia, três shoppings centers, grandes clubes de futebol, é uma capital repleta de parques, mas tem seus limites. A vida noturna da cidade é discreta, shows musicais de destaque são raros. O que se sobressai é o incentivo público a dança e dramaturgia, com espetáculos semanais no Teatro Solis. Comer e descobrir novos restaurantes acaba sendo o principal programa do fim de semana.

 

Foto: Pixabay

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Drexler, um anfitrião exemplar

Alvaro Andrade
19 de outubro de 2017

Por trás da aparente tranquilidade montevideana, havia no átrio centenário do Teatro Solís uma bruma de contida expectativa. Era o frio na barriga característico de grandes amigos a espera de um reencontro: embora haja intimidade, nada permite o desleixo. Sendo assim, todos portavam-se no limite da ansiedade, aguardando com discrição e elegância.

O burburinho que emanava dos 1200 assentos diminuiu ao passo que escureceu a luz do palco. Sem cerimônias, percussão, baixo e violão tomaram seus assentos para só então o charme de um tímido Jorge Drexler romper da coxia para a primeira das muitas ovações que receberia naquela noite especial: após 13 anos, o montevideano que deixou a medicina para ser músico voltava a tocar no principal palco do seu país. Não vou me recordar da sequência das músicas, mas não há como esquecer a troca de gentilezas entre artista e público por 2h30 de espetáculo.

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Enquanto na plateia não se avistava sequer um telefone celular, no palco Drexler agia como um anfitrião exemplar, fazendo-nos sentir como se o Solís fosse nossa casa

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Mesmo tocado pelo natural nervosismo inerente à estreia de uma turnê internacional, Drexler deixou todos à vontade: não se furtou de pedir ‘respeito aos cinquentões’ após arrancar assovios enquanto tirava o casaco. Passada metade da apresentação, sem cerimônias incluiu no set, de improviso, a canção pedida por alguma fã na multidão. Com a intimidade permitida somente aos conterrâneos, cantou lendo as músicas do novo álbum na partitura. Quando errou, não titubeou em recomeçar e da plateia também veio o conforto: “No te preocupes, Jorge. Estás en casa”. Quando acabou, precisou voltar duas vezes para render-se aos aplausos intermináveis de quem, após aqueles momentos, sentia-se um pouco mais amigo de Jorge Drexler.

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Para nós, recém-chegados mas profundamente adeptos ao que Vitor Ramil cunhou de estética do frio, sentir-se tão confortável no ambiente proporcionado pelo artista foi um afago inesquecível

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Lanna e eu sentimo-nos um pouco mais em casa na noite de 4 de outubro.  Tão em casa que após dois dias pudemos dizer isso pessoalmente a Drexler, num daqueles encontros casuais que são possíveis apenas em um país de escalas tão reduzidas quanto a vaidade de seus maiores expoentes, fazendo valer o dito de que por aqui ‘naides és más que naides’.

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O dilema de imigrar

Alvaro Andrade
12 de outubro de 2017

Imigrar não significa ignorar o que acontece no Brasil. Independente da distância, é impossível repercutir a espiral de retrocessos vividos desde o golpe de 2016. Ao mesmo tempo, sucita um dilema permanente, uma espécie de culpa de alguém que optou por um confortável autoexílio enquanto amigos e colegas tentam formar uma resistência aos constantes ataques a direitos que jamais imaginei que seriam retirados. Nasci em 85, sou filho de militante política criado no berço da democracia e da liberdade.

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E eis me aqui vivendo em outro país em busca de liberdades e oportunidades que vejo recrudescerem todo dia na terra onde nasci

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É uma angústia, uma sensação de impotência. Uma dúvida sobre minha dignidade em dizer alguma coisa sobre minha terra a partir do conforto da tela do celular enquanto a luta é travada no dia-dia. Mas também sei que no Brasil, tomar posição nesta disputa reduziu meu círculo social, que aliado à escalada da violência foram determinantes para trocar de endereço.

