Reportagens Especiais

QUEFAZER . uma história sobre a labuta dos imigrantes

Geórgia Santos
6 de abril de 2018

English version

Quem são esses homens nas calçadas? Faço essa pergunta com certa frequência. Algumas vezes em voz alta. Quem são os homens nas calçadas, vendendo tantas coisas? De onde vem? O que fazem? O que pensam? Alguns sorriem. Outros mal piscam. As pálpebras que abrigam aquele olhar distante parecem imóveis. Tantos com jeito de solidão. É como se estivessem sozinhos em pleno centro da inquieta Porto Alegre. Quem são, de verdade, esses homens nas calçadas?

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Ele vestia camiseta e bermudas brancas, duas peças simples que cresciam em contraste com a pele retinta e a luz do final de tarde. Não sei se posso dizer que eram bermudas, talvez fossem o que eu chamava de capri na adolescência, um tipo de calças curtas, abaixo do joelho. Usava chinelos, estava à vontade com a areia entrando em contato com os pés. Era estiloso. A roupa toda era parte de um costume que ele arrematava com uma fina jaqueta de uma conhecida marca esportiva. Tinha capuz. Adidas, talvez? Acho que lembro das listras confundindo-se com os dentes perfeitos que apareciam com o sorriso fácil e autêntico, típicos de alguém que não conhece a timidez. Ele dava todos os indícios de que queria conversar. De que precisava conversar.

Conheci-o na praia do Quintão. Enquanto minha mãe negociava uma rede com seu Messias, distraí-me com as dezenas de óculos que esse imigrante vendia na calçada da esquina da farmácia, pertinho do Asun. Tinha uma coleção incrível. Ele sorria. Aquele mesmo riso fácil e autêntico permanecia, inabalável. Enquanto eu experimentava alguns modelos e demonstrava uma extrema incapacidade de colocá-los de volta no lugar apropriado, dona Gertrudes apareceu sem que eu percebesse e, com a nova rede em punho, recriminou meus impulsos.

 

“Mais óculos, Geórgia? Isso é quase uma obsessão.”

“Mãe, não é tanto assim.”

 

Era tanto assim. Eu ria e tentava convencer a ela e a mim de que eu precisava realizar aquela compra. Afinal, o preço estava tão bom e as armações tão bonitas e eu tão afim. Ele também ria enquanto ela revirava os olhos e eu fingia que não era comigo. Despedi-me sem perguntar seu nome. Eu tinha pressa, o vento era intenso e eu oscilava entre quase quebrar os dentes ao mastigar grãos de areia, tentar manter os olhos abertos e domar meu cabelo, que parecia preso em um vórtice de redemoinho. Fui, mas determinada a voltar.

Voltei. No dia seguinte, parei na mesma esquina movimentada e ele sorriu novamente, novamente fácil, novamente autêntico. Ele havia lembrado de mim. Não só de mim.

 

“Cadê a mãe? Não veio hoje?”, perguntou rindo, provavelmente revivendo na memória a cena ridícula da qual fomos protagonistas no dia anterior.

“Hoje não. Fugi!”, respondi brincando.

 

Nem tão brincando assim. Aproveitei a companhia do marido pouco preocupado com o que eu faço com meu dinheiro e comprei os óculos sem os olhares maternos de desaprovação. Com mais calma e menos vento, perguntei seu nome.

 

“Mamadou.”

 

Mamadou é esse homem de 27 anos que está no Brasil há dois. Chegou à procura de emprego, assim como a maioria dos 1,06 milhão de estrangeiros que vivem no país, segundo dados do Ministério da Justiça. Mais de 50 mil estão no Rio Grande do Sul. A socióloga Aline Passuelo, à época da entrevista, trabalhava com Grupo de Assessoria a Imigrantes e Refugiados (GAIRE) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),  que presta gratuitamente assessoria jurídica, psicológica e social. Ela explicou que os estrangeiros que chegam ao Rio Grande do Sul vem, principalmente, do Haiti, Senegal, Colômbia e Síria.

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“SOU DO SENEGAL. JÁ OUVIU FALAR NO SENEGAL?”

“Claro, Mamadou.”

“Mesmo? Muita gente não sabe onde fica o Senegal.”

Senegal. Foto: Vladimir Zhoga / Shutterstock.com

O Senegal é daqueles lugares em que a natureza hipnotiza. As cores são quentes, as roupas compõem um mosaico em contraluz enquanto a terra e o pouco verde se encontram perto da água salgada. Há muito tempo é considerada uma democracia bem-sucedida da África Ocidental. Desde a independência da França em 4 de abril de 1960, já são décadas de tradição de governos estáveis e comando civil. Também é um país extremamente seguro. A capital Dakar é berço de artes com sua Village des Arts, lar e galeria de cerca de 50 artistas. Também vem de lá o primeiro filme do continente. Borom Sarret (1963), do diretor senegalês Ousmane Sembène, foi o primeiro filmado na África por um diretor africano e negro. É de tirar o fôlego.

Mas é daqueles lugares que tira o fôlego e não devolve. O país é um dos mais pobres do mundo. Na comparação com o Produto Interno Bruto (PIB) de outras nações, dados Banco Mundial mostram o Senegal na 154º posição em uma lista de 185. O resultado é um também baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), uma medida comparativa de fatores como riqueza, alfabetização, educação, expectativa de vida e natalidade. Na classificação da Organização das Nações Unidas (ONU), o Senegal ocupa a posição de 162 em um rol com 168 países.

Com 15 milhões de habitantes, a maioria da população é composta por jovens que não tem emprego ou oportunidades em uma terra que sobrevive da agricultura e precisa enfrentar as secas cada vez piores. A nuvem de poeira pode ser bonita ao expectador do célebre Rally Dakar, mas na realidade é a representação da sede, da falta de ar, de um destino árido. A solução é encontrar o futuro em outro lugar.

Senegal. Vladimir Zhoga / Shutterstock.com

A professora Juliana Rossa auxilia os imigrantes senegaleses em Caxias do Sul de diversas formas e, após alguns anos de convívio e uma longa visita ao país, percebe que há um padrão no perfil do imigrante. “A família costuma escolher um representante para migrar, ele vai ter uma responsabilidade com a família que ficou. Esse representante é jovem, saudável, com muita vontade de trabalhar e, geralmente, instruído.”

