Igor Natusch

O julgamento de Lula não vai acabar bem – e é isso que muita gente quer

Igor Natusch
4 de janeiro de 2018

O clima em torno do julgamento em segunda instância de Lula, que acontece no fim de janeiro em Porto Alegre, é tenso meio que de nascença. Que teremos enormes protestos e ruidosos antagonismos, isso até as formigas que andam no meio-fio em frente ao TRF-4 sabem. Mas é fácil constatar que nossas autoridades não trabalham no sentido de passar tranquilidade e mediar eventuais conflitos, mas sim de tensionar ainda mais a situação, criando algo próximo de uma preparação para a guerra civil.

De início, a Justiça decidiu proibir acampamentos do MST no entorno do TRF-4, em especial no Parque da Harmonia, que fica nas proximidades. Uma medida duplamente insólita, pois impede o que não é crime (ou cometiam crime os que estavam no Acampamento Sérgio Moro, no Parcão?) e proíbe algo que, convenhamos, os trabalhadores sem terra nunca pediram autorização para fazer. Essa semana tivemos a truculenta abordagem policial ao repórter fotográfico Guilherme Santos, do Sul21, que foi interrompido de arma em punho porque “alguém” achou “suspeito” que ele estivesse fotografando a fachada do TRF-4. E agora temos Nelson Marchezan Júnior, prefeito de Porto Alegre, pedindo a Força Nacional na capital gaúcha para os dias de julgamento – algo que, pelo jeito, não consultou ninguém para fazer, nem mesmo o gabinete de crise estabelecido no governo estadual para tratar do tema. E que já foi desconsiderado pelo secretário estadual de Segurança Pública.

Há um elemento específico no inesperado pedido de Marchezan, que se revela em suas próprias palavras, quando diz que assim procede devido às “manifestações de líderes políticos, que convocam uma invasão de Porto Alegre“. Lembrando que, quando das marchas em favor do impeachment de Dilma Rousseff, o próprio Marchezan participou abertamente, inclusive subindo ao carro de som para falar à massa. Como vem fazendo com frequência em seu governo, Marchezan fala a um público particular, que odeia e teme tudo que entende como petralha e/ou esquerdista, e faz uso de seu apoio imediato como um elemento de legitimação. Mas é possível ir além.

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Não é apenas Marchezan que deseja a cidade hostil a manifestações neste momento, não é só ele que age para impedir completamente o que seria um grande grito coletivo dos que se reúnem em torno de Lula

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São reações a algo mais concreto do que o medo de conflitos: há, como subtexto dessas iniciativas todas, uma vontade de deslegitimar a manifestação de um dos lados e, ao mesmo tempo, abrir a brecha para descer o sarrafo, caso ela ocorra. Incluindo aí a imprensa, que tem como dever profissional fazer a cobertura de tudo que acontecer dentro e fora do tribunal.

O clima para julgar Lula não tinha como ser agradável, é claro. Mas vivemos uma certeza de conflito, uma garantia de repressão brutal a qualquer manifestação favorável ao réu, que está longe de ser inevitável. Assim será porque a preocupação não é democrática, mas sim com a supremacia de uma teoria e a prevalência de uma ideia.

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O gesto desastrado de Marchezan (mais um de uma longa lista, vamos combinar) é mais um sintoma de como a prefeitura de Porto Alegre está mergulhada em uma disputa ideológica que a ela deveria dizer pouco respeito, mas martelar demais em cima disso me parece, para usar o termo técnico, chutar cachorro morto

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Ele acaba sendo, seja por oportunismo ou falta de traquejo político, mais um sintoma de algo maior e, sinceramente, bem mais grave

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A beligerância e a intolerância são estratégias. Protestos pacíficos, como sabemos, só se agradam aos poderes estabelecidos e/ou as conveniências de momento. Assim era no próprio governo de Dilma Rousseff, que editou a esdrúxula lei antiterrorismo e reprimiu com gosto as manifestações durante a Copa do Mundo, para citar só um exemplo. No momento, os partidários de Dilma estão do lado que se prefere que fique quieto, mas o que deve ser protegido aqui não é a posição que defende Lula como um injustiçado, mas sim os alicerces mais básicos da livre manifestação. Não se justifica jogar tudo para o alto em nome de um alegado clima de guerra insuflado pelos mesmos setores que tratarão depois de, supostamente, debelá-lo. A democracia, amigas e amigos, vai muito mal no Brasil, e fica cada vez mais claro quem, no fundo, nunca deu a ela tanto valor assim.

