PodCasts

OUÇA Bendita Sois Vós #48 O elemento político das polícias

Geórgia Santos
2 de março de 2020

No episódio desta semana, as repercussões políticas e sociais da crise da segurança pública no Brasil. E quando se fala em crise da segurança, há dezenas de caminhos e abordagens. Neste caso, usamos o episódio do motim dos policiais militares do Estado do Ceará como ponto de partida para entender o papel das polícias na política.

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Os policiais encapuzados foram confrontados pelo Senador Cid Gomes, do PDT, que em uma ação bizarra no município de Sobral, pra dizer o mínimo, avançou com uma retroescavadeira sobre o grupo amotinado. Como resposta, levou dois tiros
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O caso foi chocante e desencadeou um debate sobre a legitimidade da ação dos policiais e das polícias em geral. Por isso, os jornalistas do Vós discutem a possibilidade de a polícia militar se tornar mais que um barco armado do Estado e passar a ter relevância no jogo político.

Participam Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no SpotifyItunes e Castbox.

Voos Literários

Precisamos de Elite da Tropa 3

Flávia Cunha
28 de fevereiro de 2020

Há muito se fala das ligações escusas de Jair Bolsonaro e de sua família com as milícias, mas agora o tema atingiu proporções difíceis de disfarçar, depois da morte do chefe miliciano Adriano da Nóbrega durante operação policial na Bahia, em circunstâncias ainda a serem esclarecidas. Adriano – ex-policial acusado de envolvimento na morte da vereadora Marielle Franco no Rio de Janeiro – tinha uma proximidade inegável com a família Bolsonaro. Familiares trabalharam para o então deputado estadual Flávio Bolsonaro, além de o filho 01 de Jair ter condecorado Adriano quando este ainda era policial. Depois, até fez visitas para ele na cadeia. 

Para completar esse mês de fevereiro com policiais fora da lei, explodiu um motim de PMs encapuzados no Ceará, levando a uma escalada de violência nas cidades cearenses. Até o momento da publicação desse texto, esses policiam seguiam paralisados, exigindo melhorias salariais. A questão é que quem atua na área da segurança pública é proibido por lei de fazer greve. Muitos especialistas consideram que essa onda de insurgência policial no Ceará foi promovida por PMs milicianos e adeptos do bolsonarismo. Policiais favoráveis ao uso da intimidação e de uma greve ilegal, em uma inversão do que se espera da corporação: a manutenção da ordem pública. Enquanto isso, o Exército e a Força Nacional foram chamados às pressas para dar conta da segurança da população, assustada diante de ações policiais que promoveram toques de recolher e ameaças para exigir o fechamento de lojas. Isso sem esquecer o episódio do senador licenciado Cid Gomes, baleado pelos policiais amotinados ao tentar entrar em um quartel com uma retroescavadeira. 

Essas notícias reais poderiam fazer parte do enredo de um livro semelhante a Elite da Tropa 2, focado na “banda podre” da polícia. A obra escrita pelo antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares, em coautoria com Rodrigo Pimentel, André Batista e Cláudio Ferraz, foi lançada em novembro de 2010, junto com a continuação de Tropa de Elite nos cinemas. No trecho a seguir, o personagem principal (um policial civil honesto) explica, através de uma conta no twitter, as relações entre milícias e política no Rio de Janeiro (e no Brasil):

“Estamos na merda porque policiais malpagos sobrevivem graças à insegurança. A degradação começa no bico e evolui até a milícia. about 16 minutes ago via web 

Havia, e ainda há, grupos de extermínio. Policiais tiravam graninha por fora matando quem atrapalhasse comerciantes e o sossego do bairro. about 15 minutes ago via web

Havia, e há, segurança privada informal. O bico. Policiais recebem pagamento de clientes voluntários. É ilegal, mas o serviço é decente. about 15 minutes ago via web 

Você jogaria a primeira pedra? PF e autoridades fingem que não veem por escrúpulo de reprimir ações decentes que compensam salários ruins. about 15 minutes ago via web 

Tem mais. Os governos toleram o bico porque, sem essa complementação, a demanda salarial levaria os policiais às ruas e o orçamento ao ralo. about 14 minutes ago via web

Entenderam? A segurança privada (informal e ilegal) financia o orçamento público da segurança. Maravilha! É o gato-orçamentário. Budget-cat. about 13 minutes ago via web

Sensacional: Brasil, paraíso da malandragem e do jeitinho. Você não olha o que faço e eu fecho os olhos pro que você faz. E está tudo certo. about 12 minutes ago via web 

Claro que sempre há os parasitas que recebem uma grana fixa ou um percentual do tráfico, das maquininhas caça-níqueis, do jogo do bicho. about 12 minutes ago via web 

Agora vem a melhor parte. O mar estava pra peixe, e os mais espertos avaliaram que era hora de virar tubarão e passar do varejo pro atacado. about 11 minutes ago via web 

Pronto, chegamos à máfia. Às milícias. Os espertos conclamaram os comparsas a organizar a bagunça e ganhar dinheiro feito gente grande. about 11 minutes ago via web 

Por que só os políticos ganham propina de empreiteiras, em licitações? Por que não cobrar taxa de tudo que tem valor, é útil ou gera renda? about 9 minutes ago via web 

Se o cara é policial, tem arma e sabe o caminho das pedras, por que não cobrar pelo direito de morar, vender, transportar, ter luz, gás, TV? about 8 minutes ago via web 

O Estado não usa força para cobrar impostos? Por que não fazer o mesmo com menos burocracia? Até ‘segurança’ os milicianos dariam em troca. about 7 minutes ago via web 

Começaram expulsando traficantes e os substituindo no domínio territorial e político das favelas e dos bairros pobres. Rico repele extorsão. about 7 minutes ago via web 

Os caras enriqueceram, se elegeram vereadores e deputados, absorveram parte da mão de obra do tráfico, explodiram delegacias e estão por aí. about 6 minutes ago via web 

Estão em toda parte: Zona Oeste e Sul, Baixada, São Gonçalo. Violentos e audaciosos. Matam, extorquem, torturam, humilham, sequestram. about 6 minutes ago via web 

Nas eleições, além de elegerem-se, diretamente, aliam-se a políticos corruptos e vendem acesso exclusivo a comunidades inteiras. about 4 minutes ago via web 

Com mandatos e aliados no coração do poder, ganharam relativa imunidade. […] about 2 minutes ago via web 

Pior é ver uns cretinos defendendo milícias. Não sei se são idiotas ou cúmplices, ou ambos. Hoje, andam meio envergonhados, os canalhas. about 1 minutes ago via web”

Certamente, um terceiro volume de Elite da Tropa nos ajudaria a entender melhor a conjuntura atual. Quem sabe, diante de todos esses episódios milicianos, os quatro autores, que têm muito conhecimento sobre corrupção policial e suas ligações com a política, não se animam a escrever um novo livro?

Confira uma cena de Tropa de Elite 2:

Imagem: Tropa de Elite 2/Divulgação

Reportagens Especiais

O Evangelho Segundo a Prisão . como as igrejas disputam a devoção dos presos em penitenciárias abandonadas pelo Estado

Geórgia Santos
10 de outubro de 2019

Em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, José Saramago promove o encontro de Cristo com Deus e o Diabo. Mas não é um Jesus santo. Não. É um Jesus humano. De carne. Gente. E a intimidade de uma conversa de 40 dias em que os três ficam confinados a um pequeno barco em alto mar faz com que essa humanidade seja levada ao extremo enquanto Deus e o Diabo disputam sua fidelidade com a mesma estratégia: a manipulação da palavra. Ambos fazem juras. Ambos prometem milagres. Ambos seduzem.

No que vamos chamar de O Evangelho Segundo A Prisão, mostramos que as igrejas neopentecostais fazem o mesmo. De certa forma, reproduzem a lógica sedutora da narrativa das facções para disputar a devoção desses detentos que também não são santos, mas humanos. De carne. Gente. Em casas penitenciárias abandonadas pelo Estado e geridas por facções criminosas que controlam até a comida, os missionários oferecem proteção e cuidado aos presos em troca de obediência. E segundo Gilmar Bortolotto, procurador de justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul, a religião, hoje, é a única alternativa de recuperação de um detento. “Só tem isso.”

A reportagem a seguir foi dividida em três partes que mostram, respectivamente, as condições do sistema prisional brasileiro e os motivos que levaram à superlotação dos presídios; a forma como as facções cooptam os novos apenados; e a maneira pela qual as igrejas evangélicas neopentecostais disputam a devoção desses mesmos detentos e se transformam na única alternativa de recuperação. No sistema prisional brasileiro, ceder à tentação, seja de Deus ou do Diabo, tem preço.

Culto de Natal na Penitenciária Estadual do Jacuí (PEJ). Foto: Geórgia Santos

A CADEIA. 1 Início do Evangelho Segundo a Prisão. 2 Está escrito no artigo 5ª da Constituição Federal, que trata dos direitos e deveres individuais e coletivos, que “todos são iguais perante a lei.” 3 Ainda, “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”. 4 Mas são versículos que não cabem aqui. 5 No Brasil, os presos são predominantemente jovens negros com pouca ou nenhuma escolaridade. 6 O país tem a terceira maior população carcerária do mundo e não há vagas para todos. 7 As penitenciárias estão superlotadas. 8 Os detentos são submetidos à condições degradantes. 9 E o Estado não tem controle sobre eles ou sobre os espaços.

 

Para o senso comum do brasileiro médio que habita as caixas de comentários do Facebook e sites de notícia, o presídio perfeito é um forte. Algo como um calabouço. Talvez deva se parecer com uma masmorra. Idealmente, os presos devem sofrer muito. Danem-se, não tem mais volta. Sem privilégios, devem comer o mínimo e dormir não mais do que o suficiente. Devem estar ocupados, mesmo que seja em trabalho forçado. De preferência com uma bola de ferro amarrada às canelas, como em um filme de Clint Eastwood, que imortalizou o presídio mais famoso do mundo no filme Fuga de Alcatraz. “Bota uma bola de aço com uma corrente na perna e deixa na rua”, aconselha o leitor de uma reportagem sobre presos empilhados dentro de camburões. “Como diz o Bolsonaro, é só não matar, roubar, estuprar. Que não se vai pra lá e acabou chega de reclamar querem hotel 5 estrelas me poupe!”, diz outro, esquecendo a compaixão e as vírgulas. Um terceiro avisa que uma bala de munição custa somente R$ 5.

A Penitenciária Federal de Alcatraz, em São Francisco, nos Estados Unidos, talvez seja a epítome desse imaginário. Situada em uma ilha cercada por correntes marítimas gélidas, era praticamente impossível de escapar. A severidade fez com que se tornasse um exemplo do sistema carcerário estritamente punitivo. Durante o período de funcionamento, entre 1934 e 1963, os presos mantinham uma rotina rígida, com horário para acordar, fazer refeições e dormir e o livro de regras continha 27 itens que não podiam ser desobedecidos sob hipótese alguma. A regra número 5 tratava do que diziam ser favores: “Você tem direito a comida, roupas, abrigo e atenção médica. Qualquer outra coisa que você recebe é um privilégio.” Se algum dos itens fosse desobedecido, as punições formais e informais variavam da tortura à morte. Também havia o confinamento na solitária, uma cela de dois metros quadrados em que o preso recebia banhos de água fria, dormia no chão, e era privado de comida e luz por tempo indeterminado. Supostamente, tratava-se do melhor e mais eficiente sistema de punição das américas, pelo qual passaram Al Capone e George “Machine Gun” Kelly.

Com exclusividade, entrevistamos o detento 1259AZ de Alcatraz, o último ainda vivo. William G. Baker começou a vida no crime quando tinha 18 anos, em Oregon, nos Estados Unidos. Depois de escapar da prisão estadual, roubou um carro, foi capturado e transferido para Alcatraz aos 23 anos, onde permaneceu entre 1957 e 1960. Ele não era necessariamente um preso exemplar e foi alvo de muitas das punições dos guardas. Mas isso não parece ter solucionado o problema. “Eu era um criminoso melhor (mais competente) quando eu saí de lá”, disse, com um sorriso irônico no rosto. Ele aprendeu a falsificar cheques com outro detento e foi o que ele fez até quase 80 anos. Viveu do crime e lucrou até a velhice com o “ofício” que aprendeu dentro da cadeia. Dentro da mais severa e mais rígida cadeia.

 

A história de Baker é apenas um exemplo, mas é também um indício de que um sistema carcerário estritamente punitivo pode não ser a solução, mesmo que funcione do ponto de vista administrativo. “Presídio que funciona não é só o presídio que tem tudo certinho. Presídio americano tem muito investimento, mas a reincidência é parecida com a nossa”, explica Gilmar Bortolotto, procurador do Ministério Público do Rio Grande do Sul.  Ele diz que um dos problemas, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, está no fato de que o número de entrada de presos não para de crescer – e 70% deles passam pelo sistema carcerário mais de uma vez.