É do Senegal que vêm os homens nas calçadas. Vêm para trabalhar. Como diz a professora Juliana, “se não fosse o trabalho, seria turismo”. E com certeza não é turismo.

A imigração do Senegal não é um movimento recente. Após a independência da França, em 1960, homens senegaleses migraram para os Estados Unidos e Europa à procura de algo em que acreditar. O pai de Mor Ndiaye foi para a Espanha na década de 80, mas ele resolveu vir para o Brasil, à procura do lugar que aparecia nas histórias contadas por um amigo quando eram crianças. “Eu tinha um amigo de infância que passava as férias aqui, o pai dele trabalhava no consulado em São Paulo. Quanto ele voltava, ele só falava nisso. Então eu cresci e escolhi o Brasil para viver.”

Mor chegou em 2008, quando ainda havia poucos compatriotas em Porto Alegre. Mas em 2014 o movimento migratório aumentou quando uma terrível estiagem acometeu o Senegal ao mesmo tempo em que o mercado brasileiro precisava de mão de obra em função da Copa do Mundo. Milhares de senegaleses decidiram procurar pelo futuro no Brasil.

Mor Ndiaye, Presidente da Associação dos Imigrantes Senegaleses. Imagem: Catraca Filmes

“A gente sabia que o Brasil era muito violento e difícil, mas também um país de alto crescimento. Quando eu cheguei, cheguei na época em que oportunidade estava sobrando.” Mor trabalha como Relações Públicas em uma grande empresa, encontrou a oportunidade que procurava. Mesmo privilegiado, porém, ele sabe como é difícil despencar em um estado como o Rio Grande do Sul. Por isso, criou a Associação dos Imigrantes Senegaleses para ajudar aos mais de 4,2 mil patrícios que vivem no Estado – 1200 somente na capital e em torno de 800 em Caxias do Sul.

“Tu gostas de morar aqui, Mamadou?

“É bom aqui, a gente consegue ganhar um dinheirinho para viver com dignidade e ajudar a família. Mas tem que trabalhar bastante. Bom, em qualquer lugar do mundo tem que trabalhar bastante, não é mesmo?”

“É mesmo. Mas ainda é bom?” 

“Quando cheguei, não demorei para conseguir trabalho. Trabalhei em muitas coisas, tinha emprego fixo. Mas agora já não é assim. Então tive que procurar o que fazer.”

Mamadou não é lacônico, apesar do tom, tampouco  pessimista. Nada disso. Disse com o sorriso. Aquele fácil e inabalável.

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QUE FAZER? 

O BRASIL ENTRE OS DESEMPREGADOS E OS EXPLORADOS

O otimismo não altera o fato de que a conjuntura mudou muito em menos de quatro anos. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, no período de novembro a janeiro do ano passado, 12,7 milhões de pessoas estavam desempregadas no Brasil. É praticamente a população do Senegal inteira. E isso, obviamente, afeta os estrangeiros. A advogada Márcia Abreu, do Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da UFRGS (Saju), esclarece que, em 2014, as principais dificuldades enfrentadas pelos imigrantes eram o idioma (os senegaleses falam francês) e falta de moradia, além da questão da regularização de documentação. Hoje, é a falta de emprego. “Antes já era um problema. Em qualquer entrevista de emprego, inclusive no Sine, quando viam que era imigrante, nem olhavam o currículo, já davam subemprego. E agora mudou bastante, a gente tá vivendo um momento muito diferente, não tem comparação com anos atrás.”

Mamadou não me disse o sobrenome, mas contou que está feliz por poder trabalhar de forma tranquila, alimentar-se, dormir bem. Ele sabe que é, de certa forma, privilegiado. A maioria demora para conseguir uma vida estável e isso faz com que perdure uma condição de extrema vulnerabilidade. E os problemas que se acumulam com a falta de emprego são inúmeros e imensos e desumanos. “A maior preocupação do imigrante é trabalhar, para dar um começo e se regularizar. Ele não vai se preocupar tanto com o tipo de serviço que ele tem escolher, qual salário vai receber e onde trabalhar. Muitas vezes, imigrantes trabalham em serviços que os brasileiros não trabalham, mas isso não deixa de ser um serviço digno.”

Mor conversava comigo em uma sala que fica no quarto andar de um prédio no centro de Porto Alegre. Na Rua dos Andradas, antes e sempre Rua da Praia. Enquanto ele fala sobre a procura de serviço, da janela eu avisto os homens nas calçadas. Não vejo Mamadou. Mas vejo Mohammed, cujo nome ainda não sei mas com quem prometo conversar. Não consigo parar de pensar no quão vulneráveis eles estão. E eles estão. Nossa conversa é interrompida por um rapaz que preferiu não divulgar o nome.

“Esse rapaz aqui é um exemplo do que eu estava te falando.”

“Ele sofreu algum tipo de exploração?”

“Sim. Ele estava trabalhando num local e foi demitido meses depois sem justa causa. Não recebeu direitos, não recebeu salário, não sabe a quem recorrer e vai acabar entrando numa vida vulnerável. Mas não é só ele. Isso mostra que uma grade quantidade de imigrantes vive nessa situação.”

E bastou falar da primeira história para os relatos de opressão brotarem na memória dolorida de quem vê as consequências da escravidão entranhadas no racismo estrutural do Brasil.

 

“Tem outro caso de três imigrantes que estavam trabalhando e foram demitidos. Três meses sem receber salário, mais de três anos sem férias.

“Uma menina trabalhava de empregada em uma casa, se acidentou dentro do serviço porque ela trabalhava mais do que deveria. Trabalhava quase 24 horas por dia. Ela morava no serviço. Ela não tinha horário pra começar e terminar. Acordava antes de todos, ia dormir depois de todo mundo. Então ela caiu, fora do horário que deveria ser o serviço, mas estava trabalhando. Quebrou o braço. Só que a empregadora disse pra ela não falar que estava trabalhando. No final das contas, ela foi mandada embora, não recebeu salário, não tinha onde morar e ainda ficou sem poder trabalhar.”