Foto: Guilherme Santos/Sul21. A realização de imagens como esta foi a “atitude suspeita” que levou à abordagem, de arma em punho, por integrantes da Brigada Militar, no começo desta semana

Igor Natusch

Isolado pelas próprias discórdias, Marchezan coloca em risco o seu governo

Igor Natusch
23 de novembro de 2017

“Se esse tipo de impasse permanecer, em 2018, ele se inviabiliza como chefe do Executivo”

 

A advertência – dura, incisiva, sem nenhum esforço de diplomacia – não é de um esquerdista raivoso em oposição radical contra o prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Júnior: vem de Valter Nagelstein, vereador eleito pelo PMDB, partido de centro e que chegou a ensaiar movimentos para, mesmo derrotado nas urnas, entrar na base do atual prefeito na Câmara Municipal.

Não é uma frase leviana, diga-se. Poderia parecer um exagero em outras circunstâncias. Mas o fato é que Marchezan, com seu gênio cada vez mais intratável e seu personagem público gerando cada vez menos simpatia, começa a tornar plausível algo que, com menos de um ano de governo e em um cenário ideologicamente favorável, não era para fazer nenhum sentido.

 

Atuando de forma divisiva em todas as frentes, o prefeito de Porto Alegre vai inviabilizando o próprio governo, tanto no ideário quanto na prática

 

Na última semana, duas declarações desastradas, com alvos diferentes, erodiram ainda mais a relação de Marchezan com setores fundamentais para a viabilidade de seu governo. Embora não seja recente, a fala em congresso do MBL dizendo que “parlamentar é cagão” pegou muito mal junto aos vereadores, ao ponto de aliados assinarem requerimento para que o prefeito esclareça, no plenário da Câmara Municipal, o que quis dizer. E a população em geral (incluindo muitos eleitores de Marchezan) não recebeu bem a postagem em redes sociais, feita em Paris, sobre colocar carregadores de celular nas paradas de ônibus – uma ideia que não é ruim em si mesma, mas quase ofensiva numa realidade de arrastões em pontos de embarque e de terminais, como o Triângulo, em péssimas condições de conservação.

Um dos pontos mais bem sucedidos da campanha que elegeu Marchezan foi a imagem de político jovem, incisivo e, acima de tudo, dinâmico. Enquanto os concorrentes faziam falas estáticas em estúdios, ou gravavam todas as suas intervenções em áreas centrais da cidade, Marchezan aparecia sempre em movimento, dentro dos cenários que mencionava, da Restinga à Cidade Baixa, no Quarto Distrito e na Vila Mário Quintana.

 

Era a imagem de um homem que andava pela cidade, que a conhecia e, portanto, sabia como agir a respeito. E essa imagem vem sendo derrubada pelo próprio Marchezan, que não consegue melhorar a situação de abandono da cidade

 

Com essa sensação de paralisia, e com elogios a tomadas para celular em pontos de ônibus caindo aos pedaços, o prefeito dá sinal contrário ao desejado: o de alguém que não conhece a cidade, não enxerga seus problemas e está distante de solucioná-los.

A fala sobre políticos cagões pode ter arrancado aplausos dos jovens moralistas e superficiais do MBL, mas não poderia vir em pior hora para quem está cada vez mais ausente de aliados institucionais. Partidos aliados, como o PP, não mais se constrangem em votar contra os interesses do prefeito. Ex-líder de governo e pessoa influente dentro da Câmara, Claudio Janta acaba de chamar Marchezan de “bunda-mole” – sinal tanto da degradação de relações entre Executivo e Legislativo, quanto da disposição crescente de enfrentar de forma direta a postura do prefeito.

Já falei anteriormente sobre como essa proximidade de Marchezan com o MBL estava longe de ser o mar de rosas que Marchezan talvez imaginasse, bem como do potencial trágico no rompimento irrefletido com seu principal articulador na Câmara. Troca a imagem de homem preocupado com a cidade por uma persona conflituosa, que não cede em nada, que joga sobre os discordantes todas as responsabilidades – inclusive, e talvez principalmente, as suas próprias.

 

Para governar, um chefe de Executivo brasileiro precisa de acordo com o parlamento e/ou de suporte popular. Com as duas coisas, suas ideias irão longe; sem nenhum desses elementos, está condenado ao imobilismo ou coisa pior. Marchezan nunca chegou a ter ampla segurança nesses aspectos, mas está cada vez mais fragilizado, de um lado e de outro. E insiste em fórmulas que estão claramente erradas, independente de espectro político

 

Com pelo menos quinze baixas em pouco mais de dez meses de governo, em clima de guerra com seu influente ex-líder de bancada e com sua falta de diálogo criticada por aliados e opositores sem distinção, Marchezan planta discórdia onde precisa de tranquilidade, e essa colheita não tem como ser positiva.

