Igor Natusch

Governo Sartori levou surra na Assembleia – e a culpa não é da oposição

Igor Natusch
1 de fevereiro de 2018
PORTO ALEGRE, RS, BRASIL 31.01.2018: Acompanhado por integrantes do Secretariado, o governador José Ivo Sartori fez um pronunciamento a imprensa, nesta quarta-feira (31), no Palácio Piratini, logo após o encerramento da sessão extraordinária da Assembleia Legislativa. Foto: Dani Barcellos/Palácio Piratini

Que a convocação extraordinária da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul foi um fiasco, quase ninguém poderá negar. A ideia do governo de José Ivo Sartori era votar o regime de recuperação fiscal acordado com o governo federal, defendido como vital para tirar o Estado do atoleiro, e incluir no pacote o fim da necessidade de plebiscito para autorizar privatização de CEEE, CRM e Sulgás. Mas não se chegou nem perto disso: após três sessões, os projetos não foram sequer apreciados, que dirá postos em votação. E a tarefa da oposição, que parecia um tanto complexa antes da primeira sessão, acabou sendo facilitada por uma base governista desunida e desorganizada – chegando ao cúmulo de perder todo o trabalho da primeira sessão porque um parlamentar foi ao banheiro, uma trapalhada que eliminou o quórum necessário para dar prosseguimento.

Compreende-se, claro, que o governador estivesse irritado com a situação na coletiva que deu logo após ter o fracasso consumado na Assembleia. Mais difícil, porém, é concordar com o foco de sua revolta, totalmente direcionado à oposição. “A manobra não foi contra nosso governo, foi contra o Rio Grande do Sul”, reclamou. A oposição, segundo ele, é “radical”, e a população não suporta mais “essa pequenez e essas traquinagens políticas” vindas de quem “causou parte da crise”. “Esses setores políticos vão ser responsabilizados se o atraso nos salários aumentar”, ameaçou Sartori.

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O que fez a oposição para deixar Sartori tão indignado, furibundo, cuspindo fogo pelas ventas? Terá feito uma manobra traiçoeira, descumprido um acordo no último instante, aplicado um golpe baixo do ponto de vista político?

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Nada disso. Fez a oposição o que qualquer oposição faz diante de uma pauta da qual discorda: mobilizou-se contra ela. Revezaram-se os deputados na tribuna, atrasando o processo de votação. Pediram verificação de quórum quando perceberam que a base não tinha como garantir o mínimo de parlamentares em plenário. Com o regimento interno debaixo do braço, o presidente da Assembleia, deputado Edegar Pretto (PT) – que é de oposição, o que não é crime algum – indeferiu o pedido de inversão de pauta da bancada governista, bem como o ofício para mais duas sessões extraordinárias.

Discuta-se a conveniência dessas ações o quanto se desejar, dentro das visões políticas de cada um: o que não dá é para dizer que há alguma novidade nesses procedimentos. Não se trata de desonestidade, radicalismo, perfídia nem nada do tipo: é, pura e simplesmente, fazer oposição. E é algo que se faz em todos os parlamentos da face da Terra – à esquerda, à direita, ao centro, no céu ou no inferno do espectro político.

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Por acaso tem a oposição – qualquer uma – obrigação de ser dócil à situação apenas porque se diz que alto lá, desta vez é importante de verdade, precisamos de um acordo porque agora a coisa é séria e acabou a brincadeira?

 

Evidente que não

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Se ela discorda, ela vai derrubar; se não tem força para derrubar, fará de tudo para barrar o avanço. Uma obviedade quase simplória, verdadeiro beabá da política na esfera parlamentar.

Duvido muito que Sartori desconheça esses meandros, posto que ele mesmo já foi deputado e inclusive presidiu a Casa, em 1998. Está, isso sim, fazendo uma transferência de responsabilidade, jogando para o time adversário um fracasso que pertence, exclusivamente, a ele e seus aliados.

A convocação extraordinária foi um desastre estratégico. Faltando uma semana para o retorno normal dos trabalhos na Assembleia, não há sentido em mobilizar todo o aparato da Casa, com todos os custos envolvidos, se não houver certeza absoluta de que coisas serão votadas – certeza que só se pode ter com estratégia sólida e, acima de tudo, uma maioria consolidada e inabalável. Ao contrário: o que se viu foi uma bancada de situação dispersa e confusa, sem um plano de ação, atuando sempre de forma reativa e inapelavelmente incapaz de propor jogo.

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A bancada oposicionista não precisou fazer mais que o básico para impedir a votação, por um motivo singelo: mesmo menor em número, estava muito mais coesa e determinada que o time adversário

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A oposição sabe muito bem que não quer o acordo com a União, tal como está posto; a situação, por sua vez, não tem tanta certeza assim do que quer ou não. E indecisão, no parlamento, é um pecado muitas vezes fatal. O governo, pelo jeito, não fez o dever de casa. São três anos de governo e conta-se nos dedos os momentos em que o governo andou todo junto, em bloco, na mesma direção. Aí não adianta apelar para o sentimentalismo, lamentando que o outro lado deveria ser mais compreensivo, esbravejando ameaças vãs ou lançando ao vento apelos frouxos por união.