Hoje, o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo em números absolutos, atrás apenas de Estados Unidos e China. Segundo dados do Levantamento Nacional De Informações Penitenciárias (Infopen) de junho de 2017 e divulgado em 2019, o Brasil tem 726.354 pessoas privadas de liberdade. Marcos Rolim, que é jornalista, sociólogo e especialista em segurança pública, entende, no entanto, que a quantidade de presos no Brasil deve ser maior.  É preciso considerar a defasagem dos dados.  Com um crescimento médio de 8% ao ano, é provável que o país já tenha mais de 800 mil apenados. “E isso vai levar o Brasil rapidamente a uma população de mais de um milhão de presos dentro  de um ou dois anos. É muita gente presa”, diz.

“E isso vai levar o Brasil rapidamente a uma população de mais de um milhão de presos dentro  de um ou dois anos. É muita gente presa”

Marcos Rolim, especialista em Segurança Pública

Mas mesmo os números mais conservadores são expressivos. A taxa de aprisionamento no Brasil é de 352,6. Isso significa que há 352,6 pessoas presas para cada grupo de 100 mil habitantes. Em 2000, essa taxa era de 137. O dado fornecido pelo Infopen indica que a quantidade de pessoas presas no Brasil é duas vezes maior que a registrada há dez anos e oito vezes maior em 1990, quando a população carcerária de todo o país era de 90 mil. São 636 mil presos a mais.

A proporção desse crescimento revela que há um processo de encarceramento em massa em curso, que além de evidenciar o número de presos, chama atenção para a capacidade discutível da prisão de reduzir a violência e para a desproporcionalidade racial e etária. No Brasil, o perfil do detento não é aleatório: 56% das pessoas privadas de liberdade são negras; 34% estão presos sem condenação; 54% tem entre 18 e 29 anos; 89% não concluíram os estudos, ou sequer começaram (entre analfabetos e Ensino Médio incompleto). Ou seja, a maioria é negra, jovem e com estudo incompleto.

A chance de ser preso está diretamente ligada ao grau de escolaridade, à posição na estrutura de classes, faixa etária e cor. Isso acontece tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos. Erin Haney é conselheira sênior da organização americana conhecida por CUT 50, uma iniciativa nacional e bipartidária que tem o objetivo de reduzir a população carcerária nos EUA. Segundo ela, o encarceramento em massa tem o racismo e o classismo na base. “É evidente o reflexo desses males ao fazermos uma análise das sentenças proferidas pelos juízes. Com isso, nós podemos rastrear a origem do encarceramento em massa até a escravidão.” Ela explica que hoje há mais pessoas negras sob a custódia do governo americano e privadas de liberdade do que naquele período. Isso significa que a chance de ser preso nos Estados Unidos é maior para uma pessoa negra. E os números do Infopen deixam claro que a realidade no Brasil é a mesma.

O sociólogo Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, professor e pesquisador da PUCRS e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, explica que o aumento no número de prisões é também consequência direta da política criminal punitiva adotada pelo Estado brasileiro, que aplica pena de prisão em situações em que se poderia utilizar outras medidas – especialmente no caso de jovens réus primários. Dessa forma, o propósito correcional da prisão é substituído por um modelo em que os presídios se tornam depósitos de indivíduos. “E isso não funciona, porque essa é a receita que o Brasil tem adotado e ela não tem contribuído de forma alguma para que o problema seja, de alguma maneira, equacionado.”

O juiz Sidinei Brzuska, da Vara de Execuções Penais de Porto Alegre, acompanha a situação da superlotação das casas prisionais desde o final da década de 1990 e concorda que um dos fatores para o aumento no número de presos diz respeito à forma como o país vem enfrentando o tráfico, a chamada “Guerra às Drogas”. “Há 20 anos, a quantidade de pessoas presas por tráfico ou crimes relacionados ao tráfico era menos de 5%. Hoje as pessoas condenadas por tráfico ou crimes relacionados talvez seja superior a 80%. Porque você tem porte de arma relacionado ao tráfico, roubo, receptação, tudo está relacionado”, explica.

Segundo Brzuska, o Brasil adota o combate ao tráfico pela repressão penal e não ataca o que se conhece por “ciclo completo”. Ou seja, não há uma preocupação do Estado  no que se refere à desativação dos pontos em que a droga é comercializada, assim como não há uma preocupação com o tratamento do usuário viciado. “Se faz o enfrentamento do tráfico pela apreensão de drogas e pela prisão de traficantes. Você faz o enfrentamento do tráfico pelo viés da repressão”. Isso não faz com que o crime perca força, apenas interrompe brevemente. E o resultado prático e imediato é um número maior de pessoas presas.

Um segundo problema, de acordo com o magistrado, é a forma como se negligencia a primeira infância. Outra falha do Estado que fica evidente quando se observa que 51% dos presos tem Ensino Fundamental Incompleto, ou seja, a maioria da população carcerária chegou a frequentar a escola mas desistiu na adolescência ou antes. Foi o que aconteceu a Eduardo Pauly, 31 anos. Ele lutou por mais de uma década contra o crack e o alcoolismo e foi preso por assalto. Hoje ele é pastor da Igreja Assembleia de Deus. Mas mesmo recuperado, não esquece como tudo começou. Aos onze anos, recebeu um bilhete da mãe:

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“ESCOLA ESTADUAL DE PRIMEIRO GRAU CANADÁ. ÔNIBUS CAPÃO DA PORTEIRA – PASSO DO VIGÁRIO.
CIDADE VIAMÃO.”

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Ela pegou o guri pela mão e levou a criança até a rodoviária de Novo Hamburgo. Desacompanhado, Eduardo embarcou em um ônibus sem saber exatamente para onde ia. Sequer tinha consciência de que estava, efetivamente, sozinho. “Fiquei quatro anos interno num colégio porque eu tinha o sonho de criança de ser veterinário e fui pra lá pra fazer o curso técnico em agropecuária. E lá, sem mãe e sem pai, tive o contato com as drogas. Sem nenhum tipo de amparo”, desabafou. No primeiro ano longe de casa, ele encontrou suporte na dormência de drogas pesadas. Aos 17 anos, já era viciado. “O crack me escravizou. Primeiro tirou meus sonhos, eu desisti dos meus sonhos. O meu objetivo era conseguir mais uma pedra, dar mais um teco. Eu não queria mais ser veterinário, eu queria usar mais droga. Eu saía de uma realidade que eu enfrentava e passava um momento mínimo de prazer que depois me trazia grandes frustrações. Comecei a roubar e, roubando, fui parar dentro de uma penitenciária”, contou. Virou estatística. Virou número. Um número que só aumenta.

Eduardo Pauly, ex-detento. Foto/arte: Geórgia Santos

Brzuska explica que é também nessa fase da adolescência em que se desenvolve a ideia de pertencimento. E quando tem esse vácuo do não-pertencimento, o que sobra para um jovem que teve uma primeira infância negligenciada inclusive pelo Estado e está vulnerável em áreas periféricas é o pertencimento à facção. “Aí vem o empoderamento que o crime dá, dá uma arma, vai fazer uma selfie com uma arma, com celular novo de última geração. E o próximo passo é a prisão,” conta.

Como um terceiro motivo para o aumento expressivo no número de apenados, o juiz da Vara de Execuções Penais ainda cita a forma com que os estados dispõem as polícias, sobretudo as militares – fator esse que está diretamente relacionado à disparidade promovida pelo racismo e classismo. Sidinei Brzuska mostra o exemplo do Rio Grande do Sul, em que o número de pessoas condenadas aumentou em dez vezes quando José Ivo Sartori assumiu o governo, a partir de 2015, e as autoridades da área da segurança alteraram o posicionamento do policiamento ostensivo. Na administração anterior, a média era de mil pessoas condenadas por ano. Em 2016, esse número passou para 6 mil; em 2017, pulou para 8 mil; e, em 2018, chegou a 10 mil. “Você troca a forma de manejar a polícia militar. Se você coloca uma viatura na esquina da praça da Encol [região de classe média alta de Porto Alegre], outra na esquina do Shopping Iguatemi, vão cruzar milhares de pessoas nesses dois pontos e não vão prender ninguém. Se você deslocar essas viaturas algumas quadras para dentro das vilas, já muda tudo”, conta Brzuska.

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“Você troca a forma de manejar a polícia militar. Se você coloca uma viatura na esquina da praça da Encol [região de classe média alta de Porto Alegre], outra na esquina do Shopping Iguatemi, vão cruzar milhares de pessoas nesses dois pontos e não vão prender ninguém. Se você deslocar essas viaturas algumas quadras para dentro das vilas, já muda tudo.”

Sidinei Brzuska, Juíz da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre

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A estatística policial é expressiva e o alto número de prisões promove uma sensação de segurança. Vem na esteira da narrativa que ganha força no governo federal, que é de endurecimento da lei, de aumento das penas, redução da idade penal e extinção da progressão. Mas o problema continua não sendo atacado na raiz, apenas do ponto de vista da repressão. E é um problema que se acentuou muito nos últimos dez anos. “Um pouco tem a ver com a questão da lei em que o usuário passou a ser tratado como traficante”, diz Brzuska.

Em 2006, a nova Lei de Drogas sancionada pelo então presidente Luíz Inácio Lula da Silva (PT) prometia não encarcerar mais os usuários. Seria um ponto importante para reverter o crescimento do número de pessoas presas por crimes ligados às drogas. Mas a definição de quem seria usuário e quem seria traficante e da quantidade de droga que separa um do outro ficou nas mãos da polícia. Relatório da ONG Human Rights Watch mostra que a nova lei se tornou um fator fundamental para o aumento da população carcerária no Brasil. Hoje, um em cada três presos brasileiros responde por crimes ligados ao tráfico.

O sociólogo Marcos Rolim conta que essa legislação vai na contramão do que propõem outros países em que a quantidade de droga apreendida é um fator importante no momento de diferenciar o usuário do traficante, como Estados Unidos e Espanha. “Aqui nós não criamos nenhuma referência objetiva para diferenciar. Se tu fores pega com um cigarro de maconha e a polícia achar que é pra venda, vai ser presa pelo mesmo crime que um cara que está transportando uma tonelada de cocaína, não tem diferença”, diz. Mas tem uma diferença – ou duas. De novo, voltamos à questão da cor e a classe. “Se é pobre, é traficante. Se é rico, é usuário”, explica. L. tem 23 anos é o exemplo de cartilha dessa situação. “Eu não sou santo, mas me prenderam porque eu tinha um baseado. Me jogaram aqui. Mas eu não sou traficante, cara”.  L. é negro e de família pobre. Não teve a menor chance.

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Se é pobre, é traficante. Se é rico, é usuário.

Marcos Rolim, especialista em Segurança Pública

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O encarceramento em massa é um problema em si, mas é um processo que desencadeia uma série de efeitos colaterais porque, além do fator da quantidade de presos, há o problema da quantidade de vagas. Não há espaço para todos. Há apenas 423.242 vagas para os mais de 726 mil detentos. Isso gera um déficit de 303.112, segundo os dados divulgados pelo Infopen neste ano. Há praticamente dois presos por vaga no Brasil, uma taxa de ocupação de 171,62%. Mas também neste caso, segundo Rolim, são números conservadores em função da metodologia utilizada para contabilizar tanto a população carcerária quanto o déficit de vagas. “Quem informa é o diretor da penitenciária. Ele usa o critério da praxe prisional. Na praxe prisional, em cada cela cabem quatro, então, eles contam quatro vagas por cela. Se tiver cinco caras em uma cela, está faltando uma vaga.”

O problema  é que o critério legal indica que cada cela foi construída para um detento. “E o único critério que deve ser utilizado é o critério legal, que determina 6m2 por preso. O juiz teria que entrar no presídio e medir a área de instalação e ver quantos presos tem naquele espaço, e isso nunca se fez. E essa medida é dada pela legislação nacional e por todos os tratados internacionais aos quais o Brasil subscreveu”, explica Rolim.

O procurador do Ministério Público Gilmar Bortolotto atribui o problema à falta de cuidado do Estado de maneira geral. O Presídio Central de Porto Alegre, por exemplo, é a maior casa prisional do RS e já foi considerado o pior presídio do país pela CPI do Sistema Carcerário. Quando foi criado, em 1959, os funcionários geriam a penitenciária da maneira que achavam adequado e o poder público foi, aos poucos, abandonando, segundo o procurador. “Era uma lógica de “vai empilhando, só não pode dar estouro”. Quando deu o primeiro estouro, que os presos foram parar dentro do Plaza, tinha 10 funcionários pra gerenciar 1.773 presos no Central. Eles andavam com facão na cintura e eram usados como guardas. Desde lá, o Estado passa um só recado para o funcionário: é contigo. E o que o funcionário faz? Passa a responsabilidade para o preso. Obviamente eu estou falando em condições extremas de como isso começou lá atrás, mas é uma lógica que explica porque estamos nessas condições.”

