Reporteando

A bolha nossa de cada dia

Évelin Argenta
19 de agosto de 2018

No mês de junho eu passei duas semanas produzindo  uma série de reportagens para falar sobre um tema que respeito muito: segurança pública. O desafio era mapear os principais problemas de segurança do estado mais rico da federação e lançar para os postulantes ao Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista.

Passei um dia inteiro lendo, relendo matérias, teses, artigos, conversando com especialistas da área até, enfim, delimitar cinco temas (correspondentes a cada um dos dias da semana). Passei outro dia inteiro digerindo a ideia de contar cada um deles em apenas três minutos e 30 segundos. É, amigos…rádio não é mais um latifúndio. Em tempos de 140 caracteres, quem tem três minutos é rei.

O resultado foi bom. Na exata semana em que a matéria foi ao ar, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública lançou seu anuário mostrando problemas, justamente, nas áreas que eu tinha selecionado. No dia da estréia a Ouvidoria das Polícias de São Paulo divulgou um relatório enfatizando os métodos bastante questionáveis da PM paulista.

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O primeiro capítulo foi ao ar falando sobre os desafios para frear a letalidade da polícia que mata muito. Em 2017, os policiais paulistas (civis e militares) mataram 942 pessoas. Isso. Quase mil pessoas foram mortas em 365 dias.

 

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Foi um recorde histórico desde 2001 – quando o acompanhamento começou a ser feito – e motivo de luz vermelha até para a Ouvidoria das Polícias. O órgão constatou que em 70% dos casos de morte houve excesso por parte dos policiais.

Para falar dessa história, conheci um grupo de mães que me contou como cada um de seus filhos havia sido morto “em confronto” com policiais. Curiosamente, esses casos não envolviam confronto embora, sim, esses jovens estivessem cometendo crimes na hora que foram mortos. Crimes pelos quais nunca foram julgados, por razões óbvias. Para lidar com a dor sozinhas, sem amparo do estado, elas formaram o Mães em Luto da Leste, um grupo de apoio para encorajar outras mães vítimas da violência policial.  A história de cada uma delas renderia uma série inteira.

Eu sabia que a repercussão entre os ouvintes paulistas – paulistanos, em sua maioria – seria negativa. Aqui, no estado mais rico do país, a segregação geográfica (a periferia é, de fato, na periferia) cega ainda mais a percepção dos cidadãos para a violência que acontece lá, depois das marginais.  Mas o que me surpreendeu foi a reação bastante legítima de uma colega que me questionou se eu não estava “falando só para a nossa bolha”.  Ela adorou a matéria, mas me alertou para o fato de a reportagem  “não tocar o coração” dos nossos ouvintes, já que a real preocupação deles era com a “sensação de insegurança” no estado.

Isso me fez pensar muito sobre as bolhas. Será que falar do perigo que representa termos uma polícia altamente letal é falar para um nicho específico? Será que a grande maioria das pessoas entende quando ouvimos especialistas falando em “necessidade de intervenção séria para frear a alta letalidade policial, fruto de uma escolha política, desde os tempos da república velha”

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“As pessoas não querem ouvir do candidato que ele vai investir em políticas públicas de educação para evitar que jovens entrem para o crime”, me disse ela. “Elas querem ouvir da boca do candidato: não vou deixar seu filho virar bandido”, completou.

 

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E faz todo o sentido. Faz todo o sentido na nossa sociedade pautada pelo medo. O medo de morrer num assalto, o medo de morrer por engano, o medo de ser estuprada, o medo de reagir mal, o medo de sair na rua.  A tal sensação de insegurança.  Faz todo sentido que isso toque o coração de uma sociedade que tem 29% dos adultos de 15 a 64 anos analfabetos funcionais – o equivalente a cerca de 38 milhões de pessoas. Como esperar que seja feita uma relação complexa de causa e efeito, quando o básico não fica claro.

É aí que está o perigo daqueles (não vou nomear, pois não é preciso) que falam o que o cidadão amedrontado quer ouvir e, por outro lado, daqueles (novamente não falo nomes)  que defendem a salvação do mundo através de saraus de poesia e aulas de bambolê.

Pensei muito sobre isso e sobre a nossa real função no jornalismo, na comunicação. Será que estamos falando para bolhas? Esse medo exagerado também não é, de certa forma, fruto do viés que escolhemos para tratar da criminalidade? Fruto do estereótipo do criminoso? Do desespero por achar culpados? Não seria essa sensação se insegurança também uma bolha?