Mantém a cidade em animação suspensa, mobiliza o forte sindicalismo municipário contra si, insiste em um série de quase insultos contra seus inimigos políticos e segue às turras com quem poderia defendê-lo quando isso tudo der errado. Em menos de um ano, Marchezan isolou-se. Talvez por vaidade, talvez por leitura equivocada de cenário, não parece nada disposto a mudar a rota. Vai transformando em possível um adágio que, no dia da posse, soaria como delírio: se seguir assim, talvez não termine o mandato mesmo, hein.

Foto: Luciano Lanes / PMPA

Igor Natusch

Para Marchezan, transporte público é despesa. Ele está errado

Igor Natusch
8 de novembro de 2017
Porto Alegre, RS 06/11/2017 Reunião com líderes dos taxistas Fotos: Cesar Lopes/ PMPA

Segundo o prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Júnior, a Carris está com os dias contados. O termo foi usado por ele em uma entrevista à Rádio Guaíba e reproduzido pelo Jornal do Comércio. Para ele, ter R$ 60 milhões anuais com a empresa pública de ônibus da cidade é uma “despesa” que não se justifica, e que poderia ser repassada para áreas prioritárias, como saúde e educação. “Se vai ser privatização, extinção, licitação das linhas…”, lista Marchezan, mencionando alternativas que, todas elas, entregariam completamente a exploração e/ou fornecimento do serviço à iniciativa privada.

Evidente que o prefeito tem a prerrogativa de ver a administração da máquina pública como quiser. Se ele acha que o melhor caminho é entregar o máximo possível a empresários ligados ao setor, cabe a ele fazer o debate e defender sua leitura. Eu não concordo com ele, mas isso nem vem (tanto) ao caso.

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O que realmente incomoda, aqui, é tratar o dinheiro colocado na Carris como “despesa”

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Como assim, despesa? Pelo menos desde 2015, o transporte coletivo é reconhecido pela União, em forma de emenda constitucional, como direito social – igualado, inclusive, à saúde e educação que Marchezan menciona como áreas que supostamente têm menos dinheiro a partir da “despesa” com a Carris. Não é como se o município estivesse sangrando dinheiro em algo irrelevante, em peças publicitárias ou algo assim: ele está subsidiando o cumprimento adequado de um direito social. Investir em saúde, educação ou segurança não é queimar dinheiro – e, da mesma forma, colocar grana em transporte coletivo de qualidade também não é, como várias das cidades de melhores índices do mundo podem demonstrar.

Há mais. Qualquer consulta à população será capaz de comprovar que o serviço prestado pela Carris é visto como o mais qualificado em toda Porto Alegre. São os ônibus em melhores condições e os que cumprem com maior rigidez os horários. Além disso, atendem rotas consideradas importantes dentro do (escasso) planejamento de mobilidade urbana da cidade, e que as demais concessionárias hesitam ou recusam-se a atender, por não considerarem capazes de gerar a margem de lucro desejada.

A Carris serve tanto as rotas circulares no Centro estendido, que ajudam a desafogar o trânsito na região, quanto as linhas transversais que atravessam a cidade de ponta a ponta e ajudam multidões a ir e voltar com apenas uma passagem, todos os dias. A “despesa”, no caso, permite manter itinerários que ajudam a manter algum equilíbrio em todo o sistema, com um padrão de qualidade que deveria servir de padrão para as operadoras privadas – o que não é de modo algum o caso, como qualquer um que usa ônibus em Porto Alegre poderá facilmente constatar.

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Marchezan, ao que parece, não consegue conciliar-se com a ideia de que o transporte público é um direito básico do cidadão, não um cano quebrado vazando dinheiro dos cofres públicos

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Assinou texto extinguindo a segunda passagem gratuita – usada, como a lógica nos diz, pelos que moram mais distantes e mais precisam do transporte público, muitas vezes sem dispor de recursos para um deslocamento diário à região central. Para tal, passou por cima até da legalidade, pois o desconto estava previsto na licitação para explorar o serviço, e retirar o benefício seria dar um desconto às empresas, sem reverter em melhoria alguma ao usuário (ao contrário, aliás). Fala em retirar isenções de idosos e aumentar a vida útil dos veículos, além de limitar o acesso à meia passagem estudantil – propostas que buscam não a diminuição da tarifa, mas que ela “aumente menos” no próximo ano.