Há 20 anos, Bortolotto foi transferido do interior para Porto Alegre como promotor da Promotoria de Justiça de Controle e Execução Criminal da capital, criada justamente para fiscalizar os presídios. Já em 1998 ele deparou com um sistema cheio de problemas. Antes de mais nada, decidiu ouvir. “Me sentei dentro das cadeias, cada dia em uma, e em alguns meses eu ouvi cerca de 3 mil presos. ?E comecei a entender um pouquinho melhor a lógica. Um pouquinho. Porque entender a lógica demora mais de década”, disse. Ele passou a ouvir também os familiares dos apenados, uma média de 10mil por ano, e egressos. Esse trabalho permitiu que o então promotor fizesse um mapeamento do sistema carcerário gaúcho.“Os presos começaram a trazer demandas que eram causas de rebelião e mortes. Desde colocarem gente que não podia estar ali (intencionalmente) até pequenas demandas que não tinham resposta, como de quanto era a pena e outros prazos. Encontrei, inclusive, muitas pessoas que já tinham cumprido a pena e ainda estavam lá. Prisões preventivas que tinham sido revogadas mas havia defeitos na comunicação. Decisões do juiz que não eram informadas. E, claro, em um ambiente de ignorância, os caras pedem uma vez, pedem duas, na terceira, botam fogo”, explica.

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 “Os familiares vinham também, “tem um que vai ser executado”; “outro que tá com tuberculose”; “outro que foi morto e enterrado dentro da área do semi-aberto”. Nós descobrimos vários cadáveres enterrados de gente que a mãe ia lá falar comigo e dizia: disseram que meu filho fugiu mas ele não apareceu em casa. A gente ia lá, conversava com os presos e descobríamos o corpo.”

Gilmar Bortolotto, Procurador de Justiça do MP-RS

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Os relatos de problemas se empilhavam e maioria estava relacionada à extorsão e violência. Bortolotto criou uma sistemática em que visitaria os presídios uma vez por mês para ouvir as demandas dos apenados e traria a resposta no mês seguinte. Nesse processo, chegava a atender 1500 homens por mês no Central. Mas eram mais de 20 casas prisionais. “Os familiares vinham também, “tem um que vai ser executado”; “outro que tá com tuberculose”; “outro que foi morto e enterrado dentro da área do semi-aberto”. Nós descobrimos vários cadáveres enterrados de gente que a mãe ia lá falar comigo e dizia: disseram que meu filho fugiu mas ele não apareceu em casa. A gente ia lá, conversava com os presos e descobríamos o corpo.”

OUÇA . Gilmar Bortolotto, procurador do MP-RS, diz que a sistemática que ele desenvolveu não resolveu todos os problemas, mas auxiliou a gerar uma espécie de cultura de paz, em que os presos entenderam que não precisavam “fazer o horror” para ter uma resposta.

 

Mas outros problemas relatados por presos e familiares não estavam relacionados à intimidação ou chantagem, e sim a questões de infraestrutura e modus operandi das autoridades de segurança dentro das casas prisionais. O relatório da ONG Human Rights Watch – assim como os relatórios de inúmeras visitas técnicas promovidas por comissões de parlamentares do Congresso Nacional e assembleias legislativas dos estados e até de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) –  revela que os detentos vivem em condições insalubres, em celas escuras,  sem ventilação e expostos a inúmeras doenças. O Mecanismo Nacional de Combate e Prevenção à Tortura ainda relatou casos de tortura em todos os estabelecimentos prisionais visitados entre abril de 2015 e março de 2016.

Os efeitos perversos do encarceramento em massa são prova de que  o Estado perdeu o controle. E não existe vácuo no poder. Segundo o professor Rodrigo Azevedo, se o Estado não tem condições de assumir o controle das penitenciárias, elas se tornam terreno fértil para o crime organizado. “Nós temos dois presos, praticamente, hoje, no Brasil, por vaga. Isso acaba dando às facções, que se organizam nesse ambiente, um poder muito grande. Porque elas acabam, com isso, tendo uma capacidade muito grande de cooptação de quem entra no sistema.”


AS FACÇÕES. 10 A superlotação impede o Estado de separar presos que pertencem ao crime organizado do restante da população carcerária. 11 Dessa forma, aumenta o poder de cooptação de novos presos por facções criminosas. 12 As organizações oferecem drogas, dinheiro, proteção, espaço e comida. 13 Em troca, exigem lealdade ao código e trabalho. 14 É um contrato impossível de romper. 15 Isso aumenta o poder das facções, que transformam as penitenciárias no sistema bancário do tráfico. 16 Dessa forma, o crime organizado assume o controle da prisão. 17 Aumenta a violência externa. 18 E torna impossível a recuperação de um apenado. 

Eduardo Pauly, que conheceu as penitenciárias da pior forma, é muito claro. “O presídio não tem condições alguma de recuperar um detento, a não ser produzir nele mais ódio, mais raiva, mais rancor.” No Rio Grande do Sul, um dos casos mais graves é o do Presídio Central. A Cadeia Pública de Porto Alegre tem capacidade para 1824 pessoas e abriga 4299 presos. São 2,3 presos por vaga. Em função da superlotação, a maior casa prisional do Estado já não divide os presos por celas. Lá, os apenados estão em 24 galerias localizadas em nove pavilhões cobertos por colchões no chão. Isso causa problemas de logística, por exemplo, já que as refeições precisam ser levadas até os presos – afinal, não há funcionários ou espaço suficiente para transportar mais de 4mil pessoas aos refeitórios, três vezes por dia. A equipe é composta por apenas 300 policiais militares e 70 funcionários da Superintendência de Serviços Penitenciários (Susepe). Mais do que isso, todos convivem, diariamente, com infestação de ratos e baratas; lixo acumulado no pátio;  e banheiros com infiltração que forçam os presos a escoar as fezes por encanamentos improvisados com garrafas PET.

O Central é o maior e talvez o presídio mais emblemático quando se pensa em condições degradantes. Mas não é o único em que há graves problemas estruturais. Não é o único no país e sequer no Estado. A Penitenciária Estadual do Jacuí (PEJ) é a segunda maior do Rio Grande do Sul e abriga 2572 presos em 1372 vagas. Eduardo Pauly passou por lá após ser preso por roubo e conta que as condições são degradantes. “Era tudo sujo, não tinha a menor condição. A gente enxergava rato e barata por tudo. Em algumas celas, todo chão ficava molhado, tinha lixo espalhado, pessoas com doenças, tipo tuberculose. Tinha comida vencida, mosca em cima. Só a galeria dos irmãos era limpa e organizada, o resto não tinha condição. Era desumano. Eu sei que as pessoas ali cometeram crimes, mas era desumano.”

A gente enxergava rato e barata por tudo. Em algumas celas, todo chão ficava molhado, tinha lixo espalhado, pessoas com doenças, tipo tuberculose. Tinha comida vencida, mosca em cima.

Eduardo Pauly, ex-detento da PEJ

Para dar um exemplo do problema, ele nos mostra trechos da reportagem “O pior lugar do mundo“, exibida pela RBSTV em 2012, quando a PEJ foi interditada pela justiça. Ele tinha razão, estava tudo ali. Os insetos, o lixo, o banheiro sem vaso sanitário, sem esgoto. Pessoas doentes isoladas em celas fétidas. “Como que um lugar aonde a pessoa é desprezada, esquecida, mal tratada, poderá mudar a situação de uma pessoa?”, desabafa Eduardo.

E os líderes das principais facções criminosas sabem disso. Eles sabem que as penitenciárias superlotadas e sem infraestrutura não tem condições de recuperar ninguém e se aproveitam disso. O procurador do Ministério Público do Rio Grande do Sul Gilmar Bortolotto explica que, atualmente, o ambiente carcerário não é dominado pelo Estado. Isso significa que há um vácuo deixado pelo poder público que é preenchido justamente pelas facções criminosas que se aproveitam desse vazio para aumentar o poder material e de recursos humanos. E nesse caso, não interessa o preso que já é faccionado, esse já vai solicitar transferência para um presídio que seja dominado pela facção da qual faz parte. O problema está no contato da facção com o homem que é preso pela primeira vez. “Tu olha pro Estado, o que tem pra o preso? Nada. Aí tu olha pra facção, os caras te oferecem 3 mil pra trabalhar em uma boca de segurança. O que tu vai pegar?”, questiona Bortolotto.

OUÇA . Gilmar Bortolotto, procurador de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul, explica como acontece a cooptação

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A socióloga Camila Nunes Dias realizou uma pesquisa em penitenciárias de São Paulo durante os anos de 2003 e 2004 e identificou que o sistema prisional não admite uma variedade muito ampla no que se refere às identidades possíveis para um apenado.  Segundo Camila, há dois mundos antagônicos e opostos: o mundo do trabalho e o mundo do crime. Ao primeiro se associam as normas de conduta e valores que regulam a vida em sociedade de maneira geral.  Quem se identifica com o chamado “mundo do trabalho” se coloca à margem de facções criminosas e valorizam o trabalho, a família, a edução e traçam planos para retornar à sociedade. Mas isso não significa que esses presos não estejam também submetidos ao sistema normativo da cadeia, a que se chama de “código delinquente.”

Esse conjunto de regras se baseia, especialmente, na lealdade aos pares e nas atividades ligadas ao comércio e uso de drogas dentro da cadeia – e o código máximo é não delatar o companheiro. Esses dois pilares são sustentação ao segundo universo, o mundo do crime, e norteiam – mais do que as normas da administração prisional –  as relações dentro do sistema carcerário. Isso significa que o código delinquente deve ser seguido à risca por todos. “A desobediência ou a infração a alguma dessas regras ou leis acarreta sanções, que vão desde agressões físicas até a morte do transgressor.”

Camila ainda ressalta que quanto mais as facções se organizam dentro do sistema, esse código adquire formas mais perversas que diz respeito justamente ao fato de os líderes das organizações criminosas se tornarem responsáveis pelo funcionamento do sistema social prisional. Edson Ramiro da Silva havia saído da prisão há apenas 19 dias quando conversou conosco. Permaneceu em regime fechado por 3 anos e 4 meses. Natural de São Leopoldo, foi preso por tráfico de drogas. Cinco vezes. Ele garante que não pertencia à nenhuma facção, que era “só” viciado. Mas também diz que isso durou pouco.“Tu vai pra dentro da galeria e aquilo é uma escola do crime. Não tem como não te envolver. Ou tu faz parte porque tu quer ou porque eles te obrigam. Eles te ajudam com coisas, com dinheiro, dão apoio, às vezes droga. E aí não tem o que fazer”, contou.

“Ou tu faz parte porque tu quer ou porque eles te obrigam. Eles te ajudam com coisas, com dinheiro, dão apoio, às vezes droga. ”

Edson Ramiro da Silva, ex-detento

Sobre o envolvimento com a facção, fez mistério. Disse que não tinha Jesus na vida, mas encontrou a salvação na palavra de Deus largou o crime. Foi inspirado por Eduardo, que conheceu na PEJ. Mas, segundo ele mesmo, a maioria não consegue se livrar. 

Penitenciária Estadual do Jacuí (PEJ) – Foto: Geórgia Santos

O professor Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo explica que o mecanismo de cooptação das facções dentro do ambiente carcerário ainda tem um efeito colateral externo: aumentam a violência urbana tanto na disputa de territórios quanto na prática de outros crimes. Se a política de guerra às drogas adotada pelo Estado brasileiro é equivocada porque gera um aumento desproporcional no número de presos, ela também é equivocada porque desencadeia uma série de eventos violentos na sociedade. Hoje, se faz o enfrentamento do tráfico pela apreensão de drogas e pela prisão de traficantes. Ou seja, utiliza-se o viés da repressão. Mas não há política pública que atue na desativação do ponto de comercialização e no tratamento do usuário viciado.

O juiz da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre, Sidinei Brzuska, explica que isso culmina com o aumento da violência em uma lógica perversa. “Se você não desativa o ponto e não trata o viciado, e você apreende a droga além de prender, você acaba descapitalizando aquele ponto – que segue ativo. Como esse ponto segue ativo e o traficante está descapitalizado, ele vai se capitalizar. E ele não vai buscar linha de crédito no BNDES ou na Caixa Federal, vai buscar o dinheiro na classe média pela via do roubo. Então, a apreensão de drogas sem a desativação do ponto e sem o tratamento do usuário, por via oblíqua, gera roubo. Por isso você tem muito roubo de carro, de banco, de celular. Porque isso está, pela via oblíqua, suprindo a linha de crédito daquele ponto de tráfico que não foi desativado. O dinheiro que abastece o tráfico é da classe média, seja pelo consumo ou vitima de roubo”, desenha. Isso sem contar que chega o momento em que a prisão constante de traficantes gera uma desestabilização nos pontos de comercialização. E aí partir daí surgem as disputas violentas por território, para ver quem assume o comando. E assim surgem as guerras de facções que geram um aumento expressivo no número de homicídios..