O procurador Luiz Alessandro Machado, do Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Sul (MPT-RS), conta que, há dois anos, foi instaurado um procedimento promocional (3124/2016) para tratar dos imigrantes que vivem no Estado. Principalmente em relação ao trabalho escravo, tráfico de pessoas e discriminação. “Os imigrantes muitas vezes não sabem aonde denunciar, não tem em quem confiar, tem dificuldade em se comunicar, isso faz com quem fiquem muito mais vulneráveis à exploração.”

Há inúmeros registros de caso de exploração e/ou racismo no interior do Estado envolvendo senegaleses e haitianos. E há casos envolvendo pessoas de outras nacionalidades. Na região de Passo Fundo, nos municípios de Arvorezinha e Doutor Ricardo, o MPT desvelou um esquema de aliciamento de trabalhadores uruguaios, paraguaios e argentinos para a produção de erva-mate. Inclusive com intervenção dos chamados atravessadores – ou coiotes. Eles eram mantidos em condições degradantes e análogas ao trabalho escravo.

O órgão esbarra na resistência dos imigrantes em levar adiante as denúncias de abuso. “A maioria só  vem em situação extrema, quando não recebe o dinheiro e quer ir embora.” Ele lembra, porém, que os imigrantes podem se sentir seguros ao conduzir qualquer denúncia ao MPT, que pode ajudar, inclusive, na produção de novos documentos. A aprovação da resolução normativa 122 dá aos procuradores a atribuição para requerer o visto a quem foi vítima de exploração ou tráfico de pessoas. Com isso, podem permanecer no Brasil por até cinco anos.

Mas o procurador admite que há falhas na verificação dos problemas. “A gente tá fazendo um mapeamento da situação e abriu um procedimento investigatório para cada uma das empresas que empregam trabalhadores imigrantes e pedimos fiscalizações para o Ministério do Trabalho.” Até o momento, os maiores problemas estão vinculados ao assédio moral e discriminação racial.

A limitação maior está na verificação do trabalho informal, no qual o procurador Luiz Alessandro Machado reconhece haver espaço para atuação. O RS é o terceiro estado que mais emprega imigrantes no país (10%), mesmo assim, cada vez menos os senegaleses conseguem emprego com carteira assinada. Em 2014, o mercado formal absorvia os recém chegados na construção civil, em grandes fábricas, empresas de limpeza e serviços gerais e, principalmente, em frigoríficos. Com o crescimento da exportação de carne para países árabes, cresceu a demanda de mão-de-obra muçulmana para executar o abate halal, que é a forma como um animal deve ser abatido de acordo com as leis do Alcorão. Mas com a crise econômica, política e social que o Brasil enfrenta, os imigrantes foram os primeiros demitidos. E se já era raro que alguém valorizasse sua capacidade intelectual, a conjuntura política brasileiro dificultou isso ainda mais. A professora Juliana Rossa contou que até o currículo pode ser um problema. As documentações são diferentes, os endereços fluidos e comprovantes são difíceis de apresentar. “Tem muitas particularidades no mundo do trabalho, e esse mercado não se abre pra eles.”

OUÇA OS RELATOS DE EXPLORAÇÃO  E A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO

 

Mamadou, então, recorreu ao que sabe.

“Eu gosto de vender. No Senegal, a maior parte das pessoas trabalha na agricultura, mas não tem espaço pra todo mundo. Então o jovem vende. A gente começa a vender cedo.”

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QUEFAZER 

O SENEGAL E UMA POPULAÇÃO MOLDADA PARA O COMÉRCIO

Em um erro de digitação, descobri a existência da palavra “quefazer”. Assim mesmo, tudo junto. Minha ignorância me impedia de saber que significa ocupação. Conforme o dicionário, é um vocábulo descrito como o trabalho que se faz por hábito, costume. Imediatamente pensei nos homens nas calçadas. Não é por acaso que eles optam pelo comércio ambulante. No Senegal, 70% da população é formada por jovens que não tem onde trabalhar em um país que sobrevive da agricultura e sofre com as estiagens. Como consequência, eles migram para as grandes cidades na esperança de serem absorvidos pelo comércio, uma arte que se não é inata os acompanha desde muito cedo e faz parte da cultura do país de maioria muçulmana.

Juliana Rossa é jornalista e professora da Faculdade Murialdo de Caxias do Sul. Há mais de cinco anos convive com os imigrantes e pesquisa sobre aspectos culturais específicos do Senegal. No doutorado em Letras pela UCS/UniRitter, centrou o estudo na poesia oral e na performance dos cantos religiosos. A caxiense viajou ao país, onde pôde não apenas aprofundar a investigação mas também desvendar um vínculo fortíssimo entre a religiosidade e a habilidade comercial.

Estima-se que 94% dos senegaleses sejam muçulmanos. O islamismo praticado no país é influenciado pelo Sufismo, conhecido como uma corrente mística que tem no Muridismo uma das fraternidades mais expressivas na etnia Wolof (que abrange quase metade da população do Senegal). O aspecto religioso é tão importante na sociedade que as crianças são encaminhadas para uma escola árabe desde muito cedo. Geralmente, os meninos passam a frequentar a escola corânica a partir dos cinco anos.

“Eles aprendem árabe e decoram o Alcorão. Dependendo da família, a criança fica mais ou menos tempo. Essas escolas corânicas são mantidas com doações, são espaços em que as crianças passam o dia relativamente sozinhas e precisam aprender a “se virar”, com pouquíssimo tempo para brincar. Essa escola caleja a personalidade deles. Por exemplo, às vezes, para almoçar, eles precisam pedir comida nas casas dos vizinhos. Ao fazer esse gesto, eles se colocam humildes. É como uma troca. Ao pedir ajuda, eles também se dispõem a ajudar, a tratar a todos muito bem e com muito respeito. Então, porque eles vendem muito bem? Porque eles retornam a essa formação inicial.”

Um professor senegalês foi quem explicou a relação à Juliana. É uma espécie de solicitude que se aprende desde muito cedo, como uma permuta de gentilezas. Algo que é reforçado nas pessoas que, dentro do Muridismo, praticam a corrente Baye Fall, facilmente identificáveis pelas roupas coloridas e os dreadlocks – às vezes confundidos com os Rastafari. “Se tu encontrares um Baye Fall e tu estiveres com frio, ele vai tirar a roupa que tem para que tu não sintas frio. Se há uma festa religiosa, ele vai cozinhar, ele vai fazer, ele que vai ajudar.”