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Eu já não me sentia livre para me expressar, não me sentia mais confortável para circular, não via sentido no que estava fazendo

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Já faz quase meio ano e ainda fico dividido entre minha liberdade de escolher um local onde tenho tranquilidade para planejar a vida e o sentimento de egoísmo por deixar para trás os problemas de onde nasci. O futuro me parece cada vez mais tenebroso do outro lado da fronteira e não sei bem quando volto, até por que sinto ainda não consegui partir completamente.

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Abortos no Uruguai crescem, mas mortalidade de gestantes é a menor da América Latina

Alvaro Andrade
28 de setembro de 2017

O número de abortos continua crescendo no Uruguai, embora em ritmo menor que em anos anteriores. É o que revela recente balanço do Ministério da Saúde sobre os procedimentos supervisionados pelo governo em 2016. Na comparação com 2013, primeiro ano da legalização da prática, o número total anual cresceu 26,3%, totalizando 9719 procedimentos em 12 meses. Mas se comparado a 2015 o crescimento foi de apenas 3,7%.

O balanço ainda apontou uma pequena redução de 2,6% no número de abortos praticados por jovens com menos de 20 anos de idade entre os anos de 2015 e 2016. A queda mais expressiva foi faixa de até 15 anos de idade: no ano passado 74 meninas interromperam a gestação, enquanto no ano retrasado o número foi de 94. De 15 a 20 anos o número se manteve praticamente estável, totalizando 6 casos a menos que em 2015.

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Em 2012 o Uruguai tornou-se o quarto país da América Latina a descriminalizar o aborto, que só é permitida à cidadãs e mulheres residentes, em qualquer circunstância até a 12ª semana de gestação. Em casos de estupro, são permitidos até a 14ª semana

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Quando há risco para a mãe ou má formação do feto, podem ser feitos em qualquer período da gestação, sempre supervisionados por uma junta formada por assistente social, psicóloga e ginecologista encarregadas de verificar a certeza das pacientes quanto a realização do procedimento.

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Ainda de acordo com os registros oficiais, em 2016 apenas uma gestação foi interrompida porque a mulher foi vítima de violação sexual ante 20 em 2015, o ano com maior número de casos do tipo

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A legalização do aborto faz com que a taxa de mortes vinculadas a gravidez, parto ou aborto seja a mais baixa da América Latina. Segundo dados da Organização Panamericana de Saúde(OPS) e Organização Mundial de Saúde (OMS), a taxa uruguaia é de 14 mortes a cada 100.000 nascidos vivos.

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Já um estudo do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da Universidade Estadual de Campinas destaca que as mortes decorrentes de aborto em mulheres gestantes caíram de 37,5% no período 2001-2005 a apenas 8,1% entre 2011-2015

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A lei que permite o aborto ainda é alvo de polêmicas, especialmente no interior do país. Em reportagem do Jornalistas Livres,  ongs e coletivos feministas apontam que há uma grande resistência entre médicos de cidades do interior, que alegam objeção de consciência para receitar o abortivo Citotec às pacientes. A administração do medicamento, feito em casa pelas gestantes, também é outro aspecto que causa problemas: originalmente desenvolvido para combater úlceras, o Citotec provoca uma série de efeitos colaterais muito fortes, que não raro obrigam as mulheres a procurar as emergências hospitalares. 

Apesar das dificuldades, a realidade indica que assim como na legalização da maconha, a descriminalização do aborto também resulta em mais proteção ao cidadão, onde o Estado lhe proporciona a liberdade de tomar as próprias decisões e garante segurança ao invés de criminalizá-lo. 

Para saber mais, leia as reportagens de Página 12 e Jornalistas Livres.

 

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O que Alejandro tem a ver com Sendic, Lula e Temer

Alvaro Andrade
7 de setembro de 2017

Lembro que fazia muito mais frio que agora. Entre um mate e outro, meu primeiro amigo montevideano, o porteiro frenteamplista Alejandro, me apresentava seus conceitos sobre as distorções do regime bolivariano na era Maduro e a vergonha que sentia do ex-colega de faculdade Raul Sendic. Era uma das nossas primeiras charlas, mas logo ali percebi como a política é encarada de forma diferente pelos uruguaios, especialmente à esquerda. Alejandro representa um perfil medio que encontrei por aqui: independente da idade ou ocupação, em geral são politizados, indentificados com valores solidários e humanos, mas nem por isso cerrados em um fanatismo que os coloque em algum pólo extremo do espectro político.