É um pensamento que enxerga no transporte coletivo despesas, números e cifrões, não pessoas que precisam se deslocar todos os dias para o trabalho, a aula ou mesmo para o lazer

As pessoas precisam ir e voltar. Não seria desejável para a saúde do trânsito, mesmo que isso fosse financeiramente possível, que todas o façam com veículos particulares – logo, é fundamental que tenhamos um serviço de ônibus que funcione, que tenha padrões de qualidade, que atenda o trabalhador que sai da periferia cedo de manhã e também o estudante que termina a aula na faculdade e vai encontrar amigos em um bar. As pessoas precisam disso tanto quanto precisam de professores bem remunerados e de postos de saúde em boas condições, porque (e isso Marchezan não parece entender) as pessoas não podem ausentar-se da cidade. Nem que quisessem.

Não é despesa, prefeito. É investimento na cidade e na população. E está entre os mais importantes investimentos que o senhor, como gestor público, pode fazer. Sugiro que essa determinação de acabar com a Carris seja repensada, pelo bem do povo que o elegeu.

Foto: Cesar Lopes / PMPA

Igor Natusch

Pegar carona no MBL não é só alegria – e Marchezan sentiu o recado

Igor Natusch
13 de setembro de 2017
12/09/2017 - PORTO ALEGRE, RS - Ato contra o cancelamento da exposição Quuermuseu, no Santander Cultural. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Em meio à gritaria e à sucessão de acontecimentos envolvendo o lamentável encerramento da mostra Queermuseu, no Santander Cultural de Porto Alegre (acontecimento que abordei, numa pegada um tanto diferente, em meu perfil no Medium) uma aparentemente pequena, mas na realidade bem significativa mudança de posição passou quase despercebida. Trata-se do prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Júnior, que postou em redes sociais uma mensagem que parecia endossar, sem qualquer crítica, os argumentos usados no ataque às obras – apenas para, poucas horas depois, deletar tudo sem comentários e sem explicações.

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Claro que nada há de intrinsecamente errado em postar algo e, pouco depois, arrepender-se. Convenhamos, quem nunca? O que interessa, aqui, não é o gesto em si, mas o recuo que ele traz, de todo incomum em um prefeito que se esmera em manter uma imagem de convicto e determinado. E é claro, os motivos que levam a essa reconsideração

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É bastante claro que o MBL, tão destacado nos protestos que levaram ao fim o governo de Dilma Rousseff, tem corrigido a rota de seu discurso nos últimos tempos. A luta contra a corrupção, fundamental em seu surgimento e que alçou seus jovens líderes ao insólito status de referências no tema, deixou de centralizar as ações do grupo – cedendo espaço a uma oposição menos política e mais, digamos, moral aos supostos pecados da esquerda.

Na medida em que enfraquece a suposta disposição de punir todos os corruptos, doa a quem doer – uma vez que não é possível apagar da internet todas as mensagens de apoio do MBL a Geddel Vieira Lima, Aécio Neves, Eduardo Cunha e tantos outros – surge forte o combate à suposta doutrinação ideológica promovida pelos inimigos, em especial contra a juventude indefesa. Depois da cruzada contra a lavagem cerebral nas escolas de São Paulo, surge a luta contra a imoralidade na arte, tudo em uma linguagem superlativa que beira a carolice.

A ideia é clara: aproximar o MBL dos núcleos mais conservadores, ao mesmo tempo que joga com o senso comum e com angústias primais de boa parcela da população. Engaja, com esse apelo ao moralismo chão e sem nuances, diferentes tipos de medo, diferentes preconceitos, diferentes obsessões. Talvez se possa dizer que distancia-se de Aécio e anda na direção de Bolsonaro, ou ao menos daqueles que nele desejam votar ano que vem. É um movimento de alinhamento político e, neste momento, é impossível dizer se vai funcionar ou não. Eu, pessoalmente, não duvidaria.

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A questão: esse movimento é interessante para Marchezan?

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Que o prefeito é no mínimo simpático ao MBL é sabido desde o começo de seu mandato. Traz pessoas próximas ou inseridas no grupo em diferentes esferas do Executivo, recebe alegremente integrantes em seu gabinete e adota, como já referi antes por aqui, uma postura de fidelização midiática que tem muito a ver com o modo que o MBL escolheu para fazer política.

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Até então, essa agenda vinha sem oscilações; neste começo de semana, porém, houve uma mudança. Talvez pela primeira vez em todo o governo, Marchezan recuou. O que causou esse passo atrás?