O relato da professora Juliana Rossa mostra como a negociação faz parte de quem eles são. Eles vendem, vendem, vendem eletrônicos, vendem comida, vendem arte, vendem roupas, vendem.

Senegal. Vladimir Zhoga / Shutterstock.com

“A gente nasce naquele ambiente em que as pessoas vendem na rua. Muitas pessoas que estão aqui, já vendiam lá.” Mor não é vendedor, mas confirma que há essa preparação. As cidades estão envoltas na atmosfera das transações comerciais. Por isso, diante da crise no mercado formal brasileiro, recorrer ao comércio ambulante e informal é uma escolha natural para os senegaleses. Natural, mas não significa uma alternativa fácil.

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“O IMIGRANTE, QUANDO DECIDE SAIR, JÁ ESTÁ PREPARADO. TU TÁ INDO PRA OUTRO PAÍS, TEM QUE TOLERAR CERTAS COISAS.”

 

É preciso coragem para enfrentar as ruas na branca Porto Alegre. As certas coisas a que o Mor se refere em tolerar são pesadas. Não demoro para perceber que ele está falando de racismo, xenofobia, intolerância em todas as formas, preconceito de todos os jeitos.

“Se eu saio na rua e paro ali no menino que tá vendendo, em dez minutos eu vou reparar em alguma coisa preconceituosa que ele não vai perceber.”

“Como assim?”

“Porque eu estou aqui há mais tempo. Sou mais ligado.”

“Tu falas de racismo velado?”

“Isso, são pequenas coisas que eu percebo.”

“E coisas nem tão pequenas, acontecem?”

“Sim. Na semana passada, por exemplo, eu fui no tabelionato acompanhar alguém que precisava da minha ajuda para autenticar um documento. Quando a gente chegou o cara falou que não ia autenticar porque não era um documento oficial. Só que era um documento da Polícia Federal. O menino ficou arrasado.”

Eu recebo a informação com assombro. É o tipo de história que todos sabemos que existe, mas envergonha a confirmação. Acho que não consigo esconder o constrangimento e o rubor que toma conta do meu rosto. Mor se apressa em explicar que a maioria dos gaúchos trata os imigrantes com respeito, mas insisto que ele fale de quem não o faz. Superada a resistência inicial, ele emenda um desabafo no suspiro.

 

“A palavra “racismo”. Eu conheci o significado dessa palavra na prática há pouco tempo. Não é um problema no Senegal, mas aqui parece que vai ser sempre. Agora há pouco eu conversava com alguém que foi contratado em uma grande empresa, com carteira assinada, para um bom cargo de nível superior. Ele foi lá hoje e foi apresentado à pessoa que seria sua chefe. Ela olhou pra ele e disse: “eu não quero esse cara.”

“Por causa da cor.”

“Sim, por causa da cor. O racismo no Brasil existe e os imigrantes sofrem diariamente. E o problema não é ser imigrante, é ser imigrante africano e negro. O imigrante europeu com a mesma formação não encontra as mesmas dificuldades. O negro brasileiro sofre e o negro africano sofre.”

Conforme ele fala, meus ombros pesam com a vergonha que todo brasileiro deveria carregar. Imediatamente me lembro de uma frase da socióloga Aline Passuelo, com quem eu havia conversado muito tempo antes. “Jamais vou esquecer de um imigrante que me disse que descobriu que era negro no Brasil. Ele descobriu que ser negro era um problema no Brasil.”

Eu também jamais vou esquecer do que a Aline me contou. Em pleno século XXI, o negro africano atravessa o oceano para descobrir um país que não se permite livrar da cruel e torpe tradição escravagista. E esse comportamento social tem um impacto devastador no imaginário dos imigrantes senegaleses, que aguentam em silêncio e sozinhos. Não são poucos os que apresentam transtornos psicológicos, geralmente relacionados à depressão.

 

“Sofrem calados porque todos os dias acontecem pequenas coisas.”

“Tipo o que, Mor?

“O imigrante vai na farmácia e é ignorado. Vai na padaria e alguém repara na cor, que tem sotaque diferente, e não é atendido. Começa a ser tratado de forma diferente.”

“E como ele reage a essas coisas?”

“Ele não tem com quem reclamar, geralmente passa por tudo isso sem reclamar. Isso choca.”

E como. E acabam se fechando. Quando conheci o Mamadou, percebi que havia algo diferente. Ele queria conversar, precisava conversar e assim o fez. Abertamente. Com aquele sorriso fácil e inabalável. Isso era incomum. Nas outras vezes em que abordei um imigrante, fosse para uma conversa, fosse para uma entrevista, a resposta era amigável mas monossilábica. Mor me disse que era medo de ser julgado e maltratado. Fazia sentido. As palavras vinham carregadas de desconfiança, de receio. Foi assim com Mohammed, o menino que eu avistei da janela enquanto falava com Mor. Desligado o gravador, fui até ele. Comprei um cabo para o carregador do meu celular por quinze reais e perguntei seu nome. Ele me olhou com surpresa. Respondeu, mas cabreiro. Foi quando lembrei de algo que poderia quebrar o gelo.

“Tu foste levar uma chave a pedido do Mor para a senhora da portaria, não é mesmo?”

“Sim, como você sabe?”

“Eu estava sentada nas cadeiras que ficam na entrada.”

“Ah, sim. Agora eu me lembro.”

“Estava justamente aguardando para conversar com o Mor, estou fazendo uma reportagem sobre a vida dos imigrantes senegaleses aqui no Rio Grande do Sul e em Porto Alegre. ”

“Que bom.”

“Tu vives aqui há quanto tempo?”

“Há dois anos. Eu tenho 22 anos, cheguei aqui com 20.”

“Vende bastante?”

“Não posso me queixar.”

“E gosta de morar aqui?”

“É bom, eu consigo ajudar minha família. Mas quero voltar.”

Quando ele encolheu os ombros e desviou o olhos, as palavras do Mor ecoaram nos meus ouvidos. Sorrio. Ele sorri de volta. Desejo sorte a ele e sigo meu rumo.

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FAZER O QUE? 