O juiz Brzuska não critica a prisão dos traficantes, obviamente, mas aponta para a necessidade de desativação concomitante dos pontos de venda a partir da elaboração de uma política pública multidisciplinar. “A repressão, pura e simples, não funcionará sem uma política de arruamento, saneamento básico, de cultura, de lazer, de esporte, você precisa de uma ação transversal pra desativar aquele ponto”, explica o magistrado. É preciso compreender, então, que todo roubo e assalto estão diretamente ligados à guerra às drogas. Ao tráfico, sim, mas também à forma com que se combate o tráfico. “O sujeito que vem roubar a pé, na corrida, é viciado e só quer dinheiro. Mas o sujeito que já vem com outro carro, que tem arma, isso é capitalização de boca”, conta Brzuska.

Com toda essa circulação, entre cooptação e capitalização, o movimento e demandas do tráfico cresceram muito. Como consequência, os presídios passaram a gerir uma quantidade gigante de dinheiro. Segundo Brzuska, os presídios viraram o sistema bancário do tráfico. “Tu verifica isso aqui em Porto Alegre pela questão do fuzil. Dez anos atrás, praticamente não tinha fuzil em Porto Alegre. Ele é mais utilizado para fazer segurança da boca, e como é uma arma cara, 30, 40, 50 mil, dependendo da arma, o traficante pequeno não consegue ter, porque é um investimento muito caro. Então esse traficante tem que entrar em rede para essa rede fazer a segurança do ponto. Senão ele não consegue competir. E no tráfico, a facção é essa rede que dá proteção e fornecimento. E esse dinheiro é controlado de dentro da prisão. O dinheiro circula digitalmente por dentro da prisão. Todo o comércio é controlado de dentro. Circula por ali. Não tá entrando malote de dinheiro, mas digitalmente esse dinheiro tá circulando ali dentro.”

OUÇA . Sidinei Brzuska, juiz da VEC  de Porto Alegre, explica como os presídios se tornaram o “sistema bancário do tráfico”

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O dinheiro circula digitalmente por dentro da prisão. Todo o comércio é controlado de dentro. Circula por ali. Não tá entrando malote de dinheiro, mas digitalmente esse dinheiro tá circulando ali dentro.”

Sidinei Brzuska, Juiz da VEC de Porto Alegre

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Todas as informações que se tem a respeito do sistema penitenciário brasileiro dão conta de que a cultura não é de recuperação. Tanto é assim que, segundo o procurador do MP-RS Gilmar Bortolotto, 70% dos presos voltam para a prisão. “Quando se olha para essa taxa de retorno, não se pode concluir que não adianta fazer nada porque os caras são ruins, mesmo. Não adianta fazer nada, não. Não estamos fazendo nada. E por isso a taxa é de 70%”, desabafa. O sociólogo Rodrigo Azevedo ressalta, então, a necessidade de mudar a receita. “Nós precisamos repensar a utilização da prisão para crimes em que ela realmente pode ter um efeito dissuasório preventivo, precisamos retirar o tema do mercado da droga, ou seja, pequenos traficantes presos não modificam em nada o problema e acabam até agravando pela superlotação e pelo fornecimento dessa mão de obra às facções e esse talvez seja um tema prioritário em se tratando de superlotação carcerária.”

Hoje, há poucas alternativas. O procurador Bortolotto provoca. “Tu tem que te imaginar no lugar do preso e se perguntar: por que eu mudaria minha lógica? O que me faria desistir do crime? Hoje, o que mais faz desistir do crime ainda é religião – dentro da cadeia. Porque só tem isso”. E só tem isso.

A cooptação de presos por facções ocorre de duas formas: medo ou sedução. A narrativa da sedução se refere justamente às juras e promessas que o Diabo faz ao Jesus humano de Saramago. Mas não esqueçamos da ficção no autor português, Deus lança mão das mesmas estratégias para convencer Jesus a entregar a ele sua devoção. O Evangelho Segundo A Prisão, funciona da mesma forma. O medo vem da narrativa de que o Jeová do antigo testamento é cruel no julgamento do que se faz em vida, a menos que haja arrependimento daqueles que pecaram contra os mandamentos. A sedução aparece quando as igrejas evangélicas neopentecostais estendem a mão a apenados abandonados com juras e promessas que garantem cuidado, proteção, comida, roupas limpas e a garantia de uma vida de retidão ao reencontrar a liberdade. Tanto o medo quanto a sedução são insistentes, não aceitam não como resposta. Cercam os desesperados até que se rendam e se entreguem ao Senhor. Independente de qual seja.


AS IGREJAS. 19 No Evangelho Segundo A Prisão, a única maneira de um apenado se recuperar no sistema prisional tradicional é por meio da conversão. 20 E evangélicos neopentecostais se apropriaram dessa oportunidade. 21 Por meio de uma narrativa que se assemelha à das facções no sentido que prometem melhorar a vida do preso em troca de lealdade, disputam adeptos com o crime organizado. 22 Prometem milagres e uma nova vida. 23 E, de fato, podem ser bem sucedidos. 

 

 

Foi tentando compreender o trabalho da igreja dentro das penitenciárias que nós conhecemos o Eduardo, que hoje é pregador da Assembleia de Deus. O vício em crack, já aos 17 anos, foi a porta de entrada para assaltos, mas o contato com o mundo do crime organizado não tardou. Embora ele não dê detalhes desse momento. “Já tinha tido contato com inúmeras drogas. Mas o crack me escravizou. Comecei a roubar e, roubando, fui parar dentro de uma penitenciária.”

Eduardo nos recebeu na sala de sua casa, no bairro Primavera, em Novo Hamburgo, onde mora com a esposa, Fernanda, e os dois filhos pequenos, Maria e Eliel. Fazia muito calor, então as portas estavam abertas. Ele mora no andar inferior de uma casa que não parece concluída e fica nos fundos de um terreno amplo, com um pátio grande e gramado bem verde. É bastante confortável e fresca, um bom lugar para ficar no final do mês de novembro em uma região em que as temperaturas são sempre altas nessa época do ano. Apesar do calor, ele estava bebendo chimarrão. E eu aceitei uma cuia. Ele fala bastante, é muito simpático e bem articulado e parecia empolgado em contar histórias sobre sua vida pregressa. “Eu não escondo meu passado, nem posso esconder, porque eu quero ajudar os outros. Como vou fazer isso se não falar do que eu passei?” Ele deu um salto da poltrona verde em que estava acomodado e começou a procurar por algo em uma gaveta. Em seguida alcançou um jornal local em que foi destaque. “Das drogas à pregação”, dizia o título da peça que contava a trajetória do cara que estava orgulhoso à minha frente.

Tanto é assim que ele não estava sozinho. Ao lado dele estava Edson Ramiro da Silva, a quem conheceu quando estava preso na Penitenciária Estadual do Jacuí (PEJ). Edson estava na rua há apenas 19 dias, então Eduardo estava “de olho” nele. Edson vestia um terno, fatiota completa. Eles notaram que eu estranhei aquela roupa toda em um dia em que a temperatura se aproximava dos 30 graus, mas logo explicaram. “Ele está pronto para o culto de logo mais. Vamos conosco?”, perguntou Eduardo. Vamos, sim, mas até lá, eu queria saber mais.

“Eu nunca imaginei estar dentro de uma igreja, eu nunca pensei que eu entraria dentro de um presídio pra falar do amor de Deus. Eu passava cada vez mais longe das igrejas. Quanto mais eu me aproximava da droga, mais eu me distanciava de Deus”, disse ele. Dentro da penitenciária, condenado a 7 anos e 4 meses de detenção, ele estava consumido pelo vício até o dia em que recebeu uma visita do pai, que chorava e pedia pra ele deixasse de usar drogas. “Ele me dizia: Eduardo, deixa de usar droga (chorando). Eu não tenho mais da onde tirar dinheiro, e se tu usar, eles vão te matar. Porque eu mentia que eles iriam me matar e eles me davam mais dinheiro pra eu usar. Ele saiu chorando e no outro dia eu não usei mais.” Mas não foi um caminho fácil. Segundo ele, foi o líder de uma facção conhecida do Vale dos Sinos que sugeriu que ele “desse um tempo” na galeria dos evangélicos. Foi assim que ele entrou em contato com o que ele chama de “palavra de Deus.”

Há outras igrejas evangélicas que realizam o trabalho de recuperação dentro das penitenciárias, mas neste caso, a maior presença era a da Assembleia de Deus, que opera por meio do Ministério da Restauração. O sociólogo Clemir Fernandes coordenou uma pesquisa que constatou que os evangélicos são “incontestavelmente” o grupo mais numeroso nos presídios – principalmente no Rio de Janeiro. E os apenados evangélicos se destacam na multidão. Vestem-se de forma diferente e se comportam de maneira distinta da maioria da população carcerária. Um “irmão”, como são chamados, geralmente usa calça e camisa sociais e sapatos fechados, mesmo em dias quentes, e segue uma conduta discreta. A base é a condução de uma vida pura. O preso deve evitar aglomerações, jogos muitos competitivos e segue à risca as recomendações dos missionários. É proibido consumir qualquer tipo de drogas e bebida alcoólica, a comida deve ser dividida e o espaço deve estar sempre limpo. Na Penitenciária Estadual do Jacuí (PEJ), há inclusive uma galeria dedicada especialmente aos irmãos. E embora ilegal, a prática de espaços distintos para os presos evangélicos é bastante comum em casas prisionais de todo o país (link reportagem globo). Esse diferencial é um dos argumentos não ditos utilizados pelos evangelizadores que disputam a atenção dos presos com as facções. 

No caso da PEJ, os membros mais antigos da igreja Estrela do Cárcere são designados como missionários e tem o dever de levar a palavra a outros setores da penitenciária, inclusive os mais perigosos, com o objetivo de conquistar devotos. E esses devotos são disputados. De certa forma, com a mesma narrativa das facções, garantindo proteção e cuidado. Mas a moeda de troca é diferente: há regras rígidas presas às paredes para que ninguém se “desvie da palavra do senhor.”

Foi assim que Eduardo se tornou um pregador e decidiu abandonar a vida do crime. “Desde quando eu tomei uma posição com Deus e decidi me converter, brotou um sentimento no meu coração de não somente eu ser liberto, mas também de ajudar a tantos quanto eu tivesse a oportunidade”, explicou. Ele pediu licença para tomar um banho e se arrumar para o culto. Eu concedi, é claro, e aguardei enquanto conversava com Edson, que me garantiu que só estava no crime porque não tinha a religião na vida. “O objetivo de Jesus dentro da cadeia é que tu não volte pra ela”, diz.  Ele estava ansioso porque daria o seu depoimento no culto de logo mais, mas estava seguro de sua decisão de não ceder às tentações da facilidade que a vida do crime oferece. Natural de São Leopoldo, Edson não viveu uma vida de dificuldades, segundo ele, foi o vício e a preguiça que o seduziram. “Eu não fazia nada, não gostava de trabalhar, não entendi a nobreza do trabalho e o crime foi muito sedutor. Mas não vale a pena e Jesus me ajudou a enxergar isso.”

Eduardo ficou pronto, vestiu um terno cinza, camisa e gravatas escuras, cinto e sapato. Nos convidou para voltar depois, sua esposa estava preparando o jantar. “Crente não fuma e não bebe, mas come que é uma beleza”, garante. Nós agradecemos, mas estávamos curiosos pelo culto. Chegando à igreja, havia cerca de 30 pessoas aguardando pelo início da pregação. Algumas delas desesperadas. Conversei com uma senhora que não me disse o seu nome mas que mostrou suas lágrimas pelo filho que está preso. Ela não entendia porquê, mas esperava que a Igreja pudesse ajudá-la.

