Voos Literários

“Os livros são o meu futuro”

Flávia Cunha
6 de junho de 2017

A imagem da pequena Rivânia, de 8 anos, em meio à enchente que atingiu a pequena cidade São José da Coroa Grande, no interior de Pernambuco, viralizou na web e virou notícia. A menina foi aconselhada a levar da casa alagada o que considerasse mais importante. Carregou sua mochila com livros e cadernos, por nele estarem “o seu futuro”. Como não se comover com uma fala com essa? Blogs de todos os tipos deram a notícia, até a grande mídia deu destaque para a atitude da menina. O governador de Pernambuco aproveitou o ensejo para doar livros para Rivânia e sua escola.

Sempre que aparecem notícias positivas como essa, meu coração se enche de esperança. É fato raro uma pessoa que não é da elite parar nos noticiários por uma razão positiva. O detalhe mais tocante é a que essa garotinha ainda é analfabeta, só tem a intuição de que os livros são o caminho para um futuro melhor.

Não tão longe na questão financeira, mas mostrados como verdadeiros monstros, estão os usuários de crack de São Paulo. Ao destruir o local da famosa Cracolândia, a prefeitura achou que resolveria magicamente um grave problema social e de saúde pública. A questão não é nova, como mostra essa matéria aqui, dura pelo menos 20 anos.

O escritor Joca Reiners Terron, radicado em São Paulo desde a década de 1990, mostra a luta entre policiais e usuários de crack como pano de fundo do livro A tristeza extraordinária do Leopardo-das-Neves, lançado em 2013.

“Da janela do carro, ao passarmos pela região da Luz, enquanto ele investigava alguma cena microscópica que ocorria na nuca do motorista, eu via os vultos dos viciados em crack se arrastando pelas ruas com seus cobertores, através dos quais vazava a chama de isqueiros sendo acesos e apagados, acesos e apagados. Pareciam corações pulsantes na noite escura ou estrelas num céu preto de tempestade. Calçadas inteiras eram cobertas pelo emaranhado de membros, braços e pernas e pescoços de um só corpo sem início nem fim. A brigada policial observava aquele imenso tapete humano à distância, de cassetetes na mão, tangendo-o em blocos para o lado de lá da praça, mas qual lado?”

Um pouco mais adiante, ele amplia o olhar sobre esse assunto, que ronda São Paulo há tanto tempo:

“O campo de concentração estava ali mesmo, à vista de todos, no centro da cidade. De repente, uma bomba de gás lacrimogêneo explodiu e os noias debandaram em nossa direção, impedindo a passagem do táxi. Pude examiná-los muito de perto, como se estivesse no zoológico e observasse as jaulas dos animais. Suas caras eram umas máscaras distorcidas de medo e fúria, roupas imundas, a pele enegrecida de óleo e fuligem. Um deles se aproximou, encostando os olhos e exibindo as gengivas na janela ao lado do velho, que o encarou com toda a sua apatia. De imediato aqueles dois pares de olhos reconheceram um ao outro através do vidro, e por um instante pensei que afinal não eram os viciados que estavam entre as grades do zoológico, e sim nós detrás de vidros e portas fechadas.”

A solução mágica não existe. Nem na Literatura nem no mundo real. Resta ao poder público e à população encarar de frente a situação, sem maniqueísmo.