 

Meu avô fala muito isso. Seu Orozimbo é neto de imigrantes italianos. A família Pellizzaro chegou no Rio Grande do Sul no final do século XIX. Esquálidos de fome, pálidos de frio e vestindo farrapos. Chegaram aqui, há mais de cem anos, em busca de uma oportunidade, por menor que fosse.

Das histórias que o nono Giuseppe contava, creio que não figuravam relatos de preconceito. Em nenhum momento surgia a dor de ouvir de um brasileiro que eles estavam ali para roubar empregos ou para trazer doenças. Pelo contrário, eles inclusive foram incentivados pelo governo brasileiro. Ganharam terrenos para colonizar. E prosperaram. Alguém acreditou neles e eles tiveram a chance de prosperar.

“A gente só precisa de uma mínima oportunidade. De consideração e respeito.”

Imigrantes senegaleses trabalhando nas ruas de Porto Alegre. Foto: Geórgia Santos

São jovens. Estão batalhando, trabalhando, vivendo longe dos pais, longe da família, longe de tudo o que conhecem. Longe de festas em que toca mbalakh. Longe da voz de Youssou N´Dur. Longe das plantações de mil e dos pratos de diakhouté. Fazer o que?

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“Prazer em te conhecer, Mamadou.”

“Também, Geórgia.”

Não era uma entrevista. Era apenas uma conversa, eu só queria saber quem ele era, de verdade. Fiquei feliz em ver que era um cara cheio de sonhos, feliz, que corre atrás daquilo que acredita. Foi assim que conheci um dos homens nas calçadas. Espero que o sorriso continue fácil e inabalável.

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Reportagem: Geórgia Santos

Vídeo: Catraca Filmes

Vós Ativa

A tradição de violência no estado mais politizado do Brasil

Colaborador Vós
29 de março de 2018
Porto Alegre - RS , 20/09/2010; Desfile Civico-Militar Farroupilha de 20 de setembro, na avenida Edivaldo Pereira Paiva(Beira-Rio), em Porto Alegre. Foto: Paula Fiori / Palacio Piratini

Por Eduardo Amaral, jornalista

Cresceu nas últimas semanas o orgulho gaúcho pela truculência. Tudo porque um grupo de velhos coronéis resolveu demonstrar todo o respeito que tem pela democracia durante visita do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao estado. Confrontaram apoiadores com armas na cintura, apedrejaram ônibus e pessoas e “deram de relho” em quem se opusesse. A Caravana Lula pelo Sul seguiu e foi alvo de tiros no Paraná. O fato surpreendeu, mas não é tão distante da nossa realidade.

Detesto dizer a vocês, leitores, mas atirar contra adversários políticos é uma constante dos municípios gaúchos

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Tradição de violência

A primeira vez em que deparei com a truculência política foi em Trindade do Sul, município localizado no norte do RS. Ainda adolescente, resolvi fazer uma visita a uma amiga que acabara de se mudar para aquela bucólica e, aparentemente, pacata cidade. Era período eleitoral. Qual não foi minha surpresa ao saber que dois grupos distintos se reuniram no centro da cidade e o confronto acabou com um orgulhoso defensor de seu candidato disparando, sem nenhum pudor, contra os adversários políticos.

Outra oportunidade para ver como funciona a política no interior foi no pleito de 2016, quando eu atuava em um jornal no Vale do Taquari. No município de Encantado, quando correu a notícia de que um grupo de homens armados chegara à cidade fazendo questão de mostrar as armas para quem quisesse ou não vê-las. Todos eles se hospedaram no hotel que pertencia ao candidato a vice de uma das chapas. O grupo foi detido e, graças à falta de discrição, foi possível evitar que algo mais grave acontecesse. O que mais me surpreendeu neste caso foi a frase do promotor eleitoral quando entrei em contato com ele para esclarecer o caso. “Eu mesmo já fui ameaçado quando ia votar.”

Minha última experiência com a violência política foi no ano passado, quando trabalhava na cidade de Paraí, na Serra Gaúcha. Uma eleição suplementar foi convocada e não demorou para eu entender como as coisas funcionam no município quando o assunto é política. Logo nos primeiros relatos, soube que o filho de um dos candidatos havia sido ameaçado, com uma arma na boca. A nova eleição não acalmou os ânimos e não demorou muito para um novo atentado com armas. Os militantes que trabalhavam para os candidatos se encontraram no centro da cidade, na praça, no meio da tarde, e demonstraram toda a tolerância política entre eles com duas armas sendo sacadas e tiros atingindo os rivais.

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O estado mais politizado do país

Em nenhum desses casos houve morte. Em todos esses casos, porém, escutei relativização. Quase a normalização das ações criminosas no chamado “estado mais politizado do país.” A verdade é que o Rio Grande do Sul nunca foi tão politizado como se diz, mas sim um lugar repleto de animosidade e ódio, nem sempre escondidos. É justamente devido a este cenário coronelista que a reação à chegada do ex-presidente não surpreende, faz apenas lamentar que o RS não consiga abandonar velhos e péssimos costumes.

Envoltos na própria arrogância, os gaúchos passaram anos negando a realidade, sem conseguir olhar para si e admitir as artimanhas de poderosos para manter sua força política

Nós poderíamos aproveitar este momento para olhar para a sociedade gaúcha e perceber como este histórico modelo político tem nos levado ao atraso e tem grande influência nos problemas do estado. Mas isso não vai acontecer. Infelizmente, por tudo que se viu até agora, não será esta a chaga utilizada para expurgar velhas práticas, muito pelo contrário.

Até aqui vimos um Poder Judiciário que se calou diante dos atos de violência cometidos contra os manifestantes pró-Lula. O Ministério Público, tão afoito para fiscalizar torcidas organizadas (mesmo em outros países), parece achar natural que um grupo armado distribua “relhaços” naqueles dos quais discordam.

Os políticos intimamente vinculados ao agronegócio fizeram questão  de justificar e aplaudir as agressões. Inclusive o deputado federal Jeronimo Goergoen (PP), que tem se empenhado para votar e aprovar o projeto que torna as ações do MST e do MTST em terroristas. Semanas atrás, o parlamentar mostrou toda a indignação com o fato de os grupos bloquearem estradas e queimarem pneus, o que ele chama de “atitudes criminosas”. Curiosamente, o deputado parece ter mudado de ideia quando questionado sobre o comportamento dos contrários a Lula, que fizeram exatamente a mesma coisa durante a passagem do ex-presidente. De acordo com Goergen, o petista apenas recebeu o troco pelo que “provocou”. Postura semelhante teve a colega de partido de Goergen, a senador Ana Amélia Lemos, que em um evento interno do partido parabenizou os homens que “colocaram para correr” os defensores do petista.