Especificamente naquela noite, o culto todo foi sobre o trabalho desenvolvido pela Assembleia de Deus dentro das Penitenciárias. Foi um serviço longo, com leituras, músicas e sermões, mas principalmente com os depoimentos de Edson e Eduardo. Os dois, com a ênfase conhecida dos pregadores evangélicos, bradavam os caminhos penosos que suas vidas traçavam até pouco tempo atrás. Da mesma forma enérgica, exaltavam a conquista que mudou suas vidas. Hoje, Eduardo trabalha com reciclagem de pneus e tem uma vida confortável. Mais do que isso, tornou-se um ativista da causa e da possibilidade de recuperação de detentos por meio da fé. “Uma procuradora que fiscaliza os presídios me disse: Eduardo, tu imaginou que um dia tu estaria sentado numa sala com as maiores autoridades do estado do Rio Grande do Sul? Eu olhei pra ela e disse: nunca imaginei. Mas doutora, a senhora imaginou que um dia, um rapaz que era viciado nas drogas, com sua vida totalmente destruída, eu fui encaminhado para o presidio pelo Instituto Psiquiátrico Forense, a senhora imaginou que um criminoso, ladrão, drogado, bêbado, mentiroso, sentaria em uma sala como essa pra tratar dos problemas das casas prisionais? Ela me disse que não. Então quando a senhora se encontrar com um presidiário, lembra que ele querendo, Deus pega ele pela mão e e coloca ele em lugares como esse”, disse em alto e bom som para que todos pudessem ouvir.

O trabalho, porém, é maior do que a pregação nas penitenciárias. A igreja atua na recuperação de dependentes químicos por meio de comunidades terapêuticas e ainda oferecendo amparo ao preso na questão jurídica. Para que eu pudesse ter dimensão do alcance, Eduardo me convidou para assistir ao culto de Natal dentro da Penitenciária Estadual do Jacuí. Eu aceitei.

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O culto na penitenciária

Chegamos à PEJ às nove horas da manhã do dia 22 de dezembro de 2017. Uma sexta-feira quente, em que o mesmo dia se confundia entre estar ensolarado e nublado. Fomos os primeiros a  chegar. Cerca de meia hora depois, chegaram Eduardo, sua esposa, Fernanda, e mais um grupo de cerca de 15 pessoas da Igreja. Homens e mulheres, entre músicos, ex-detentos pregadores e pastores que participariam do culto dentro da penitenciária. A revista foi rigorosa, como se espera de um presídio. Só podia entrar com a aliança de casamento. O equipamento necessário para o culto já havia sido inspecionado e estava instalado.

Ao entrar no pátio da galeria 5ª do A, a cena é surreal. Esqueça a imagem que traçamos anteriormente, de um ambiente hostil, sujo e degradante. O pátio de concreto lembra o de uma escola. Nas paredes, é possível ler as mensagens: “Jesus Cristo te ama e quer te ajudar”; “Quanto mais se esforça em mudar, mais se evita sofrer”. Também há duas goleiras, um pouco de grama verde e desenhos de personagens famosos pintados nas paredes. Minnie Mouse, Homem-Aranha, Pica-Pau, Turma da Mônica, e até o Tigrão e o Ursinho Pooh.

Cadeiras plásticas espalhadas pelo pátio e uma calma música instrumental tocando ajudam a confundir a cabeça de quem está no pátio de uma penitenciária. Estranhamente, é o clima da sala de espera de um consultório de dentista a céu aberto. Homens impacientes vestem calça social, sapato e camisa. Alguns estão usando até gravata e caminham com a bíblia na mão. De um lado a outro do pátio. Isso faz com que eu lembre que estou, efetivamente, em uma penitenciária. Eles caminham para frente e para trás, nesse mesmo espaço restrito, porque é o único espaço em que podem fazê-lo.

No único canto em que há sombra, quem não é crente observa de longe, alguns com um sorriso irônico, outros apenas com desdém. Mas a maioria olha de trás das grades de uma galeria em que ficam alguns dos detentos mais perigosos da PEJ. Eles gritam e provocam, mas nada abala aqueles homens que estão ajoelhados, apoiando os cotovelos nas cadeiras plásticas.

O culto começa. O calor se intensifica. Todos respeitam.  “Porque a palavra de Deus, ela tem poder para restituir, para regenerar e dirigir o ser humano a uma vida de pela comunhão com Deus, de bençãos e de paz”, diz Eduardo, que dá início ao evento que está sendo gravado pela igreja. “Será registrado para que não somente aqueles que estão aqui dentro, mas para quem está na rua poder ver o agir miraculoso de Jesus Cristo, que pega um homem com a vida destruída, restitui ele, e coloca de pé na sua presença”, prega Eduardo, que lista as galerias de onde vem os irmãos que assistem ao culto naquele final de manhã abafado. As próximas duas horas seriam de pregação, depoimentos e esperança. Marcos Aurélio de Almeida, 42 anos, está há oito na PEJ. “Eu vim pegando uma pena do ano de 98 do Estado do Mato Grosso do Sul, e fiquei cativo aqui até 2012. Em 2012 fui pro semi (aberto) de NH e fiquei até 2013. Em maio de 2013 fui recolhido de volta à penitenciária, respondendo a um assalto a banco.” Marcos era missionário, mas agora é pastor em uma galeria, responsável por cerca de 30 irmãos, e considerado um exemplo de sucesso. “Eu cometi vários crimes, várias atrocidades. Assaltos a banco e outras coisas. A ambição do ser humano. Foi onde acabei me perdendo. Mas agora não existe chance de eu voltar pra esse mundo porque foram muitos anos de sofrimento.”

Mas a conversão religiosa é um processo complexo de transformação que diz respeito a uma mudança radical de valores, crenças, comportamento e na forma de interpretar os acontecimentos. E partindo do princípio que os presos coexistem nos universos do crime e do trabalho, a conversão religiosa, segundo a socióloga Camila Nunes Dias se torna um processo de troca de mundos. Ou seja, o preso abandona as práticas e valores do mundo do crime e adota as normas do mundo do trabalho a partir da ótica da igreja. “A Igreja começa a mudar nossos pensamentos, nossa maneira de ser de agir”, diz Marcos. 

Essa frase é um ponto-chave para entender um dos problemas da ação da Igreja dentro das penitenciárias. Se por um lado oferecem um espaço de acolhimento e recuperam criminosos, por outro, há a acusação de “lavagem cerebral”, em que os detentos seriam ludibriados. Tanto é assim que a conversão abrupta e radical geralmente ocorre por meio de um “milagre”.

Rafael Cristiano Gonçalves da Silva, de 32 anos, talvez seja o exemplo perfeito. Ele é um dos detentos que faz a obra missionária no pavilhão. Preso por assalto, homicídio e tráfico de drogas, disse que se converteu porque Deus  fez um milagre em sua vida. “Curou do HIV”. Ele ignora a comprovação científica de que a AIDS não tem cura. Rafael não acredita. “Só quero fazer as coisas de Deus certinho, pra mim (sic) sair daqui uma nova pessoa. Antes minha vida era nas drogas, escravizado. Não sabia o que eu fazia, só droga e droga. ?Comecei com 12 anos. Me injetar na veia. Me envolvi com o crime, fui pra Febem, depois fui pra cadeia, fiquei dois anos e oito meses no Presídio Central. Depois passei pela PASC, Rio Grande, Bagé, Uruguaiana. Passei por diversas cadeias. Minha pena é de 25 anos e seis meses. Cumpri seis anos. Deus tá fazendo uma obra grande na minha vida. Pretendo sair daqui uma nova pessoa, construir uma família. Deus me deu uma família, uma esposa. Quero sair daqui e não quero voltar pro crime, voltar pra trás, só pra frente.” Durante um momento da pregação, ele disse que não é fácil ser missionário dentro da penitenciária, mas que vale a pena. “Deus tem uma obra na vida de vocês, agora eu tava ali no meu canto, Deus falou comigo, tu ali, J., de boné, tu mesmo, tu sabe o que Deus quer contigo”, provoca.

O discurso religioso ressignifica toda trajetória biográfica do preso, segundo Camila. O apenado que se converte às igrejas evangélicas neopentecostais passa a ver o passado criminoso como um pecado, uma traição às leis de Deus e a prisão como um castigo e, ao mesmo tempo, como uma oportunidade para se regenerar. “Fiquei sete anos cativo, tenho um filho de 18 anos, um garoto muito educado, estudioso, minha esposa também é uma benção, não há possibilidade de eu retroceder”disse Marcos, que pretende colocar um centro de recuperação para os jovens quando for solto. 

A religião ainda reacomoda a perspectiva de um futuro para um detento, permite sonhar e planejar uma nova vida, um recomeço. No caso das neopentecostais, também conforma o apenado a executar mesmo um trabalho que ofereça pouco prestígio social e pouco dinheiro, que é visto como ganância, pecado – embora as pessoas mais importantes dessas organizações vivam vidas luxuosas. Rafael, por exemplo, quer voltar a ser vendedor ambulante.

Eduardo entende que essa missão é sobre resgatar a humanidade que existe em cada um e sobre a possibilidade de todos encontrarem uma maneira de viver longe do crime. Mas é uma possibilidade que só existe com uma compreensão e empatia que vêm de fora. Algo muito distante da frase preferida da sociedade brasileira, que diz que “bandido bom é bandido morto”. Para Eduardo, não é o caminho. “Uma pessoa que expressa tal expressão não tem um sentimento de amor pelo próximo, ela se torna igual aquele que comete o tal crime. O mal não pode ser pago com o mal.” O culto acabou e todos voltaram para suas galerias. Os pregadores voltaram para casa, em liberdade.

Em 2017, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul criou uma Comissão Especial para Tratar da Função Social das Igrejas nos Presídios e Centros de Recuperação de Drogas no RS. O presidente da comissão era o deputado Sérgio Peres (Republicanos), a deputada Liziane Bayer (PSB) era a vice-presidente e o relator foi o deputado Missionário Volnei (PR). Como a alcunha do último já sugere, os três são vinculados a igrejas evangélicas neopentecostais, portanto, além do interesse público, também havia de fortalecer a imagem das organizações às quais pertencem. Peres, que se reelegeu para um novo mandato, é pastor da Igreja Universal; Bayer, hoje deputada federal, é pastora da Igreja Internacional da Graça de Deus; enquanto Missionário Volnei, que não se reelegeu, é parte da Igreja Mundial do Poder de Deus. 

Segundo o relatório apresentado em abril de 2017, os parlamentares visitaram sete casas prisionais. No Presídio Central, o mais emblemático do Estado, a comissão identificou vinte “denominações” religiosas que promovem assistência espiritual por meio de voluntários. Os encontros ocorrem na capela ecumênica do presídio, na área de visitas e no pátio do presídio. A administração do central informou à equipe técnica que as famílias também podem participar de eventos realizados em parceria com as igrejas. “Nós conseguimos perceber a mudança de conduta do preso que faz uso da assistência espiritual. Nesse segmento identificamos uma diminuição considerável da reincidência no crime e a inserção das pessoas no mercado de trabalho quando saem daqui”, observou o então diretor, tenente-coronel Marcelo Gayer. Da mesma forma que na Penitenciária Estadual do Jacuí, também há celas especiais chamadas de “galeria dos evangélicos” ou “galerias dos irmãos”, ocupada, à época, por 115 detentos. 

Na Penitenciária Modulada de Ijuí, os trabalhos religiosos da Assembleia de Deus, Adventista e IURD são realizados aos sábados e domingos, enquanto a Igreja Católica promove assistência aos detentos nas terças e sextas, duas vezes ao mês. No Presídio Regional de Santa Maria, oito instituições religiosas atendem aos detentos em reuniões que ocorrem às segundas, quartas e sextas. Neste caso, 50 detentos são beneficiados com o auxílio espiritual. No Presídio Regional de Caxias do Sul (antiga PICS), 12 instituições prestam assistência religiosa diariamente. 

Na Penitenciária Estadual Feminina de Guaíba, o acesso ao acolhimento espiritual se dá somente aos sábados e quatro instituições se revezam. Ou seja, cada uma só tem acesso às detentas uma vez por mês, segundo o relatório da Comissão. Não à toa, ouvem-se gritos que perguntam se “são os homens de preto?” ou “é dos Direitos Humanos?”. Não à toa porque esse comportamento é sempre um pedido de ajuda, sempre um indicativo de que é mais uma casa prisional em que o Estado não cumpre com o mínimo. 

No Presídio Regional de Santa Cruz do Sul, três instituições promovem reuniões aos sábados. Neste caso, a visita técnica foi acompanhada pelo presidente do Conselho da Comunidade, Roberto Tailor Bandeira; pelo pastor da Assembleia de Deus Jorge Elemar de Souza; pelo representante da Igreja Universal Auri André Back; e pela evangelizadora Jaqueline da Silva Machado. A obreira da Igreja Internacional da Graça de Deus, à qual pertence a deputada Liziane Bayer, relatou à comissão – da mesma forma que Eduardo quando conversou conosco – que as igrejas prestam apoio de toda ordem, desde orientação espiritual até assistência social. “Perante a sociedade, são presidiárias. Mas assim como lá fora as pessoas têm perfis diferentes entre si, aqui também há mulheres com lutas distintas, são mães que querem nos falar dos problemas dos seus filhos. Algumas vezes conseguimos interceder para resolver questões de comportamento na escola, por exemplo.”