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O motivo da vergonha de Alejandro sobre o hoje vice-presidente do Uruguai e epicentro de um dos maiores escândalos políticos do país nos últimos anos, se deve ao uso de cartões corporativos para despesas pessoais em free-shops enquanto era presidente da estatal de petróleo uruguaia no governo Pepe Mujica

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“En Brasil pasó lo mismo, no?” Me pergunta antes de roncar a cuia. “Si, Alejandro.” Pero en Brasil as coisas foram tratadas de forma diferente, a começar pela própria esquerda. No Uruguay, além do Alejandro e da mídia, O Mujica e a Frente Ampla também consideram errado usar dinheiro público em benefício pessoal. E deixaram isso bem claro.

A FA é uma frente política de centro-esquerda tecida por partidos políticos, movimentos  sociais e sindicais que detém uma grande penetração popular. Há espantosa quantidade de comitês instalados em praticamente todos os bairros do país.  Eles não são poucos: hoje é tão fácil encontrar um frenteamplista na Rambla de Montevideo quanto um Bolsominion na avenida Paulista.

Foto Carlos Lebrato, FA

Diversos setores da coalização que garantiu 15 anos de governo não mediram palavras para apontar os erros do vice-presidente que ajudaram a eleger e era o candidato ficha 1 para a presidência no ano que vem

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O caso será julgado em um tribunal do partido, que analisará um parecer emitido pelos colegas do Tribunal de Conduta Política em que afirma que a atuação de Sendic “..compromete sua responsabilidade ética e política” e denota um “modo de proceder inaceitável”. Eles dão voz à consciência política crítica do Alejandro e 62% dos uruguaios que acreditam que Sendic deveria renunciar.

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Não cedem ao pragmatismo eleitoral, não colocam na perspectiva das realizações de governo, não blindam Sendic como se fosse insubstituível

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Talvez a sanção final que ele irá receber não terá efeitos práticos, afinal, não tem validade jurídica e até agora não pesam sentenças contra ele. Mas a efervescência na base política forçou Sendic a percorrer cada um dos comitês de bairro para dar explicação, pedir desculpas, admitir equívocos e ouvir cobranças.

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Já não faz tanto frio quanto há três meses. Enquanto aqueço a água para o mate, assisto ao vídeo do Lula tentando explicar porque novamente está ao lado de Calheiros e cia. Assisto ao vídeo buscando alguma novidade que justifique o fato de eu ainda cogitar ir até a embaixada brasileira votar em Lula em 2018 para me livrar do Bolsonaro.

Pego a térmica e desço pra charlar com meu amigo.

O elevador abre e logo o Alejandro mostra no celular a foto do bunker de Geddel abarrotado de dinheiro.

Eso parece Narcos! Como ustedes llegaran a tal punto? Me pergunta incrédulo.

Enchi a cuia e apenas respondi que talvez nos faltem mais Alejandros no Brasil.

Foto de capa: Carlos Lebrato, Frente Amplio

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Maconha nas farmácias e o vanguardismo uruguaio

Alvaro Andrade
31 de agosto de 2017

A cena, mesmo que não comprovada, é muito plausível: separadas por menos de mil quilômetros, filas para comprar maconha formaram-se em duas cidades muito semelhantes do Conesul há cerca de um mês.

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Em Porto Alegre, a espera acontecia cercada de tensão, à noite, em uma famosa parada de ônibus de um bairro dominado pelo tráfico de drogas; Em Montevideo, a fila estava formada à luz do dia, em frente a uma farmácia de um tradicional reduto da classe média uruguaia.