Pelo visto, os dois mandaram às favas o respeito às instituições democráticas e ao debate civilizado, tudo para não desagradar seus potenciais eleitores

A postura cínica de políticos, seja de qual espectro for, não é nenhuma novidade, afinal, o cinismo e a política andam umbilicalmente ligados. Porém, espera-se sempre o mínimo de decência de quem está no poder, um pingo de respeito aos seres humanos que militam em lados opostos e, principalmente, pelo regime pelo qual foram eleitos. Entretanto, os “progressistas” preferiram imitar a irresponsabilidade de um pré-candidato à presidência, aquele que desrespeita a democracia elogiando torturadores do regime militar.

Enquanto isso, o Rio Grande do Sul se coloca na vanguarda do atraso e segue orgulhoso de façanhas nem um pouco nobres. Mais uma vez, as façanhas de nossa terra são um modelo apodrecido e lamentável, e podemos ver os políticos deste estado apoiando um período tenebroso que está por vir.

 

Foto: Paula Fiori / Palacio Piratini

Voos Literários

7 visões literárias sobre Porto Alegre

Flávia Cunha
26 de março de 2018
Porto Alegre, RS - 21/07/2017 Entardecer no Centro Histórico Na foto: Mercado Público Central Foto: Eduardo Beleske/PMPA

Porto Alegre completa 246 anos hoje  e eu fico buscando motivos internos para celebrar. É a cidade onde nasci, em que vivo há 40 anos e aqui construí a minha história, o que inclui gostar muito dos artistas locais, entre eles os escritores. Mas a capital do Rio Grande do Sul anda sendo maltratada, com ruas sujas, matagal alto por todos os lados, a população de rua aumentando cada vez mais

E eu, como sempre que a realidade me atormenta, recorro à Literatura. Descobri muitos textos em que a cidade é citada, então, esse é o presente que dou a vocês e a mim.

Porto Alegre pelos olhos de escritores talentosos, de diferentes épocas. Vamos torcer para que a cidade tenha dias melhores, em breve

 

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A zona Sul da cidade

“Ninguém está nesta parte da cidade num dia de semana a esta hora da tarde, exceto os caras nos barcos, uns bem próximos, ao redor do clube de velas, outros um pouco mais longe, mas nunca muitos, até porque o lago não é a 10 coisa mais linda do mundo. Quero dizer, todos nós gostaríamos que ele fosse ao menos um pouco mais azul. Lagos costumam ser azuis, não marrons, e as pessoas adoram o azul, é a cor favorita da maioria delas, isso tudo por causa do céu e da água (certamente não dessa), o que eu também vi num documentário, que é o que faço perto da hora de dormir. De qualquer maneira, está abrindo, o bar em que já estive um milhão de vezes, sentado conversando enquanto esmigalhava rótulos ou tentava rosas de guardanapo, na rua de pé com um copo descartável de vinho, ou então jogando sinuca no salão dos fundos, que podemos dizer que é uma parte construída literalmente dentro d’água, o que tem deixado a prefeitura puta da vida há uns vinte anos.”

Carol Bensimon, Sinuca embaixo d’água. Leia um trecho aqui.

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 O Parque Farroupilha, um dos mais frequentados pelos porto-alegrenses

“Passava agora pelo calçadão de areia da Redenção, pela Avenida João Pessoa, o parque ensolarado, os pássaros voando em bando, carros a passarem em alta velocidade, crianças que iam para o colégio, grandes nuvens que desenhavam formas estranhas no céu azul translúcido. […] Passou pela Faculdade de Direito, onde passara bons anos de sua vida, as recordações se atropelavam, estugou o passo, precisava vencer o passado que não lhe interessava mais. Passou pela frente do velho casarão da Santa Casa de Misericórdia, pelas casas iguais do quarteirão, pela Igreja da Conceição, os velhos portões de ferro trabalhado, os gradis cheios de arabescos, cruzou a Rua Santo Antônio e foi quando diminuiu o passo […]

Josué Guimarães, Camilo Mortágua. O romance se passo no ano de 1964, marcado pelo Golpe Militar.

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O Guaíba, com todo seu esplendor

“Fui até a minha praça, na volta do Gasômetro, e é só lá que encontro céu e rio à vontade, azuis, imensos, quase fundidos um com o outro. O céu e o rio vistos daqui da cidade são ávaros, mostram pedacinhos pequenos, perdidos no meio dos edifícios. Parecem ter vergonha de se mostrar. Lá, não.”

Caio Fernando Abreu, Limite Branco. Primeiro romance do autor e um dos poucos em que Porto Alegre aparece claramente como o cenário de um enredo

“O rio está tranquilo e o horizonte é de um verde tênue e aguado que vai se diluindo num azul desbotado. As montanhas ao longe são uma pincelada fraca de violeta. A superfície da água está toda crivada de estrelinhas de prata e ouro. Longe aparece o casario de Pedras, na encosta dum morro. Mais perto o Morro do Sabiá avança sobre o rio. O céu é tão azul, tão puro e luminoso, que Noel simplesmente não acredita que seja um céu de verdade.”

Erico Verissimo, Caminhos Cruzados. A obra do escritor inclui romances urbanos bem interessantes, como Noite e Clarissa, mesmo tendo ficado conhecido pela trilogia “O Tempo e O Vento”

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O centro de Porto Alegre

“Encontrei esse cachorro quase morto de fome na Praça da Alfândega, numa madrugada de outono fria pra cacete, quando voltava de um bar. Era um vira-lata que deixara de ser filhote fazia pouco tempo, preto com dezenas de manchas brancas. Na esquina havia uma caçamba de entulho da prefeitura. Vasculhei o lixo ali dentro e encontrei uma tira comprida de plástico. Improvisei uma coleira ao redor do pescoço do cachorro e o arrastei até o meu prédio, no alto da Duque.”