Já na Penitenciária Estadual de Canoas (complexo 1), há cultos diários comandados por pastores, evangelizadores ou organizados pelos próprios detentos da Galeria dos Cristãos, à época ocupada por 124 homens. Além disso, voluntários da Igreja Universal e da Sociedade Bíblica do Brasil prestam assistência nas celas de três galerias. No sábado, há cerimônias de batismo no pátio da instituição, onde os apenados também contam com biblioteca de obras cristãs.

Apesar de todas as visitas técnicas resultarem em uma experiência relativamente positiva no sentido de que, de alguma forma, todas as instituições disponibilizam o acesso à assistência religiosa, o  relatório final da comissão indica que, “devido à falta de conhecimento por parte das direções de diversos presídios e, por não haver uma prática de assistência espiritual padronizada e regulamentada, vem se impedindo um trabalho frequente e permanente.” Tanto que os parlamentares fazem uma série de sugestões para facilitar o trabalho dos evangelizadores dentro das prisões. Uma delas é que a Susepe tenha sob sua competência a “Regulamentação e Supervisão da Assistência Religiosa no Sistema Prisional”. Isso significaria “cadastrar, certificar, credenciar e autorizar religiosos devidamente subordinados às igrejas que os apresentem formalmente, para desenvolver trabalho evangelístico junto ao sistema carcerário.” Hoje, esse acesso não é uniforme e, como se pôde ver acima, depende de cada estabelecimento. Além disso, os deputados ainda sugeriram  a assistência religiosa como matéria curricular. O relator, que pertence a uma igreja evangélica neopentecostal, entende que a “inserção de uma Disciplina, sobre o Papel das Igrejas na Ressocialização da População Carcerária” poderia ser matéria de estudo na formação de servidores do sistema penitenciário. 

Mas mesmo que a comissão formada por parlamentares que também são pastores evangélicos tenha encontrado alguns problemas para o acesso de voluntários a apenados, a situação é ainda mais complexa quando se trata da Igreja Católica. E o motivo é bastante simples, as igrejas evangélicas focam na recuperação dos dependentes químicos e evangelização. O objetivo final é aumentar o rebanho. Isso significa que não há interesse em discutir os problemas estruturais do sistema prisional. Tanto é assim que a moeda de troca para atrair a devoção de um detento é justamente a proteção e o cuidado em galerias especiais, roupas limpas, comida e celas organizadas. A parte da Igreja Católica que trabalha com assistência espiritual em presídios, por outro lado, tem, por base, uma preocupação com as condições espaciais a que os presos são submetidos. Basicamente, preocupa-se em garantir, além da orientação religiosa, a aplicação dos Direitos Humanos. 

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O privilégio dos evangélicos

Relatório da Pastoral Carcerária de 2018 indica que em todo o Brasil há inúmeras justificativas para a restrição ao atendimento religioso em casas prisionais. A mais comum é impor aos agentes pastorais um longo tempo de espera até a liberação da entrada. Frequentemente, com o pretexto da garantia da segurança, a visita pastoral é impedida. Além da exigência de que agentes pastorais sejam submetidos revista que, segundo o relatório, é ilegal e vexatória. E para a Pastoral, as arbitrariedades que o Estado comete nesse sentido ocorrem em função da postura “de não ser indiferente e sempre se comprometer com a defesa da dignidade e da vida humana.”

Em estudo realizado em 2017, 40% dos entrevistados afirmam que a Pastoral Carcerária é discriminada na unidade prisional ou que outras igrejas são priveligiadas. Relatos dão conta de que existe uma diferença importante no tratamento entre as igrejas e que é comum que agentes prisionais permitam a entrada de evangélicos e barrem a entrada de católicos. 

“Não consigo esquecer o dia 12 de outubro, dia da Nossa Senhora Aparecida, que fomos impedidas de entrar na unidade prisional e [outras igrejas] fizeram as visitas normalmente.” 

“[Outra igreja] Entra com artigos religiosos com maior facilidade, tais como: livros e jornais em grande quantidade, óleo de cura.” 

“Até o ano passado, enquanto nós tínhamos só duas horas, outras igrejas ficavam lá dentro o dia todo.” 

“Nós podemos entrar com cinco pessoas, eles [outra igreja] entram com doze; nós temos que entrar de chinelo e calça sem nenhum adereço, enquanto eles entram de sapato fechado e roupa social.”

Vozes da Pastoral, depoimentos anônimos de agentes da Pastoral Carcerária 

 

A Igreja Universal do Reino de Deus é a pentecostal com maior influência dentro dos presídios – seguida pelos ministérios da Assembleia de Deus. A Universal Nos Presídios (UNP) começou o trabalho de evangelização há mais de 30 anos. O objetivo oficial é “levar Vida, por meio da Palavra de Deus, aos encarcerados, apoio espiritual e social, além de auxílio direto aos familiares deles.” Mas o objetivo real é atrair mais devotos à igreja fundada por Edir Macedo. 

A Universal considera o trabalho com os presos tão importante que, em 2012, a primeira aparição do bispo para o lançamento de sua biografia foi em um presídio. Três mil edições do livro “Nada a perder” foram doadas aos apenados do Centro de Detenção Provisória de Pinheiros (CDP 3), em São Paulo. “Aqui, não poderia deixar de vir. Para mim, é muito importante. Eu não posso dizer que é um prazer entrar num lugar onde há sofrimento e dor. Paradoxalmente, é um prazer porque a gente chega às pessoas mais aflitas e é como Jesus disse: “Os sãos não precisam de médicos, mas os doentes”, disse na ocasião.

Foto: Divulgação

Edir Macedo ainda organizou para que a versão cinematográfica da biografia chegasse aos detentos de todo o país no ano passado. O filme “Nada a Perder retrata a saga do bispo fundador da Universal e foi exibido em penitenciárias de todo o Brasil. 

A Universal ainda chega aos apenados por meio de um programa de rádio chamado “Momento do Presidiário”, transmitido diariamente pela Rede Aleluia de Rádio. O novo projeto da igreja é inaugurar espaços específicos dentro dos presídios para a realização de reuniões com os presos. No site da organização, a empreitada é considerada um sucesso. “O desafio tem dado tão certo que, desde fevereiro de 2017, a Igreja tem empenhado esforços para abrir o maior número de templos possível nas unidades prisionais de todo o País e em diversas partes do mundo, como mostrou, recentemente, uma matéria especial do programa “Domingo Espetacular”, da Record TV.”

Desconfiança

Mas há quem pense que alguns dos presos que se mudam para a galeria dos irmãos estão “se escondendo atrás da Bíblia”. Esse foi um fenômeno que nós pudemos notar em conversas com detentos da PEJ e reforçado pela pesquisa da socióloga Camila Nunes Dias. Eles o fazem por dois motivos: para poder viver na galeria dos irmãos e fugir do assédio das facções e da parte da cadeia em que as celas não tem condições de infraestrutura; ou para fugir de acertos de contas. 

Esse fenômeno expõe uma espécie de ambiguidade do presos evangélicos.  Se em um primeiro momento creditam a conversão a motivos sobrenaturais, conforme a conversa se aprofunda, fica claro que alguns decidem se converter após fato bastante concretos. Seja uma experiência de quase morte em função das drogas ou ainda ameaças.  Ambiguidade essa que também se percebe no resultado – igrejas ajudam porque?!

Os estudos que abordam a ação das igrejas no sistema prisional costumam focar as pesquisas na eficácia no processo de ressocialização. E essa é uma narrativa reforçada por autoridades que acompanham a rotina e o cotidiano das casas prisionais em todo o país. Como disse o procurador Gilmar Bortolotto, “só tem isso”. Em uma penitenciária abandonada pelo Estado, a conversão é a única chance de ressocialização. Nessa linha, há dois caminhos, segundo Camila Dias: ver a religião como um elemento moralizador que auxilia na recuperação do apenado; e entender esse movimento como um aproveitamento utilitário da igreja pelo preso que  teria benefícios em decorrência de uma conversão. 

É preciso repensar alternativas, porém, porque de todo modo, a religião, com seus arbítrios e normas, não deixa de ser uma forma sutil de violência uma vez que se torna a única alternativa a quem não quer pertencer a uma facção.

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Investir em alternativas

O procurador do Ministério Público do Rio Grande do Sul Gilmar Bortolotto afirma que não dá para fazer política pública para quem são se conhece. “Os projetos vem de cima pra baixo, de gente que nunca pisou em uma cadeia mas quer impor coisas novas, mas tá na cara que não vai funcionar, porque é uma ficção. “Vamos fazer um projeto pra os presos trabalharem.” Aonde? Fazendo o que?”, provoca Bortolotto. O caminho é investir em alternativas que, obviamente, funcionem. Mas não é um caminho simples.

Segundo ele, envolve cinco etapas. 1) Construir presídios novos.  “No espaço velho, não implanta mais nada. Por que uma facção deixaria o Estado fazer uma política pública diferente? Vai perder mão-de-obra”, explica Bortolotto. Mas ele também ressalta que esse novo espaço engloba um sistema inteiro, a começar pela segunda etapa, que é 2) Selecionar as pessoas. Isso significa que não adianta construir um novo espaço e mandar presos faccionados para essa prisão. “Escolher os presos e implantar uma política real que abra a porta para quem quer sair do crime e não entrar em facção é fundamental”, diz o procurador.  Isso envolve uma grande 3) Mudança de Cultura, tanto para os detentos quanto para quem trabalha nas casas prisionais. “Não adianta ir para presídio novo e progredir para o semi-aberto em que enterram gente. Espaço novo, cultura nova. Se disserem que vão fazer algo novo em lugar faccionado, estão mentindo, não vai acontecer”, garante Bortolotto. A mudança passa, ainda pela 4) Formação de funcionários, que deve ser diferente. Nesse aspecto, ao menos, já há uma melhora expressiva. A Superintendência de Serviços Penitenciários (Susepe) no Rio Grande do Sul, por exemplo, está recrutando servidores com nível superior. “Há 20 anos, tinha gente que vinha atender a gente de calção, chinelo de dedo, sem camisa e com uma arma na mão. E não é culpa do cara que tá ali. Ele é tão abandonado quanto o preso”, conta o procurador. Por fim, é fundamental 5) Investir em política para egressos, criar centros de atenção, um vínculo pra fazer documentos, buscar emprego. Enfim, criar a ponte entre o detento e o Estado. “Tem gente que sai da cadeia e não tem nem como pegar um ônibus. Hoje a facção dá esse apoio. Ou a igreja.” E essa política deve abraçar, ainda, a questão da dependência química.

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APACS

O Brasil, felizmente, tem um exemplo de política penitenciária bem-sucedida, que são as Associações de Proteção e Assistência aos Condenados. A lógica é bastante simples. As próprias comunidades constituem uma associação sem fins lucrativos em que são agregadas as forças da sociedade para recuperar e reintegrar os condenados. Essas pessoas serão as responsáveis, por meio de convênios com o poder público, de administrar o estabelecimento. E funciona basicamente com trabalho voluntário. “A metodologia APAC fundamenta-se no estabelecimento de uma disciplina rígida, caracterizada por respeito, ordem, trabalho e o envolvimento da família do sentenciado. A valorização do ser humano e da sua capacidade de recuperação é também uma importante diferença no método APAC”, é o que diz no site da instituição.

Gilmar Bortolotto conta que a média de recuperação é de 80%. “É impressionante, não tem guarda e o índice de fuga é próximo de zero. É difícil comunicar isso para as pessoas, mas funciona. O cara que vai na malandragem não aguenta, porque vai ter atividade das 6h às 22h. São oficinas, atividades para provocar reflexão sobre o que o crime fez, quem levou junto, como a família está suportando.”

O Método APAC consistem em 12 elementos fundamentais: 1) A participação da comunidade; 2) O recuperando ajudando o recuperando; 3) O trabalho; 4) Assistência Jurídica; 5) Espiritualidade; 6) Assistência à saúde; 7) Valorização Humana; 8) A família; 9) O voluntário e o curso para sua formação; 10) Centro de Reintegração Social (CRS); 11) Mérito; 12) Jornada de Libertação com Cristo. Como se pode ver pelo último item, assim como a atuação das igrejas em penitenciarias, o método APAC também precisa da fé. Minas Gerais é o estado que apresenta os melhores resultados. Há 40 APACs implantadas que abrigam 3 mil presos. No Rio Grande do Sul, há APACs constituídas em Canoas, Porto Alegre, Três Passos, Pelotas e Palmeira das Missões.

É fundamental, porém, compreender que o processo de recuperação ocorre em etapas e é extremamente lento. “Quando as pessoas pensam no que chamam de ressocialização, elas imaginam que tu vai pegar um cara que é um sujeito encrencado e aplicar uma coisa pra ele e ele vai virar uma freira em dois meses. Não vai acontecer isso”, explica Bortolotto. O processo é demorado e prevê o cumprimento de uma série de etapas.