A repercussão das outras matérias não foi diferente. Quando mostrei a falta de estrutura e superlotação dos presídios paulistas e que, por isso, prender demais  não resolve, recebi um e-mail de um ouvinte dizendo: “não quer chorar no rádio, não cria filho bandido”. Quando falei da falta de controle que o estado tem sobre as armas apreendidas e registadas, recebi outro dizendo “ah, então só o bandido pode ter arma, mocinha”?

No final dos cinco capítulos  eu me questionei mais do que quando comecei a empreitada. Por estar fora da lida diária da reportagem há um tempinho, isso mexeu comigo, especialmente. Mas acho que fiz a coisa certa. Não estamos aqui só para criar conteúdo sob demanda. É preciso causar desconforto. Nem que seja em nós mesmos, nas nossas convicções.

Para entender, sugiro a audição da série de reportagens

Violência Policial você ouve aqui

Desvalorização das polícias investigativas você ouve aqui 

Superlotação dos presídios e PCC você ouve aqui 

Descontrole no uso de armas de fogo você ouve aqui 

Crescimento nos registros de estupro você ouve aqui 
Voos Literários

“Os livros são o meu futuro”

Flávia Cunha
6 de junho de 2017

A imagem da pequena Rivânia, de 8 anos, em meio à enchente que atingiu a pequena cidade São José da Coroa Grande, no interior de Pernambuco, viralizou na web e virou notícia. A menina foi aconselhada a levar da casa alagada o que considerasse mais importante. Carregou sua mochila com livros e cadernos, por nele estarem “o seu futuro”. Como não se comover com uma fala com essa? Blogs de todos os tipos deram a notícia, até a grande mídia deu destaque para a atitude da menina. O governador de Pernambuco aproveitou o ensejo para doar livros para Rivânia e sua escola.

Sempre que aparecem notícias positivas como essa, meu coração se enche de esperança. É fato raro uma pessoa que não é da elite parar nos noticiários por uma razão positiva. O detalhe mais tocante é a que essa garotinha ainda é analfabeta, só tem a intuição de que os livros são o caminho para um futuro melhor.

Não tão longe na questão financeira, mas mostrados como verdadeiros monstros, estão os usuários de crack de São Paulo. Ao destruir o local da famosa Cracolândia, a prefeitura achou que resolveria magicamente um grave problema social e de saúde pública. A questão não é nova, como mostra essa matéria aqui, dura pelo menos 20 anos.

O escritor Joca Reiners Terron, radicado em São Paulo desde a década de 1990, mostra a luta entre policiais e usuários de crack como pano de fundo do livro A tristeza extraordinária do Leopardo-das-Neves, lançado em 2013.

“Da janela do carro, ao passarmos pela região da Luz, enquanto ele investigava alguma cena microscópica que ocorria na nuca do motorista, eu via os vultos dos viciados em crack se arrastando pelas ruas com seus cobertores, através dos quais vazava a chama de isqueiros sendo acesos e apagados, acesos e apagados. Pareciam corações pulsantes na noite escura ou estrelas num céu preto de tempestade. Calçadas inteiras eram cobertas pelo emaranhado de membros, braços e pernas e pescoços de um só corpo sem início nem fim. A brigada policial observava aquele imenso tapete humano à distância, de cassetetes na mão, tangendo-o em blocos para o lado de lá da praça, mas qual lado?”

Um pouco mais adiante, ele amplia o olhar sobre esse assunto, que ronda São Paulo há tanto tempo:

“O campo de concentração estava ali mesmo, à vista de todos, no centro da cidade. De repente, uma bomba de gás lacrimogêneo explodiu e os noias debandaram em nossa direção, impedindo a passagem do táxi. Pude examiná-los muito de perto, como se estivesse no zoológico e observasse as jaulas dos animais. Suas caras eram umas máscaras distorcidas de medo e fúria, roupas imundas, a pele enegrecida de óleo e fuligem. Um deles se aproximou, encostando os olhos e exibindo as gengivas na janela ao lado do velho, que o encarou com toda a sua apatia. De imediato aqueles dois pares de olhos reconheceram um ao outro através do vidro, e por um instante pensei que afinal não eram os viciados que estavam entre as grades do zoológico, e sim nós detrás de vidros e portas fechadas.”

A solução mágica não existe. Nem na Literatura nem no mundo real. Resta ao poder público e à população encarar de frente a situação, sem maniqueísmo.