Daniel Galera, Até o dia em que o Cão Morreu, que inspirou o filme Cão Sem Dono

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A Porto Alegre do século XIX, que já tinha problemas de transporte público

“Há dias que é uma vergonha, os bondes levam horas e horas nos desvios. Ainda há pouco tempo, num passeio que eu fiz com o Ramalho, levamos duas horas e quarenta e cinco minutos do Parthenon à praça da Alfândega. O bonde descarrilou três vezes, esperou um quarto de hora em três desvios, as bestas rebentavam as correias de espaço a espaço.”

Paulino de Azurenha, Mário Totta e Souza Lobo, Estrychinina. Romance de 1897 que narra a história de amor impossível entre Chiquita, uma prostituta, e Neco, um rapaz de “boa família”. Em meio a esse impasse, o casal vaga pela cidade e o leitor consegue identificar casarões antigos da rua Riachuelo, a Rua da Praia, com seu comércio pulsante, e festividades realizadas na Praça da Alfândega e no Menino Deus.

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Um poema sobre Porto Alegre, por um poeta apaixonado pela cidade

O Mapa

Olho o mapa da cidade

Como quem examinasse

A anatomia de um corpo…

(E nem que fosse o meu corpo!)

Sinto uma dor infinita

Das ruas de Porto Alegre

Onde jamais passarei…

Há tanta esquina esquisita,

Tanta nuança de paredes,

Há tanta moça bonita

Nas ruas que não andei

(E há uma rua encantada

Que nem em sonhos sonhei…)

Mario Quintana,  Apontamentos de História Sobrenatural. Publicado em 1976, quando o poeta estava com 70 anos.

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Foto: Eduardo Beleske/PMPA

Igor Natusch

Governo Sartori levou surra na Assembleia – e a culpa não é da oposição

Igor Natusch
1 de fevereiro de 2018
PORTO ALEGRE, RS, BRASIL 31.01.2018: Acompanhado por integrantes do Secretariado, o governador José Ivo Sartori fez um pronunciamento a imprensa, nesta quarta-feira (31), no Palácio Piratini, logo após o encerramento da sessão extraordinária da Assembleia Legislativa. Foto: Dani Barcellos/Palácio Piratini

Que a convocação extraordinária da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul foi um fiasco, quase ninguém poderá negar. A ideia do governo de José Ivo Sartori era votar o regime de recuperação fiscal acordado com o governo federal, defendido como vital para tirar o Estado do atoleiro, e incluir no pacote o fim da necessidade de plebiscito para autorizar privatização de CEEE, CRM e Sulgás. Mas não se chegou nem perto disso: após três sessões, os projetos não foram sequer apreciados, que dirá postos em votação. E a tarefa da oposição, que parecia um tanto complexa antes da primeira sessão, acabou sendo facilitada por uma base governista desunida e desorganizada – chegando ao cúmulo de perder todo o trabalho da primeira sessão porque um parlamentar foi ao banheiro, uma trapalhada que eliminou o quórum necessário para dar prosseguimento.

Compreende-se, claro, que o governador estivesse irritado com a situação na coletiva que deu logo após ter o fracasso consumado na Assembleia. Mais difícil, porém, é concordar com o foco de sua revolta, totalmente direcionado à oposição. “A manobra não foi contra nosso governo, foi contra o Rio Grande do Sul”, reclamou. A oposição, segundo ele, é “radical”, e a população não suporta mais “essa pequenez e essas traquinagens políticas” vindas de quem “causou parte da crise”. “Esses setores políticos vão ser responsabilizados se o atraso nos salários aumentar”, ameaçou Sartori.

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O que fez a oposição para deixar Sartori tão indignado, furibundo, cuspindo fogo pelas ventas? Terá feito uma manobra traiçoeira, descumprido um acordo no último instante, aplicado um golpe baixo do ponto de vista político?

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Nada disso. Fez a oposição o que qualquer oposição faz diante de uma pauta da qual discorda: mobilizou-se contra ela. Revezaram-se os deputados na tribuna, atrasando o processo de votação. Pediram verificação de quórum quando perceberam que a base não tinha como garantir o mínimo de parlamentares em plenário. Com o regimento interno debaixo do braço, o presidente da Assembleia, deputado Edegar Pretto (PT) – que é de oposição, o que não é crime algum – indeferiu o pedido de inversão de pauta da bancada governista, bem como o ofício para mais duas sessões extraordinárias.

Discuta-se a conveniência dessas ações o quanto se desejar, dentro das visões políticas de cada um: o que não dá é para dizer que há alguma novidade nesses procedimentos. Não se trata de desonestidade, radicalismo, perfídia nem nada do tipo: é, pura e simplesmente, fazer oposição. E é algo que se faz em todos os parlamentos da face da Terra – à esquerda, à direita, ao centro, no céu ou no inferno do espectro político.

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Por acaso tem a oposição – qualquer uma – obrigação de ser dócil à situação apenas porque se diz que alto lá, desta vez é importante de verdade, precisamos de um acordo porque agora a coisa é séria e acabou a brincadeira?

 

Evidente que não

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Se ela discorda, ela vai derrubar; se não tem força para derrubar, fará de tudo para barrar o avanço. Uma obviedade quase simplória, verdadeiro beabá da política na esfera parlamentar.

Duvido muito que Sartori desconheça esses meandros, posto que ele mesmo já foi deputado e inclusive presidiu a Casa, em 1998. Está, isso sim, fazendo uma transferência de responsabilidade, jogando para o time adversário um fracasso que pertence, exclusivamente, a ele e seus aliados.

A convocação extraordinária foi um desastre estratégico. Faltando uma semana para o retorno normal dos trabalhos na Assembleia, não há sentido em mobilizar todo o aparato da Casa, com todos os custos envolvidos, se não houver certeza absoluta de que coisas serão votadas – certeza que só se pode ter com estratégia sólida e, acima de tudo, uma maioria consolidada e inabalável. Ao contrário: o que se viu foi uma bancada de situação dispersa e confusa, sem um plano de ação, atuando sempre de forma reativa e inapelavelmente incapaz de propor jogo.