“Um preso que eu conheci e era assaltante, por exemplo. Um dia ele foi lá na promotoria e me disse: Oh, Dr. Gilmar, eu larguei o crime. Eu tô só trabalhando com venda de CD. Entende? Quando o cara passa do assalto para a pirataria, ele está melhorando. São etapas, é preciso compreender isso.”

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24 Para poder pensar no futuro, o apenado precisa fazer uma escolha em um mundo bastante particular em que é praticamente impossível sobreviver sozinho. 25 E é uma escolha ambivalente, assim como foi a do Jesus humano de Saramago. 26 Testado por Deus e o Diabo de forma insistente e parecida. 27 Ele precisará servir a algum Senhor. 28 E se ele não quiser que esse senhor seja um líder de facção, 29 a religião segue como a única oportunidade possível de recuperação. 30 Fim do Evangelho Segundo a Prisão.
PodCasts

OUÇA Bendita Sois Vós #11 Quais os efeitos do discurso de Bolsonaro na segurança?

Geórgia Santos
3 de dezembro de 2018

No episódio 11 do podcast Bendita Sois Vós, o tema é segurança. Provavelmente, um dos temas que mais aflige os brasileiros e que mais foi debatido ao longo das eleições – e depois dela. O presidente eleito, Jair Bolsonaro, soube usar isso muito bem, com um discurso enérgico de endurecimento das leis. E para completar, nomeou uma estrela para o ministério, o agora ex-juiz Sérgio Moro.

Com essa premissa, os jornalistas Geórgia Santos, Igor Natusch e Tércio Saccol perguntam: o discurso da segurança pública de Bolsonaro pode ser implementado na prática?

O sociólogo e pesquisador Rodrigo Azevedo, especialista em Segurança Pública, explica as nuances do problema no Brasil e alerta para as medidas de populismo punitivo do novo governo, que podem piorar o problema. Evelin Argenta ainda conversa com o promotor Lincoln Gakiya, especialista em Primeiro Comando da Capital, o PCC.

No quadro Sobre Nós, com Raquel Grabauska e Angelo Primon, o medo paralisante do Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago.

Reporteando

A bolha nossa de cada dia

Évelin Argenta
19 de agosto de 2018

No mês de junho eu passei duas semanas produzindo  uma série de reportagens para falar sobre um tema que respeito muito: segurança pública. O desafio era mapear os principais problemas de segurança do estado mais rico da federação e lançar para os postulantes ao Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista.

Passei um dia inteiro lendo, relendo matérias, teses, artigos, conversando com especialistas da área até, enfim, delimitar cinco temas (correspondentes a cada um dos dias da semana). Passei outro dia inteiro digerindo a ideia de contar cada um deles em apenas três minutos e 30 segundos. É, amigos…rádio não é mais um latifúndio. Em tempos de 140 caracteres, quem tem três minutos é rei.

O resultado foi bom. Na exata semana em que a matéria foi ao ar, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública lançou seu anuário mostrando problemas, justamente, nas áreas que eu tinha selecionado. No dia da estréia a Ouvidoria das Polícias de São Paulo divulgou um relatório enfatizando os métodos bastante questionáveis da PM paulista.

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O primeiro capítulo foi ao ar falando sobre os desafios para frear a letalidade da polícia que mata muito. Em 2017, os policiais paulistas (civis e militares) mataram 942 pessoas. Isso. Quase mil pessoas foram mortas em 365 dias.

 

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Foi um recorde histórico desde 2001 – quando o acompanhamento começou a ser feito – e motivo de luz vermelha até para a Ouvidoria das Polícias. O órgão constatou que em 70% dos casos de morte houve excesso por parte dos policiais.

Para falar dessa história, conheci um grupo de mães que me contou como cada um de seus filhos havia sido morto “em confronto” com policiais. Curiosamente, esses casos não envolviam confronto embora, sim, esses jovens estivessem cometendo crimes na hora que foram mortos. Crimes pelos quais nunca foram julgados, por razões óbvias. Para lidar com a dor sozinhas, sem amparo do estado, elas formaram o Mães em Luto da Leste, um grupo de apoio para encorajar outras mães vítimas da violência policial.  A história de cada uma delas renderia uma série inteira.

Eu sabia que a repercussão entre os ouvintes paulistas – paulistanos, em sua maioria – seria negativa. Aqui, no estado mais rico do país, a segregação geográfica (a periferia é, de fato, na periferia) cega ainda mais a percepção dos cidadãos para a violência que acontece lá, depois das marginais.  Mas o que me surpreendeu foi a reação bastante legítima de uma colega que me questionou se eu não estava “falando só para a nossa bolha”.  Ela adorou a matéria, mas me alertou para o fato de a reportagem  “não tocar o coração” dos nossos ouvintes, já que a real preocupação deles era com a “sensação de insegurança” no estado.

Isso me fez pensar muito sobre as bolhas. Será que falar do perigo que representa termos uma polícia altamente letal é falar para um nicho específico? Será que a grande maioria das pessoas entende quando ouvimos especialistas falando em “necessidade de intervenção séria para frear a alta letalidade policial, fruto de uma escolha política, desde os tempos da república velha”

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“As pessoas não querem ouvir do candidato que ele vai investir em políticas públicas de educação para evitar que jovens entrem para o crime”, me disse ela. “Elas querem ouvir da boca do candidato: não vou deixar seu filho virar bandido”, completou.

 

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E faz todo o sentido. Faz todo o sentido na nossa sociedade pautada pelo medo. O medo de morrer num assalto, o medo de morrer por engano, o medo de ser estuprada, o medo de reagir mal, o medo de sair na rua.  A tal sensação de insegurança.  Faz todo sentido que isso toque o coração de uma sociedade que tem 29% dos adultos de 15 a 64 anos analfabetos funcionais – o equivalente a cerca de 38 milhões de pessoas. Como esperar que seja feita uma relação complexa de causa e efeito, quando o básico não fica claro.

É aí que está o perigo daqueles (não vou nomear, pois não é preciso) que falam o que o cidadão amedrontado quer ouvir e, por outro lado, daqueles (novamente não falo nomes)  que defendem a salvação do mundo através de saraus de poesia e aulas de bambolê.

Pensei muito sobre isso e sobre a nossa real função no jornalismo, na comunicação. Será que estamos falando para bolhas? Esse medo exagerado também não é, de certa forma, fruto do viés que escolhemos para tratar da criminalidade? Fruto do estereótipo do criminoso? Do desespero por achar culpados? Não seria essa sensação se insegurança também uma bolha?

A repercussão das outras matérias não foi diferente. Quando mostrei a falta de estrutura e superlotação dos presídios paulistas e que, por isso, prender demais  não resolve, recebi um e-mail de um ouvinte dizendo: “não quer chorar no rádio, não cria filho bandido”. Quando falei da falta de controle que o estado tem sobre as armas apreendidas e registadas, recebi outro dizendo “ah, então só o bandido pode ter arma, mocinha”?

No final dos cinco capítulos  eu me questionei mais do que quando comecei a empreitada. Por estar fora da lida diária da reportagem há um tempinho, isso mexeu comigo, especialmente. Mas acho que fiz a coisa certa. Não estamos aqui só para criar conteúdo sob demanda. É preciso causar desconforto. Nem que seja em nós mesmos, nas nossas convicções.

Para entender, sugiro a audição da série de reportagens

Violência Policial você ouve aqui

Desvalorização das polícias investigativas você ouve aqui 

Superlotação dos presídios e PCC você ouve aqui 

Descontrole no uso de armas de fogo você ouve aqui 

Crescimento nos registros de estupro você ouve aqui 
Yo No Soy de Aquí

Parecidas, pero no mucho: cinco exemplos que Montevideo pode dar a POA

Alvaro Andrade
12 de abril de 2018

Elas rivalizam no pôr do sol mais bonito, são banhadas por  grandes rios, sede de dois grandes clubes com  torcidas apaixonadas e com quase dois milhões de moradores devotos do mate e da carne assada: são muitas as características e hábitos que aproximam Montevideo e Porto Alegre, mas infelizmente as semelhanças param por aí.  Enquanto a capital uruguaia encanta por sua limpeza e organização, a capital dos gaúchos sofre com o sucateamento dos serviços públicos usado como bandeira eleitoral. Abaixo cinco exemplos que poderiam melhorar a qualidade de vida dos porto-alegrenses.

 

1 Transporte público

Dificilmente um usuário de ônibus precisará caminhar mais que duas quadras no embarque, desembarque ou transbordo em Montevidéu. O plano diretor permitiu uma distribuição muito eficiente das linhas, que graças a um trânsito fluido, também são bastante pontuais. Além disso, a passagem é ligeiramente mais barata (36 pesos, o que equivale a R$ 4,20) e o sistema de transporte coletivo oferece algumas facilidades singelas, mas que fazem diferença, como o rastreamento das linhas por aplicativos e a possibilidade de recarga do cartão em redes de cobrança que se assemelham à casas lotéricas instaladas em todos bairros da cidade. As empresas que operam as linhas são cooperativas de trabalhadores, garantindo comprometimento com a qualidade e autonomia sindical.

2 Água limpa

A qualidade de vida do montevideano também se explica por sua relação com o rio da Prata, que de tão grande é carinhosamente chamado de mar. A cidade está de frente para a orla, com uma rambla de mais de 20 km totalmente urbanizada, com áreas para prática de vôlei de areia à rubgy. No verão, as praias são todas balneáveis e contam com serviço diário de limpeza da areia e salva-vidas.

3 Mobiliário urbano

Os espaços publicitários obedecem um plano diretor bastante específico, que mimetiza os anúncios na paisagem. Na maior parte da cidade, são verticais com cerca de 2 metros de altura e 1,5m de largura. Outdoors são bastante raros, restritos às laterais ou topo de edifícios. Embora as paradas de ônibus sejam bem simples, em todas elas há informação das linhas que atendem o ponto. A sinalização viária também tem identidade visual específica e os termômetros de rua, além de informarem a temperatura, oferecem prognóstico do dia seguinte e o fator de radiação UV.

4 Segurança

Montevidéu é considerada a capital mais segura da América Latina, embora  a sensação de insegurança venha crescendo entre os uruguaios. Mesmo assim, os níveis de violência são muito inferiores a Porto Alegre. Em 2017, foram 157 homicídios na capital uruguaia, frente a 574 na capital gaúcha. Além de uma menor desigualdade social, há um permanente investimento em videomonitoramento e valorização da carreira de policial, inibindo a corrupção.  A legalização da maconha também inibe o crescimento do poder do crime organizado.

5 Patrimônio histórico

São cada vez mais comuns as gruas da construção civil pela cidade e nota-se uma expansão imobiliária vertical, especialmente nos bairros mais procurados e caros, como Pocitos e Punta Carretas. Mas a maior parte da cidade conserva suas características arquitetônicas, onde predomina o art-deco. A prefeitura inclusive oferece isenção de imposto predial por uma década aos proprietários que investem na reforma de prédios antigos, desde que preservadas as características originais.

Igor Natusch

Intervenção federal: mais um conto sobre icebergs e toalhas

Igor Natusch
21 de fevereiro de 2018

Vamos falar sobre a intervenção federal no Rio de Janeiro? OK, vamos.

 

Era uma vez um iceberg. Vamos imaginar, em nome de facilitar o nosso contar de história, que o nome do iceberg é “violência urbana“. Ele é um iceberg bem grande, mas vem se tornando mais problemático a cada ano, na medida em que não para de derreter e molhar as pessoas. Sendo feito de gelo, o iceberg sempre derreteu, pois derreter é de sua natureza, e sempre foi necessário enxugá-lo de alguma forma. O problema é que o iceberg está muito perto de uma fonte desgraçada de calor, daquelas que deixa tudo quente para caramba – e que ninguém sequer cogita desligar, porque muitos acham conveniente que essa calefação siga ligada, mesmo que só alguns poucos de fato esquentem os pés a partir dela. Segue o calor perto do iceberg, segue o iceberg derretendo mais do que o normal, e segue o problema permanente de enxugar esse gelo todo.

São as pessoas mais pobres da comunidade em torno do iceberg as que moram mais próximas dele, e que portanto se molham mais com a água que não para de derreter. Mas o pessoal um pouco mais distante, que também se incomoda mesmo não vivendo tão perto do iceberg, é quem grita mais alto contra a situação. Precisamos enxugar esse iceberg mais rápido, dizem elas. O derretimento do iceberg está completamente fora de controle.

Estando um pouco distantes como estão, não conseguem enxergar o perrengue pelo qual estão passando os enxugadores de iceberg: as toalhas de péssima qualidade e em quantidade menor que o necessário, a falta de treinamento dos enxugadores mais novos, a inexistência de uma estratégia para que a enxugada seja um pouco mais eficiente. Alguns enxugadores desviam toalhas para o mercado negro, outros jogam as toalhas encharcadas em cima das comunidades mais próximas, molhando aquelas pessoas ainda mais do que já estão. Uma bagunça, enfim.