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Ler qualquer uma das declarações do secretário de cultura de Porto Alegre, Luciano Alabarse, após o fechamento da exposição ajuda a entender esse movimento. Mesmo longe da unanimidade, Alabarse é um homem da cultura, fortemente inserido no meio e que jamais poderia aceitar (como não aceitou) o encerramento de uma mostra de arte em meio a um verdadeiro frenesi de moralismo, como foi o caso. Ao mesmo tempo, é um dos mais enfáticos e leais secretários de Marchezan, ao ponto de escrever um artigo um tanto quanto caricato ao jornal Zero Hora, comparando o prefeito a Caetano Veloso. Some-se isso tudo ao post de Marchezan falando em pedofilia e zoofilia na exposição Queermuseu e teremos, senhoras e senhores, uma conta que não fecha.

Pela primeira vez, Marchezan viu-se diretamente confrontado com as dificuldades políticas envolvidas em sua aproximação com o MBL. Antes apenas sorvendo os bônus dessa parceria, teve que entender, na marra, que essa brincadeira tem seus ônus também – e que nem todos combinam com a imagem de político dinâmico, convicto e moderno que Marchezan anseia para si.

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Nada há de moderno em proibir acesso à arte, ao contrário: trata-se do que de mais velho, rançoso e retrógrado pode existir na política e no pensamento como um todo

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Se a primeira reação, dele ou da equipe que opera suas contas nas redes sociais, foi dentro do fluxo comum entre ele e o MBL, logo ficou claro que era um passo arriscado demais, com custos pesados a curto e médio prazo. Se o MBL corteja a extrema-direita com entusiasmo crescente, talvez ir tão fundo nisso não interesse tanto assim ao prefeito – afinal, governar uma cidade mergulhada numa caça às bruxas no campo artístico, com repercussão nos maiores veículos da mídia internacional, não é exatamente um predicado animador.

A patética sucessão de acontecimentos que encerrou prematuramente uma mostra artística no coração do centro de Porto Alegre pode trazer aprendizado, ainda que à força, a vários núcleos. Inclua-se na conta o Santander, que tentou escapar de um desgaste e mergulhou em outro de potencial talvez ainda maior, e o próprio MBL, que já adota uma postura mais defensiva e deu até declarações a rádios locais se distanciando do fim da mostra – como um pai que ainda quer ser reconhecido como tal, mas se recusa a embalar a criança que gerou. E suspeito que também a política local recebe um recado com o episódio: a de que a viagem de carona no trem festivo do MBL não será sempre um mar de rosas.

Foto: Guilherme Santos/Sul21

Igor Natusch

Discordância de Janta era um recado – que Marchezan não entendeu

Igor Natusch
30 de agosto de 2017
Porto Alegre/RS 21/06/2017 Cerimônia de abertura do Encontro de Gestores de Segurança Pública, promovido pelo Ministério da Justiça e Segurança Foto: Ricardo Giusti/PMPA
Como a essa altura todo mundo já sabe, o prefeito Nelson Marchezan Júnior destituiu o vereador Cláudio Janta (Solidariedade) da liderança do governo na Câmara de Porto Alegre. A medida, ainda que drástica, não surge exatamente sem razão: Janta havia deixado muito clara sua discordância quanto a projetos encaminhados ao Legislativo municipal, em especial os que modificam ou extinguem benefícios no transporte coletivo da Capital, e chegou a ingressar na Justiça com uma ação para tentar impedir o fim da segunda passagem gratuita nos ônibus. Em uma posição de representar os projetos do Executivo em meio aos vereadores, Janta insistia em enfrentar o prefeito em alguns deles, e foi essa insistência que levou ao seu afastamento.
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O problema é que a mudança nos primeiros escalões do governo Marchezan está longe de ser uma novidade. Já são muitos os nomes fortes que pedem afastamento ou são afastados por Marchezan, incluindo o então braço-direito Kevin Krieger e o secretário Ricardo Gomes. No segundo escalão, as desistências contam-se às dezenas. Reforça-se, a partir dessas mudanças todas e de conversas dos bastidores da política, a imagem de um prefeito de trato difícil, intransigente em suas ideias, pouco ou nada disposto a ouvir outras opiniões – algo que, diga-se, é traído até em seus comentários sobre a imprensa gaúcha e sua “mania de ouvir todos os lados“, segundo ele.
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Nesse cenário, demitir Cláudio Janta da liderança do governo é um erro estratégico flagrante, quase infantil da parte de Marchezan.

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Gostem ou não do vereador, o fato é que Janta é um político experiente e que entende como poucos o estado de coisas na Câmara de Porto Alegre. Sabe que as recentes posições de Marchezan, chegando ao ponto de dar um puxão de orelhas público em seus próprios apoiadores, geram uma fissura crescente em sua base. Foi firme na discordância, mas nunca partiu para o ataque direto e chegou a dizer que “implorava” ao prefeito que repensasse sua posição.
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Se enfrentou Marchezan (e sem dúvida o fez) não foi por capricho: foi para marcar posição e, acima de tudo, para dar um recado.

