Entrando em seu oitavo mês de mandato, Nelson Marchezan Jr. tem deixado bem clara a disposição de seguir uma trilha de conflito, com poucas margens para conciliação. E o faz de uma forma não necessariamente truculenta, jogando com o imaginário de seu eleitorado cativo e consolidando, ao invés de enfraquecer, a imagem de pessoa dinâmica e dedicada a soluções, sem concessões e sem desperdício de tempo. Não é o único a adotar tal fórmula, nem o mais destacado, muito menos um inovador – mas seu exemplo é útil para entender alguns aspectos (bastante preocupantes, creio eu) da política atual.
Na última semana, a prefeitura de Porto Alegre lançou uma série de projetos e ideias que mudam radicalmente aspectos importantes da relação da população com a cidade.
Eliminar a gratuidade da segunda passagem de ônibus, propor que idosos e estudantes paguem mais do que hoje pagam para se deslocar, legalizar a deplorável prática do parcelamento de salários, aumentar os valores do IPTU, entregar à iniciativa privada serviços de água e esgoto – tudo isso proposto com pouca ou nenhuma discussão prévia com a sociedade.
Algumas dessas mudanças contradizem declarações dos tempos de campanha, outras sequer haviam sido ventiladas antes de virarem projetos de lei. E tudo que as sustenta é um slogan simplificador, muito mais vago do que parece: a afirmação de que estamos em grave crise financeira e é preciso agir rápido para que as coisas não fiquem ainda piores. É uma agenda que nunca foi exposta às claras, nem mesmo aos vereadores da base aliada, que periga virar lei sem que se conheça suas implicações e sem que haja certeza que a cidade concorda com ela. Ilegal não é, por certo, mas não é nada transparente.
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Diante de críticas que, certas ou erradas, nada têm de desonestas ou ilegítimas, a resposta de Marchezan e de sua gestão tem sido fomentar um confronto permanente, ainda que edulcorado com toques de populismo de internet
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Ao fazer vídeos dançando e editar decretos fictícios que, em meio ao pretenso bom humor, trazem críticas pouco veladas aos oponentes políticos, o prefeito opta por angariar simpatia ao invés de convencer no embate de ideias. Não se dirige à população, mas sim ao grupo que o elegeu, reforçando os elementos de aproximação entre eles – em especial os que remetem à antipatia contra os inimigos de esquerda.
Todo questionamento à atual gestão é imediatamente arremessado aos pecados de gestões anteriores e/ou de inimigos comuns, quando não atribuído diretamente a uma desonestidade, política ou intelectual, de quem traz as questões. Em certo sentido, a campanha eleitoral não acaba nunca – e se a necessidade de escolher um lado está sempre presente, anula-se a ideia de governar para todos, já que a oposição nunca abandona o cenário político.
Repito: Marchezan não é o criador dessas coisas, tampouco um inovador nesse sentido. É, para o bem e para o mal, só mais um. Ou é muito diferente o que João Dória tem feito sistematicamente em São Paulo, parecendo mais preocupado com Lula e o PT do que com a cidade que governa? É muito diferente do que José Ivo Sartori faz no Rio Grande do Sul, propondo extinção de fundações sem jamais explicar o benefício que tal medida traria e tentando arrancar da população o direito de decidir, em plebiscito, se topa ou não vender suas principais estatais? Diferencia-se tanto assim das medidas de Michel Temer na esfera federal, promovendo a toque de caixa e sem debate prévio drásticas mudanças na legislação sob a alegação de que é preciso “modernizar” para “retomar o desenvolvimento”?
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No coração da dita democracia brasileira crescem práticas que são pouquíssimo democráticas. E elas se multiplicam na medida em que há uma falência de princípios importantes para a democracia: a transparência, o debate, a coletividade
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Na medida em que o processo eleitoral deixa de ser uma escolha coletiva e passa a ser uma mera legitimação de grupo, andamos rumo à exceção. E dizer isso não é dizer que Marchezan, ou Dória, ou Temer (ou mesmo Lula, por exemplo, que andou por trilhas semelhantes em vários momentos e parece seduzido pela ideia de fazê-lo uma vez mais) são fascistas ou autocratas. Eles apenas estão, desejosos ou não, conscientemente ou não, pavimentando o terreno. Entenderam, de forma consciente ou instintiva, o caldo de cisões do nosso tempo, e o usam a favor de suas agendas. Se não temos certeza de como agir diante disso tudo, que ao menos não nos falte o alerta: isso pode nos criar problemas bem maiores do que um prefeito querendo governar sozinho.
Foto: Luciano Lanes / PMPA