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Mas o pessoal que está um pouco mais longe do iceberg, mesmo que tenha a melhor intenção e a mais justa das preocupações, não consegue enxergar direito essas coisas todas. Tudo que veem é a água do iceberg invadindo o pátio, entrando por baixo da porta de casa.

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E então erguem a voz para falar com o andar de cima, que coordena as tropas de enxugadores e, ao mesmo tempo, é quem fabrica e vende as toalhas para a operação. Isso tudo dá a eles muito dinheiro, fazendo com que possam pagar pelas confortáveis peças do andar de cima. Alem disso, estão com os pés bem quentes pelo uso contínuo da calefação e, uma vez morando acima de tudo que está acontecendo, há pouco ou nenhum risco real de se molharem em meio à bagunça lá de baixo. Erguem então a voz, os que moram no andar de baixo, e gritam aos de cima: precisamos de mais toalhas. Façam alguma coisa.

Gritam assim uma, duas, inúmeras vezes.

Com o tempo, porém, começam a se dar conta de algo. Começam a perceber que são os do andar de cima que fabricam as toalhas, ganham dinheiro a partir delas e que, quem sabe, não estão realmente dispostos a resolver o problema do iceberg. Começam a notar que eles descem a escada, dizem “OK, está tudo sob controle”, fazem um discurso motivador e ufanista para os enxugadores, sobem de novo aos seus aposentos e o problema segue mais ou menos igual. Percebem que, à menor menção de que desligar a calefação seria uma boa ideia, os donos das coberturas ficam muito irritados, gritam bonitos palavrões, mudam quase imediatamente de assunto. E mais importante: os que estão um pouco mais longe, mas não distantes o suficiente para que a água gelada do iceberg não os alcance, percebem que lá, no confortável andar de cima, os seus líderes nunca irão se molhar. E, é claro, se chateiam com essas coisas todas.

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Desçam aqui embaixo, gritam os que estão no meio do caminho entre a cobertura e o iceberg. Vocês não prestam para nada! Venham se molhar junto com a gente! Chegam, vejam só, a ameaçar subir as escadas e expulsar os atuais proprietários do andar de cima, insistem que vão arranjar outras pessoas para comandar as tropas de enxugadores de gelo.

Isso, é claro, deixa os donos do andar de cima um pouco preocupados.

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Diante dos protestos crescentes, acabam inventando uma solução. Convocam os protetores da fronteira, que impedem os povos de outros vilarejos de eventualmente invadirem aquela área, ainda um pouco mais seca, fugindo de seus próprios icebergs insolúveis. Eles não são bons em manusear toalhas: na verdade, já foram chamados algumas vezes, em situações de suposta emergência, e não houve qualquer melhora visível no derretimento do gelo. Mas são muito respeitados pelo pessoal do andar de baixo, que enxergam neles os homens mais fortes de toda aquela comunidade. E é isso, acima de tudo, que os do andar de cima têm em mente.

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Convocam os protetores de fronteira e dizem: agora vocês serão a elite dos enxugadores de gelo.

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Dão a eles as toalhas mais sofisticadas que conseguem tecer – mas não muitas, claro, pois se houver abundância periga até conseguirem manter o iceberg seco por algum tempo. Entregam a eles também uns esfregões, que não são de muita utilidade para enxugar a água que está no chão, mas causam um belo impacto visual. Anunciam sua chegada com banda de música, câmeras, pompa e circunstância. E dizem: vão lá, campeões de nosso povo. Deem o seu melhor. Enxuguem esse iceberg por alguns meses e temos certeza que, depois disso, ele não derreterá nunca mais. Confiamos em vocês!

Os protetores de fronteira sentem uma ponta de orgulho pela consideração recebida, mas parecem um pouco confusos. Seguram os toalhões de forma desajeitada, usam os esfregões sem nenhuma perícia, molhando bastante e até machucando os que estão bem pertinho do iceberg. Mas o pessoal que mora um pouco mais longe está em êxtase. Era exatamente disso que precisávamos, vibram. Enfim o andar de cima tomou um gesto corajoso. Chega de gente fraca enxugando gelo. Chega do iceberg lá, debochando da gente sem que ninguém fizesse nada. Viva o andar de cima!

Alguns tentam criticar a decisão dos coordenadores, dizem que os protetores de fronteira não deveriam enxugar gelo, que isso não vai dar certo. Mas a satisfação da maioria sufoca esses protestos. Quem não enxuga que não atrapalhe! Iceberg bom é iceberg seco! Que venha a elite!

Sorridentes e aliviados, os moradores da cobertura voltam a repousar em seus confortáveis divãs, voltam a esquentar os pés no calorzinho gostoso da calefação. E lá vai a elite dos enxugadores, sob aplausos, marchando de forma ritmada e firme, atacar o iceberg que não para de derreter.

O que as pessoas que moram ao lado do iceberg pensam disso tudo, ninguém sabe. Mas enfim, não dá para levar em conta o lado de todo mundo em um conto de fadas como esse.

Foto: Andrew Malone

Igor Natusch

Violência urbana: um conto sobre icebergs e toalhas

Igor Natusch
15 de novembro de 2017

Não sou bom desenhista, mas vamos lá.

A violência é um iceberg. Gigante, daqueles que a gente nem consegue olhar de tão enorme que é. Um iceberg, todos sabemos, é feito de gelo?—?e sendo gelo, está sempre derretendo um pouquinho, fazendo um pouco de água, por menos que a gente perceba. Sempre houve, portanto, a necessidade primordial e incontornável de enxugá-lo. Às vezes pouco, às vezes muito, mas não adianta: estamos sempre enxugando o gelo do iceberg, desde que o mundo é mundo, desde que seres humanos somos e percebemos que há um iceberg a enxugar.

Feito de gelo que é, o iceberg derrete mais rápido na medida em que há mais calor. O nosso modelo de sociedade, talvez a gente possa compará-lo com o aquecimento global?—?mas aí a parábola fica muito ambientalista, não é bem a ideia nesse caso. Basta dizer que a sociedade, em si mesma, produz calor, seja lá como ela queira se organizar. Basta juntar pessoas para que a temperatura ambiente fique mais alta. E o iceberg, claro, derrete.

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O problema é que a gente inventou um jeito especialmente quente de ficarmos juntos, uma engrenagem social que faz um calor dos diabos, daqueles que a gente fica suando sem parar. Uma calefação, que tal?

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Isso aí, cercamos o nosso mundo (e o iceberg) com uma calefação desgraçada, que está ligada há muito tempo e que ninguém sabe, ou se lembra, ou se importa em saber como desligar. E se a gente acaba ensopando de suor, imagina o quanto que o iceberg não derrete nesse caso?

Antes, quando o iceberg não derretia tão rápido, a gente tinha inventado algumas formas, mais ou menos eficientes, de enxugá-lo. Ele nunca ficava totalmente seco, claro?—?mas a gente dava jeito de evitar que o chão ficasse encharcado, pelo menos. Jogava umas toalhas no chão, colocava uns avisos de piso escorregadio, cercava algumas áreas mais críticas e, bem ou mal, dava para ir levando.

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Só que o calor da nossa calefação maluca fez com que nossas antigas estratégias não deem mais conta de tanto gelo derretendo. Tá tudo úmido, escorregando, fazendo poças d’água, um horror. Daqui a pouco ninguém mais fica seco nessa vida. Aí, o que a gente faz?

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Convocamos enormes tropas de enxugadores de gelo, é claro!

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Milhares e milhares, ou melhor dizendo, milhões de enxugadores munidos de toalhas bem felpudas e altamente absorventes. Mostramos o problema, damos coordenadas, é melhor atacar o iceberg nesse ponto e tal. E lá vão eles, bravos e determinados, enxugar o iceberg que derrete mais e mais. De início, até parece que vai dar certo. Todos sorriem, aliviados, protegidos e relativamente secos.

O problema é que, como sabemos, o gelo nunca vai parar de derreter. E logo as tropas começam a perder a batalha?—?o que aumenta, em consequência, nossa urgência em enxugar o iceberg.

Antes, a gente treinava bem esses nobres soldados enxugadores; agora é água demais, gelo molhado demais, só dá tempo de jogar a toalha na mão dos recrutas e gritar vai lá, ser enxugador de gelo na vida. Alguns são determinados até demais, enxugam gelo com tanta fúria que acabam rasgando as toalhas, machucando pessoas em sua volta. Outros até tentam manter a calma, passar a toalha no iceberg do jeito e no ritmo que foram ensinados no treinamento. Nenhum deles tem muito sucesso. Eles enxugam, jogam longe as toalhas encharcadas e pegam novas toalhas secas sem parar.

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O iceberg, sendo o iceberg que é, segue derretendo. E o que a gente faz? Ficamos na ponta da sala, berrando: enxuguem mais! Mais rápido! Não tenham piedade do iceberg! Ninguém aguenta mais tanta água!

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Não ocorre a ninguém que a calefação, tão bonita e que nos manteve tão quentinhos em alguns meses mais frios, possa ser o problema.

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Desligar a calefação, então, nem se cogita. Alguns talvez até tenham cogitado, para falar a verdade, mas a ideia parece tão complexa e absurda que acabamos mandando esses desgarrados calarem a boca. Quem não enxuga que não atrapalhe, gritamos. Falar é fácil, quero ver segurar a toalha lá na frente!

Nesse cenário de pesadelo, onde o iceberg já começa a cair em pedaços e logo afogará todos nós com seu degelo, apenas um grupo de pessoas está se dando bem: os vendedores de toalhas. Esses aí estão bem felizes, ricos, poderosos e bem considerados pela sociedade tão assustada, tão dependente de toalhas para enxugar o iceberg sem fim. Se você prestar atenção, de vez em quando verá os vendedores de toalhas segurando seus megafones, subindo no ponto mais alto desse mundo de conto de fadas e gritando: o gelo está derretendo, pessoal. Alguém precisa fazer alguma coisa. Enxuguem mais, que tá pouco.

Foto: Wade Morgen

Geórgia Santos

Eu quero Porto Alegre de volta (mas tenho medo de ser baleada dentro de casa)

Geórgia Santos
20 de fevereiro de 2017
Porto Alegre, RS - 15/01/2017 Domingo na Redenção Local: Parque Farroupilha (Redenção) Foto: Joel Vargas/PMPA

Eu quero Porto Alegre de volta. Vivo em Porto Alegre há 12 anos e vivo bem. Foi a cidade que escolhi e que me acolheu. Sempre me senti à vontade na capital gaúcha, provavelmente por ser uma espécie de híbrido entre uma cidade pequena e uma cidade grande. É uma metrópole, claro, com milhões de habitantes, trânsito intenso e uma cena cultural bastante importante. Mas também é aquele tipo de cidade em que a gente vive encontrando conhecidos pelas ruas, em que nada é segredo, igualzinho ao que acontece no interior.

A adaptação não foi fácil, mas também não foi o bicho. Eu saí de um município de 7 mil habitantes, tateando, mas me senti em casa quando cheguei à cidade grande. Eu não tinha medo. Porto Alegre me tem, eu pensei. Hoje, isso mudou.

“Um carro entra na contramão, dois homens armados saem do veículo apontando duas pistolas na direção de dois caras que estavam na calçada. Meu instinto treinado por um pai delegado não teve dúvidas: “gurias, pro chão””

É meu aniversário e eu estava a celebrar com duas amigas. Bebíamos um bom vinho branco argentino, um torrontés, e conversávamos sobre coisas boas e ruins enquanto destilávamos no calor que nem o ar condicionado era capaz de aplacar. Nesse meio tempo, eu olho pela janela, que estava aberta na altura dos meus olhos, e vejo uma cena que já não é mais inusitada. Um carro entra na contramão, dois homens armados saem do veículo apontando duas pistolas na direção de dois caras que estavam na calçada. Meu instinto treinado por um pai delegado não teve dúvidas: “gurias, pro chão”.

Perdendo Porto Alegre

Estávamos ali, nós três, jogadas no chão durante a celebração do meu aniversário. Com medo de sermos baleadas dentro de casa. Porto Alegre não me tem mais

Como disse, já se vão 12 anos da minha relação com essa capital e eu sou muito feliz aqui. Mas sim, agora eu tenho medo. Muito medo. Porto Alegre foi abandonada por quem tinha que cuidar dela e a consequência é que a estamos entregando a quem não merece. Somente neste final de semana, 40 pessoas foram assassinadas no Estado, 12 somente na capital.  A situação é insustentável. Não se trata de uma sensação de insegurança, ela é real.

Eu quero Porto Alegre de alegre de volta.