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“Debreia, prefeito. Isso não passa. Converse mais com a gente”. Eis o que se pode ler, sem muito esforço, nas entrelinhas do que Janta dizia. Um recado, transmitido do jeito que se dá recado na política: na tribuna, diante das câmeras e da opinião pública.
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Mas a leitura política de Marchezan não pega sutilezas. Recentemente, o ex-vereador João Antônio Dib, que passou quatro décadas na Câmara, criticou de forma razoavelmente polida a possível privatização do Dmae e os ataques ao funcionalismo municipal. Como Janta, dava um recado nas entrelinhas. “Debreia, prefeito. Isso não vai passar. Converse mais com a gente”. Marchezan não deu ouvidos. Para ele, a política parece ser não mais do que uma linha reta: um apoio é um apoio, uma afronta é uma afronta, e nada além. Incapaz de entender mensagens, queima os mensageiros, ou os desgasta ao ponto de simplesmente desistirem de seguir a seu lado.
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Sem Janta à frente, a base de Marchezan corre riscos cada vez maiores de esfarelar. Moisés Maluco do Bem pode ser leal, mas é um recém-chegado, eleito como suplente e sem o traquejo para a difícil costura necessária para que a situação não se desfaça em farrapos na primeira votação mais espinhosa. E, mesmo caindo em ouvidos moucos, o recado segue posto: há coisas que não passam. Não basta o prefeito querer.
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Marchezan vai inviabilizando a si mesmo, na medida em que todos a seu redor entendem que a aliança será sempre uma via de mão única, onde a prefeitura nunca vai ceder.

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Nenhum vereador vai comprometer uma base eleitoral de décadas em nome de uma aliança nesses termos, menos ainda por projetos impopulares e de alto custo político. Mais de uma pessoa já tentou dizer isso a Marchezan – alguém que, diga-se, vem de uma história parlamentar e deveria estar sensível a esse tipo de situação. A proximidade com o MBL e as movimentações populistas nas redes sociais podem manter o eleitorado cativo de Marchezan a seu lado, mas terão pouca valia quando o governo municipal travar na Câmara de vez. Uma tendência quase inevitável, a julgar pela postura que Marchezan tem adotado nessa relação.
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Foto: Ricardo Giusti / PMPA
Igor Natusch

Marchezan segue a trilha do conflito, e abre caminho para coisa pior

Igor Natusch
2 de agosto de 2017
Foto: Luciano Lanes / PMPA

Entrando em seu oitavo mês de mandato, Nelson Marchezan Jr. tem deixado bem clara a disposição de seguir uma trilha de conflito, com poucas margens para conciliação. E o faz de uma forma não necessariamente truculenta, jogando com o imaginário de seu eleitorado cativo e consolidando, ao invés de enfraquecer, a imagem de pessoa dinâmica e dedicada a soluções, sem concessões e sem desperdício de tempo. Não é o único a adotar tal fórmula, nem o mais destacado, muito menos um inovador – mas seu exemplo é útil para entender alguns aspectos (bastante preocupantes, creio eu) da política atual.

Na última semana, a prefeitura de Porto Alegre lançou uma série de projetos e ideias que mudam radicalmente aspectos importantes da relação da população com a cidade.

Eliminar a gratuidade da segunda passagem de ônibus, propor que idosos e estudantes paguem mais do que hoje pagam para se deslocar, legalizar a deplorável prática do parcelamento de salários, aumentar os valores do IPTU, entregar à iniciativa privada serviços de água e esgoto – tudo isso proposto com pouca ou nenhuma discussão prévia com a sociedade.

Algumas dessas mudanças contradizem declarações dos tempos de campanha, outras sequer haviam sido ventiladas antes de virarem projetos de lei. E tudo que as sustenta é um slogan simplificador, muito mais vago do que parece: a afirmação de que estamos em grave crise financeira e é preciso agir rápido para que as coisas não fiquem ainda piores. É uma agenda que nunca foi exposta às claras, nem mesmo aos vereadores da base aliada, que periga virar lei sem que se conheça suas implicações e sem que haja certeza que a cidade concorda com ela. Ilegal não é, por certo, mas não é nada transparente.