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O estabelecimento foi um dos dezesseis pioneiros  na venda de cannabis produzida pelo próprio Estado, a última etapa do mais ambicioso modelo de regulamentação da droga já adotado na América do Sul. Enquanto no Brasil bocas de fumo como a da ‘Conceição’ vendem toneladas de maconha contrabandeadas do Paraguai e alimentam uma rede de corrupção que vai da polícia à política, o governo do Uruguai assume o controle da produção e distribuição e demonstra a viabilidade de uma nova forma de combater o poder do tráfico após o fracasso da guerra às drogas.

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A realidade entre as capitais é tão distinta que a distância entre as cidade deveria ser medida por décadas ao invés de quilômetros

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A legislação que vem sendo aplicada desde o governo de Pepe Mujica, em 2013, permite a todo cidadão uruguaio ou residente permanente consumir, plantar, participar de clubes de cultivo e, agora, comprar maconha em farmácias – que esgotaram o estoque de seis quilos e meio em menos de 12 horas de comercialização em Montevideo. Com problema em apenas 5% dos cadastrados, o início da venda já provoca aumento na busca tanto de usuários como de estabelecimentos. Aos novos interessados em adquirir, bastará ter 18 anos, ir a uma agência dos Correios, apresentar documento e comprovante de residência e registrar as impressões digitais para que minutos depois tenha direito a comprar até 10 gramas por semana a um custo inferior a R$ 50.

Nas ruas, um misto de orgulho e indiferença era manifestado diante das câmeras e microfones da imprensa internacional que registrava cenas históricas no auge do inverno no hemisfério sul.

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Enquanto usuários saíam das farmácias exultantes exibindo seus pacotes com duas variedades de cannabis, outra parcela da população observava os acontecimentos com menos deslumbramento

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Embora no Uruguai o consumo de maconha não carregue o preconceito imposto no Brasil, a legalização na Banda Oriental não chega a ser um consenso. Mas se por um lado setores encaram com desconfiança tamanha permissividade, não se pode dizer que a faixa etária defina este perfil. Pessoas de todas as idades e estilos eram vistas nas filas de farmácias, desmistificando rótulos pejorativos que normalmente são associados aos usuários.

A própria regulamentação do consumo proporciona transparência e dados que traçam o perfil médio dos consumidores. Segundo o Instituto de Regulamentação e Controle da Cannabis, homens residentes em Montevideo, com idade entre 30 e 41 anos, são a maioria dos consumidores cadastrados para comprar a erva cultivada pelo governo em instalações do Exército.

Cercada de mistérios, a última etapa da legalização deslanchou depois de uma série de titubeios do governo de Tabaré Vasquez, integrante da mesma coalização política de centro-esquerda que elegeu Mujica, mas com perfil mais conservador. Médico oncologista e ladeado por uma primeira-dama de tradição católica, o atual presidente aplicou – a contragosto – a última etapa da lei muito mais por compromisso com os partidos da Frente Ampla do que por convicção. Este contexto ajuda a entender a discreta comunicação do governo quanto ao tema, restrita a protocolares notas informativas.  No dia de início das vendas em farmácias, considerado histórico por muitos uruguaios, Vazquez recebia título de Doutor Honoris Causa na Argentina e encerrou a entrevista coletiva após ficar contrariado com jornalistas que insistiam nas repercussões sobre a última etapa da legalização.

O estilo low profile contrasta fortemente com a era Mujica, em que o ex-presidente se transformou em um pop star ao percorrer o mundo defendendo a proposta uruguaia e chegou a conceder uma entrevista enquanto repórteres fumavam maconha no pátio de sua chácara.

Apesar das tensões, não houve ruptura. A tradição laica e vanguardista que forjou a sociedade uruguaia prevaleceu e derrubou um novo tabu movido pelo mesmo sentimento que garantiu pioneirismo no direito das mulheres ao voto, ao casamento homossexual e a legalização do aborto.  Infelizmente o exemplo de progressismo continuará sendo exceção no mapa latino-americano, que caminha na direção oposta aos ventos de liberdade que sopram mais ao sul.