Igor Natusch

O estranho caso do político que faz de conta que não é político

Igor Natusch
17 de maio de 2017
Brasília - O prefeito eleito de São Paulo, João Doria Junior, durante entrevista coletiva após encontro com o presidente Michel Temer (Valter Campanato/Agência Brasil)

O prefeito de São Paulo, João Dória, não é um político. E isso não é uma acusação feita a ele, ao contrário: é um mantra que o próprio chefe do Executivo paulistano repete sempre que possível, em um esforço incansável de convencimento coletivo. Mesmo estando eleito para fazer política pelo voto popular, mesmo precisando tomar decisões políticas, a partir de uma visão política das necessidades da maior cidade brasileira, em um ambiente cheio de disputas cuja natureza é incontornavelmente política: ainda assim, Dória usa a mais plácida das expressões faciais para dizer, e repetir, e frisar e acentuar que não, ele não é político. Não apenas isso: a coisa é dita com um ar de distanciamento muito claro, como se o prefeito não apenas nos informasse de que não vê a si mesmo como político, mas como quem faz questão de não ser político, como quem teme ser reconhecido como político pelo seu eleitorado.

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Não é uma admissão, um ‘ok, tens razão, não sou político’, mas bem mais um ‘não sou político coisa nenhuma, deus me livre’

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A despolitização da sociedade brasileira é o barro de onde surge esse tipo de coisa. Ser político, como sabemos, virou quase palavrão. O arquétipo do político, mais do que nunca em tempos de Lava-Jato e crise institucional generalizada, é de uma pessoa falsa e corrupta, que diz qualquer coisa para se eleger, que não dá a mínima para a população e na qual não se pode confiar. Não é uma missão para a qual se é eleito, mas sim uma espécie de profissão ou, melhor dizendo, de compromisso entre desonestos, quase uma parceria mafiosa. E aí convenhamos, quem quer falar sobre sua atividade do mesmo modo que um bandido confessa seu crime?

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Há tempos estamos elegendo governantes, na maioria das vezes, pelo que eles evocam de não-político na sua imagem ou discurso

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Vamos além de Dória, então: quem elegeu José Ivo Sartori governador do Rio Grande do Sul pensando em suas propostas? Todos sabemos que o que mais pesou foi sua imagem de ‘gringo’ gente boa, manso e bonachão, uma aparente chance de tranquilidade em um estado sempre incendiado pelo antagonismo político. Por outro lado, não se poderá dizer que Nelson Marchezan Júnior é alguém sem ideário ou trajetória política, mas até que ponto o dinamismo e juventude do atual prefeito de Porto Alegre (características marteladas durante toda a campanha do ano passado) são valores políticos?

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Nas redes sociais, nos bares e nas urnas, nossa discussão é pouquíssimo política: é uma briga de simpatias contra antipatias, onde o bem e o mal se confrontam, onde o potencial político de uma figura pública é medido a partir do seu não-envolvimento (prévio ou, em alguns casos, permanente) com a política institucional ou militante

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Não é à toa que muitos veem o manifestante como vagabundo, o fazer política como algo ineficiente, o debate político como besteira. Estamos enojados com o que virou nossa engrenagem política, de tal modo que tudo que esteja fora dela nos parece menos contaminado e, portanto, uma melhor opção. É nesse descrédito que figuras como João Dória, pela insistência em distanciar-se da política que ora exercem, acham várias ondas para surfar.

João Dória coloca a si mesmo como um empresário e, acima de tudo, um gestor. Embora a capacidade de gestão seja obviamente fundamental para manter um município – ou estado, ou país – nos eixos, não é minimamente possível gerir uma máquina política sem fazer política – e o que é fazer política senão assumir o papel de político? O prefeito de São Paulo, inclusive, continua fazendo política de forma incansável, com uma série de ações claramente midiáticas que causam a nítida impressão de que ele ainda não desceu do palanque, que continua em campanha para uma nova eleição que ainda não se definiu qual seja, mas aponta mais para Brasília do que para o Palácio dos Bandeirantes. Que não-político é esse que, mal eleito para a prefeitura, e mesmo tendo garantido que cumpriria esse mandato até o fim e não tentaria reeleição, admite com cada vez menos reservas que topa concorrer ao que quer que apareça como oportunidade em 2018? Que não-político é esse que se manifesta de forma dura, e claramente política, sobre uma greve geral que visa o governo federal, que não traz nenhuma oposição direta a sua própria administração – ou seja, que se posiciona de forma política sobre um relevante evento político?

Sugiro ao leitor e à leitora que desconfiem de quem, em meio aos políticos, insiste que não é político. Ou não é capaz de ver a si mesmo como político, mesmo sendo um deles, ou simplesmente tenta desviar os olhares para algum outro lugar. Ser ou não ser um político não é um predicado em si mesmo: é uma tarefa, que se assume ou não, de forma confessa ou dissimulada. E eu não sei vocês, mas eu quero meus eleitos bem políticos mesmo, porque ou a gente faz política de peito aberto ou ela simplesmente não serve, bem dizer, para nada.

Foto: Valter Campanato / Agência Brasil