Voos Literários

Sucupira é aqui ou acolá?

Flávia Cunha
1 de agosto de 2017

Sempre que eu leio notícias do que considero desmandos dos prefeitos de Porto Alegre e São Paulo, me vem à mente a figura de Odorico Paraguaçu, o hiperbólico governante de Sucupira, a cidadezinha ficcional criada por Dias Gomes. Antes de virar sucesso no teatro, na televisão e no cinema, o texto de O Bem-Amado estreou nas páginas da revista Cláudia, em 1963.

De acordo com o autor, a figura do prefeito falastrão foi inspirada no político brasileiro Carlos Lacerda, antagonista de Getúlio Vargas. Alguns especialistas do meio literário também apontam semelhanças com o ex-presidente Jânio Quadros, pelo jeito peculiar de expressar-se em público – “Fi-lo porque qui-lo” e “Bebo-o porque é líquido, se fosse sólido comê-lo-ia” são algumas das frases mais famosas de Jânio.

O personagem Odorico Paraguaçu era um grande populista, adorado por seus eleitores e um grande sedutor das mulheres da cidade. Seu discurso era marcado por uma retórica complicada mas extremamente vazia.

.

“Vamos botar de lado os entretantos e partir para os finalmentes” era um dos bordões de Odorico. Sobre sua ideologia política, declarava: “Eu também sou meio socialista. Não de ponta esquerda… do meio de campo, caindo para a direita!”

.

Também atribuía frases próprias (e descabidas) a personalidades. É o caso da seguinte frase, citada pelo personagem como sendo de um grande escritor brasileiro. “Como dizia o poeta Castro Alves: ‘Bendito aquele que derrama água, água encanada, e manda o povo tomar banho'”.

.

Ao ser candidato a prefeito de Sucupira, a grande promessa de campanha de Odorico era construir um cemitério na cidade. De acordo com Odorico, “a obra entraria para os anais e menstruais de Sucupira e do país”

.

O trecho abaixo integra a peça O Bem-Amado e refere-se a uma conversa do prefeito, já eleito, com seu afilhado político e secretário, Dirceu Borboleta, na presença do vigário da cidade. O objetivo era tentar, de alguma forma, viabilizar a promessa de campanha.

DIRCEU – Está tudo aqui. O senhor vai examinar agora?

ODORICO – Vou. Quero saber logo se há alguma verba para dar início à construção do cemitério.

DIRCEU – (Coloca os processos sobre a mesa) Nem um tostão. Só déficit.

ODORICO – (Folheia os processos) Não é possível.

DIRCEU – A prefeitura tem um terreno…

ODORICO – O terreno só não resolve, é preciso dinheiro para o muro, as alamedas, a capela.

DIRCEU – (Examinando um processo) Parece que há um restinho de verba da água. ODORICO – Da água?

DIRCEU – Para consertar os canos.

ODORICO – Diz isso aí?

DIRCEU – Não, aqui só fala em obras públicas de urgência.

ODORICO – O cemitério também é uma obra pública de urgência. É ou não é? (Irônico) De muita urgência…

DIRCEU – Há um restinho, pouca coisa…

ODORICO – (Anima-se) Não tem importância, um restinho com mais um restinho, já se faz um cemiteriozinho.

DIRCEU – É da luz. Para aumentar a força.

ODORICO – Para que aumentar a força?

VIGÁRIO – A luz anda muito fraca, Coronel, quase não se consegue ler.  

ODORICO – Mas para que ler de noite? Pode-se ler de dia. E depois, uma cidade de veraneio deve ter luz bem fraca, para que se possa apreciar bem o luar… A cidade é muito procurada pelos namorados… o senhor Vigário me perdoe.

DIRCEU – Só que esse desvio de verba…

ODORICO – É para o bem do município. Tenho certeza que Deus vai aprovar tudo.

VIGÁRIO – Quem sabe?… As intenções são boas… E como Deus não é um burocrata… ODORICO – Então vamos escolher o terreno.

DIRCEU – A prefeitura só tem um, mas está ocupado.

ODORICO – Ocupado? Por quem?

ODORICO – Ora, o circo que se mude. Chega das palhaçadas de antigamente. Prafrentemente, vamos tratar de coisas sérias. Pode levar isso daqui. (Dirceu sai com os processos)

ODORICO – Quero ver agora o que vão dizer os que me acusavam de oportunista, de demagogista. Quando virem os pedreiros levantando os muros, construindo a capela, calçando as alamedas…

.

ENTRE A LITERATURA E A REALIDADE

Passando para o mundo real,  será que os prefeitos são tão caricatos? Para demonstrar que não é mera implicância minha a comparação, selecionei alguns eventos da trajetória de Nelson Marchezan Junior à frente da capital do Rio Grande do Sul e de João Dória em São Paulo.

Começamos pela maior metrópole da América Latina. Por lá, Dória elegeu-se com um discurso notoriamente apolítico, dizendo-se um  gestor, um empresário.

.

Mas quer coisa mais populista do que fazer-se de gari, pintor ou cadeirante para chamar a atenção? (Acho que Odorico adoraria ter feito as mesmas coisas como prefeito. Que inspiração, hein?)

.

Alguns meses depois, Dória colocou suas “garras” conservadoras de fora, quando assumiu uma postura higienista na capital paulistana ao resolver acabar com a Cracolândia. O resultado, longe de agradar especialistas no assunto, foi bem desastroso.

Aqui em Porto Alegre, Marchezan notabilizou-se pelo seu temperamento difícil e por postagens politicamente incorretas nas redes sociais, que trouxeram críticas e aversão à parte dos moradores da capital gaúcha.

.

O que, na minha visão, mais aproxima Marchezan de Odorico Paraguaçu é a sua conduta antes e depois da campanha.

Prometeu muita coisa, cumpre, até agora, pouco

 

.

O fato chamou a atenção da grande mídia, ao fazer comparações de promessas de campanha com o que realmente fez depois de eleito.

A dúvida que fica é se Dória e Marchezan cederão à pressão popular e da imprensa ou darão uma de Odorico Paraguaçu, criticando A Trombeta, o jornal de Sucupira. Ainda resta um tempo de mandato para os dois políticos darem-se conta de suas trajetórias nada exemplares.

PS 1: Para quem achou divertido comparar a situação política brasileira com O Bem-Amado, a ideia não é nova. Eis a Rádio Sucupira, da rádio CBN.

PS 2: Para quem gosta de comparar a política com músicas, me foi recomendada a letra da canção Voto em Branco, da grande banda Plebe Rude.