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Diante de críticas que, certas ou erradas, nada têm de desonestas ou ilegítimas, a resposta de Marchezan e de sua gestão tem sido fomentar um confronto permanente, ainda que edulcorado com toques de populismo de internet

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Ao fazer vídeos dançando e editar decretos fictícios que, em meio ao pretenso bom humor, trazem críticas pouco veladas aos oponentes políticos, o prefeito opta por angariar simpatia ao invés de convencer no embate de ideias. Não se dirige à população, mas sim ao grupo que o elegeu, reforçando os elementos de aproximação entre eles – em especial os que remetem à antipatia contra os inimigos de esquerda.

Todo questionamento à atual gestão é imediatamente arremessado aos pecados de gestões anteriores e/ou de inimigos comuns, quando não atribuído diretamente a uma desonestidade, política ou intelectual, de quem traz as questões. Em certo sentido, a campanha eleitoral não acaba nunca – e se a necessidade de escolher um lado está sempre presente, anula-se a ideia de governar para todos, já que a oposição nunca abandona o cenário político.

Repito: Marchezan não é o criador dessas coisas, tampouco um inovador nesse sentido. É, para o bem e para o mal, só mais um. Ou é muito diferente o que João Dória tem feito sistematicamente em São Paulo, parecendo mais preocupado com Lula e o PT do que com a cidade que governa? É muito diferente do que José Ivo Sartori faz no Rio Grande do Sul, propondo extinção de fundações sem jamais explicar o benefício que tal medida traria e tentando arrancar da população o direito de decidir, em plebiscito, se topa ou não vender suas principais estatais? Diferencia-se tanto assim das medidas de Michel Temer na esfera federal, promovendo a toque de caixa e sem debate prévio drásticas mudanças na legislação sob a alegação de que é preciso “modernizar” para “retomar o desenvolvimento”?

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No coração da dita democracia brasileira crescem práticas que são pouquíssimo democráticas. E elas se multiplicam na medida em que há uma falência de princípios importantes para a democracia: a transparência, o debate, a coletividade

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Na medida em que o processo eleitoral deixa de ser uma escolha coletiva e passa a ser uma mera legitimação de grupo, andamos rumo à exceção. E dizer isso não é dizer que Marchezan, ou Dória, ou Temer (ou mesmo Lula, por exemplo, que andou por trilhas semelhantes em vários momentos e parece seduzido pela ideia de fazê-lo uma vez mais) são fascistas ou autocratas. Eles apenas estão, desejosos ou não, conscientemente ou não, pavimentando o terreno. Entenderam, de forma consciente ou instintiva, o caldo de cisões do nosso tempo, e o usam a favor de suas agendas. Se não temos certeza de como agir diante disso tudo, que ao menos não nos falte o alerta: isso pode nos criar problemas bem maiores do que um prefeito querendo governar sozinho.

Foto: Luciano Lanes / PMPA

Voos Literários

Sucupira é aqui ou acolá?

Flávia Cunha
1 de agosto de 2017

Sempre que eu leio notícias do que considero desmandos dos prefeitos de Porto Alegre e São Paulo, me vem à mente a figura de Odorico Paraguaçu, o hiperbólico governante de Sucupira, a cidadezinha ficcional criada por Dias Gomes. Antes de virar sucesso no teatro, na televisão e no cinema, o texto de O Bem-Amado estreou nas páginas da revista Cláudia, em 1963.

De acordo com o autor, a figura do prefeito falastrão foi inspirada no político brasileiro Carlos Lacerda, antagonista de Getúlio Vargas. Alguns especialistas do meio literário também apontam semelhanças com o ex-presidente Jânio Quadros, pelo jeito peculiar de expressar-se em público – “Fi-lo porque qui-lo” e “Bebo-o porque é líquido, se fosse sólido comê-lo-ia” são algumas das frases mais famosas de Jânio.

O personagem Odorico Paraguaçu era um grande populista, adorado por seus eleitores e um grande sedutor das mulheres da cidade. Seu discurso era marcado por uma retórica complicada mas extremamente vazia.

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“Vamos botar de lado os entretantos e partir para os finalmentes” era um dos bordões de Odorico. Sobre sua ideologia política, declarava: “Eu também sou meio socialista. Não de ponta esquerda… do meio de campo, caindo para a direita!”

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Também atribuía frases próprias (e descabidas) a personalidades. É o caso da seguinte frase, citada pelo personagem como sendo de um grande escritor brasileiro. “Como dizia o poeta Castro Alves: ‘Bendito aquele que derrama água, água encanada, e manda o povo tomar banho'”.