Quanto mais frisa que “não existe plano B” caso a recuperação fiscal não aconteça, mais Sartori e seu governo reforçam publicamente uma aposta que (e agora está mais claro do que nunca) simplesmente não têm coesão e força política para cumprir. Mesmo com manifestações favoráveis na imprensa, mesmo martelando a suposta única saída por meses a fio, o governo não convence nem a própria bancada a abraçar o rojão, ao ponto de jogar pela janela três dias inteiros de convocação extraordinária. Perdeu, sim, e perdeu feio. Pode vencer nas próximas semanas, é claro: a tendência, contudo, é de acumular fracassos, caso limite seus esforços a uma tentativa pueril de criminalizar a oposição por agir como oposição. Não adianta jogar o desgaste para o outro lado do muro: o fiasco tem assinatura, e ela não foi feita em caneta vermelha.

Foto: Dani Barcellos/Palácio Piratini

Igor Natusch

Marchezan segue a trilha do conflito, e abre caminho para coisa pior

Igor Natusch
2 de agosto de 2017
Foto: Luciano Lanes / PMPA

Entrando em seu oitavo mês de mandato, Nelson Marchezan Jr. tem deixado bem clara a disposição de seguir uma trilha de conflito, com poucas margens para conciliação. E o faz de uma forma não necessariamente truculenta, jogando com o imaginário de seu eleitorado cativo e consolidando, ao invés de enfraquecer, a imagem de pessoa dinâmica e dedicada a soluções, sem concessões e sem desperdício de tempo. Não é o único a adotar tal fórmula, nem o mais destacado, muito menos um inovador – mas seu exemplo é útil para entender alguns aspectos (bastante preocupantes, creio eu) da política atual.

Na última semana, a prefeitura de Porto Alegre lançou uma série de projetos e ideias que mudam radicalmente aspectos importantes da relação da população com a cidade.

Eliminar a gratuidade da segunda passagem de ônibus, propor que idosos e estudantes paguem mais do que hoje pagam para se deslocar, legalizar a deplorável prática do parcelamento de salários, aumentar os valores do IPTU, entregar à iniciativa privada serviços de água e esgoto – tudo isso proposto com pouca ou nenhuma discussão prévia com a sociedade.

Algumas dessas mudanças contradizem declarações dos tempos de campanha, outras sequer haviam sido ventiladas antes de virarem projetos de lei. E tudo que as sustenta é um slogan simplificador, muito mais vago do que parece: a afirmação de que estamos em grave crise financeira e é preciso agir rápido para que as coisas não fiquem ainda piores. É uma agenda que nunca foi exposta às claras, nem mesmo aos vereadores da base aliada, que periga virar lei sem que se conheça suas implicações e sem que haja certeza que a cidade concorda com ela. Ilegal não é, por certo, mas não é nada transparente.

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Diante de críticas que, certas ou erradas, nada têm de desonestas ou ilegítimas, a resposta de Marchezan e de sua gestão tem sido fomentar um confronto permanente, ainda que edulcorado com toques de populismo de internet

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Ao fazer vídeos dançando e editar decretos fictícios que, em meio ao pretenso bom humor, trazem críticas pouco veladas aos oponentes políticos, o prefeito opta por angariar simpatia ao invés de convencer no embate de ideias. Não se dirige à população, mas sim ao grupo que o elegeu, reforçando os elementos de aproximação entre eles – em especial os que remetem à antipatia contra os inimigos de esquerda.

Todo questionamento à atual gestão é imediatamente arremessado aos pecados de gestões anteriores e/ou de inimigos comuns, quando não atribuído diretamente a uma desonestidade, política ou intelectual, de quem traz as questões. Em certo sentido, a campanha eleitoral não acaba nunca – e se a necessidade de escolher um lado está sempre presente, anula-se a ideia de governar para todos, já que a oposição nunca abandona o cenário político.

Repito: Marchezan não é o criador dessas coisas, tampouco um inovador nesse sentido. É, para o bem e para o mal, só mais um. Ou é muito diferente o que João Dória tem feito sistematicamente em São Paulo, parecendo mais preocupado com Lula e o PT do que com a cidade que governa? É muito diferente do que José Ivo Sartori faz no Rio Grande do Sul, propondo extinção de fundações sem jamais explicar o benefício que tal medida traria e tentando arrancar da população o direito de decidir, em plebiscito, se topa ou não vender suas principais estatais? Diferencia-se tanto assim das medidas de Michel Temer na esfera federal, promovendo a toque de caixa e sem debate prévio drásticas mudanças na legislação sob a alegação de que é preciso “modernizar” para “retomar o desenvolvimento”?

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No coração da dita democracia brasileira crescem práticas que são pouquíssimo democráticas. E elas se multiplicam na medida em que há uma falência de princípios importantes para a democracia: a transparência, o debate, a coletividade

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Na medida em que o processo eleitoral deixa de ser uma escolha coletiva e passa a ser uma mera legitimação de grupo, andamos rumo à exceção. E dizer isso não é dizer que Marchezan, ou Dória, ou Temer (ou mesmo Lula, por exemplo, que andou por trilhas semelhantes em vários momentos e parece seduzido pela ideia de fazê-lo uma vez mais) são fascistas ou autocratas. Eles apenas estão, desejosos ou não, conscientemente ou não, pavimentando o terreno. Entenderam, de forma consciente ou instintiva, o caldo de cisões do nosso tempo, e o usam a favor de suas agendas. Se não temos certeza de como agir diante disso tudo, que ao menos não nos falte o alerta: isso pode nos criar problemas bem maiores do que um prefeito querendo governar sozinho.

Foto: Luciano Lanes / PMPA