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Ao ser candidato a prefeito de Sucupira, a grande promessa de campanha de Odorico era construir um cemitério na cidade. De acordo com Odorico, “a obra entraria para os anais e menstruais de Sucupira e do país”

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O trecho abaixo integra a peça O Bem-Amado e refere-se a uma conversa do prefeito, já eleito, com seu afilhado político e secretário, Dirceu Borboleta, na presença do vigário da cidade. O objetivo era tentar, de alguma forma, viabilizar a promessa de campanha.

DIRCEU – Está tudo aqui. O senhor vai examinar agora?

ODORICO – Vou. Quero saber logo se há alguma verba para dar início à construção do cemitério.

DIRCEU – (Coloca os processos sobre a mesa) Nem um tostão. Só déficit.

ODORICO – (Folheia os processos) Não é possível.

DIRCEU – A prefeitura tem um terreno…

ODORICO – O terreno só não resolve, é preciso dinheiro para o muro, as alamedas, a capela.

DIRCEU – (Examinando um processo) Parece que há um restinho de verba da água. ODORICO – Da água?

DIRCEU – Para consertar os canos.

ODORICO – Diz isso aí?

DIRCEU – Não, aqui só fala em obras públicas de urgência.

ODORICO – O cemitério também é uma obra pública de urgência. É ou não é? (Irônico) De muita urgência…

DIRCEU – Há um restinho, pouca coisa…

ODORICO – (Anima-se) Não tem importância, um restinho com mais um restinho, já se faz um cemiteriozinho.

DIRCEU – É da luz. Para aumentar a força.

ODORICO – Para que aumentar a força?

VIGÁRIO – A luz anda muito fraca, Coronel, quase não se consegue ler.  

ODORICO – Mas para que ler de noite? Pode-se ler de dia. E depois, uma cidade de veraneio deve ter luz bem fraca, para que se possa apreciar bem o luar… A cidade é muito procurada pelos namorados… o senhor Vigário me perdoe.

DIRCEU – Só que esse desvio de verba…

ODORICO – É para o bem do município. Tenho certeza que Deus vai aprovar tudo.

VIGÁRIO – Quem sabe?… As intenções são boas… E como Deus não é um burocrata… ODORICO – Então vamos escolher o terreno.

DIRCEU – A prefeitura só tem um, mas está ocupado.

ODORICO – Ocupado? Por quem?

ODORICO – Ora, o circo que se mude. Chega das palhaçadas de antigamente. Prafrentemente, vamos tratar de coisas sérias. Pode levar isso daqui. (Dirceu sai com os processos)

ODORICO – Quero ver agora o que vão dizer os que me acusavam de oportunista, de demagogista. Quando virem os pedreiros levantando os muros, construindo a capela, calçando as alamedas…

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ENTRE A LITERATURA E A REALIDADE

Passando para o mundo real,  será que os prefeitos são tão caricatos? Para demonstrar que não é mera implicância minha a comparação, selecionei alguns eventos da trajetória de Nelson Marchezan Junior à frente da capital do Rio Grande do Sul e de João Dória em São Paulo.

Começamos pela maior metrópole da América Latina. Por lá, Dória elegeu-se com um discurso notoriamente apolítico, dizendo-se um  gestor, um empresário.

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Mas quer coisa mais populista do que fazer-se de gari, pintor ou cadeirante para chamar a atenção? (Acho que Odorico adoraria ter feito as mesmas coisas como prefeito. Que inspiração, hein?)

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Alguns meses depois, Dória colocou suas “garras” conservadoras de fora, quando assumiu uma postura higienista na capital paulistana ao resolver acabar com a Cracolândia. O resultado, longe de agradar especialistas no assunto, foi bem desastroso.

Aqui em Porto Alegre, Marchezan notabilizou-se pelo seu temperamento difícil e por postagens politicamente incorretas nas redes sociais, que trouxeram críticas e aversão à parte dos moradores da capital gaúcha.

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O que, na minha visão, mais aproxima Marchezan de Odorico Paraguaçu é a sua conduta antes e depois da campanha.

Prometeu muita coisa, cumpre, até agora, pouco

 

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O fato chamou a atenção da grande mídia, ao fazer comparações de promessas de campanha com o que realmente fez depois de eleito.

A dúvida que fica é se Dória e Marchezan cederão à pressão popular e da imprensa ou darão uma de Odorico Paraguaçu, criticando A Trombeta, o jornal de Sucupira. Ainda resta um tempo de mandato para os dois políticos darem-se conta de suas trajetórias nada exemplares.

PS 1: Para quem achou divertido comparar a situação política brasileira com O Bem-Amado, a ideia não é nova. Eis a Rádio Sucupira, da rádio CBN.

PS 2: Para quem gosta de comparar a política com músicas, me foi recomendada a letra da canção Voto em Branco, da grande banda Plebe Rude.