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A bancada oposicionista não precisou fazer mais que o básico para impedir a votação, por um motivo singelo: mesmo menor em número, estava muito mais coesa e determinada que o time adversário

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A oposição sabe muito bem que não quer o acordo com a União, tal como está posto; a situação, por sua vez, não tem tanta certeza assim do que quer ou não. E indecisão, no parlamento, é um pecado muitas vezes fatal. O governo, pelo jeito, não fez o dever de casa. São três anos de governo e conta-se nos dedos os momentos em que o governo andou todo junto, em bloco, na mesma direção. Aí não adianta apelar para o sentimentalismo, lamentando que o outro lado deveria ser mais compreensivo, esbravejando ameaças vãs ou lançando ao vento apelos frouxos por união.

Quanto mais frisa que “não existe plano B” caso a recuperação fiscal não aconteça, mais Sartori e seu governo reforçam publicamente uma aposta que (e agora está mais claro do que nunca) simplesmente não têm coesão e força política para cumprir. Mesmo com manifestações favoráveis na imprensa, mesmo martelando a suposta única saída por meses a fio, o governo não convence nem a própria bancada a abraçar o rojão, ao ponto de jogar pela janela três dias inteiros de convocação extraordinária. Perdeu, sim, e perdeu feio. Pode vencer nas próximas semanas, é claro: a tendência, contudo, é de acumular fracassos, caso limite seus esforços a uma tentativa pueril de criminalizar a oposição por agir como oposição. Não adianta jogar o desgaste para o outro lado do muro: o fiasco tem assinatura, e ela não foi feita em caneta vermelha.

Foto: Dani Barcellos/Palácio Piratini

Guia de Viagem

Cambará do Sul – Parte 2: A Emboscada

Geórgia Santos
29 de abril de 2017

Foi uma semana congelante no sul do Brasil, segundo relatos que recebi. Previsivelmente, a gauchada já começa a se coçar pra viajar pra serra e passar aquele frio gostoso enchendo a cara de vinho em frente a uma lareira e coisa e tal. Três amigas e eu resolvemos fazer isso e viajamos para Cambará do Sul há quase cinco anos. E valeu a pena, mas foi uma viagem turbulenta – óbvio.

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Começou com um corpo no chão, como já contei pra vocês, mas o que viria pela frente era um potencial filme de suspense policial.

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O suposto atropelamento deixou a viagem estranha, mas bastante propensa a ataques de riso eventuais. No meu caso, de puro nervosismo. Provavelmente algo que herdei de minha mãe, considerando que não há ninguém no mundo que ria mais que ela ou o faça em situações mais inadequadas. E os risos eram realmente aleatórios, não estávamos bebendo nem fumando maconha. Só coca-cola e uns marlboros.

Quando avistamos a placa indicando que estávamos em Cambará do Sul, já havia passado de 1h da manhã. A cidade parecia o cenário de um filme do Clint Eastwood. Abandonada, escura, com uma baita neblina e sem uma viva alma na rua. Veja bem, almas, havia. Vivas, nenhuma.

Todos os celulares estavam sem bateria – lembrem, era 2012 e as fotos foram tiradas com câmera digital – e nós não tínhamos a menor ideia de como chegar à pousada. Estávamos condenadas a vagar até que alguma pessoa aparecesse. Renata começou a dirigir em círculos pela cidade, na esperança de que encontrássemos alguém que pudesse nos ajudar. Felizmente, de alguma forma, chegamos até a casa em que ficava a Brigada Militar.

Neste ponto é importante ressaltar que Fernanda e eu estávamos em meio a um dos piores ataques de riso de toda a viagem. Eu não conseguia respirar, meu diafragma estava distendido e louco pra soluçar e minha barriga estava tão tensa que a câimbra já se anunciava. Não bem câimbra, mas aquela dor que dá quando a gente corre sem ter o menor preparo físico, sabe. Por isso, Renata e Evelin, muito responsáveis, sugeriram que nós ficássemos no carro pra que os policiais não se sentissem ofendidos. Justo.

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Elas desceram e começaram a bater na porta, aparentemente sem muito sucesso. Quando já estavam voltando pra o carro, aparece alguém na porta. Sem farda e armado. Elas se borraram, Fernanda e eu rimos ainda mais

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Esclarecida a situação de estarmos vagando pela madrugada, as gurias pediram ajuda. Se desculparam pelo nosso comportamento infantil e eles, gentilmente, explicaram como chegar à pousada. Quando elas voltaram pra o carro, perguntei pra Renata se ela havia entendido, ao que ela me garantiu que sim. Mentira. Duas quadras depois ela não sabia mais pra onde ir e nós não conseguíamos mais encontrar a Brigada.

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“Sem demora, notei que um carro nos seguia. As gurias estavam céticas, me chamaram de paranóica”

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A essa altura nós já não ríamos mais. Estávamos com medo, mesmo. E tínhamos razão pra isso. Sem demora, notei que um carro nos seguia. As gurias estavam céticas, me chamaram de paranoica. Riram. Mas aquilo estava estranho. Renata resolveu testar o motorista e começou a entrar em ruelas improváveis. A cada curva que nós fazíamos, eles seguiam o mesmo trajeto. Viramos à direita. Eles também. Viramos à esquerda, eles também.

Ficamos desesperadas. Assustadas de verdade. Estávamos em uma cidade fantasma sendo seguidas por um automóvel que parecia ter quatro homens dentro – exatamente a quantidade de mulheres em nosso carro. Renata foi mais corajosa –e doida – e resolveu parar o carro e perguntar o que estava acontecendo. Não reagimos bem.

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“Tu tá louca. Eles vão nos estuprar, nos matar, a gente não vai sair viva disso. Não para esse carro. A gente vai ser presa fácil. Não faz isso!!!”

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Eu estava em pânico, a Fernanda chorava, a Évelin blasfemava e a Renata abaixou o vidro e perguntou: “O que vocês querem?” Notando o nosso desespero, o rapaz sorriu e disse: “A gente sabia que vocês iam se perder, por isso resolvemos ajudar.” Eram os brigadianos que decidiram nos seguir, garantindo que chegaríamos ao destino. “A gente leva vocês até lá, segue o carro”, explicou. Obviamente, diante do ridículo, caímos na gargalhada de novo e fizemos o que eles disseram.

Mas algo soou estranho. Eles não estavam de viatura ou fardados. Hm, não parecia certo. Ao mesmo tempo, o carro seguia para uma rua escura, de chão batido, sem casas ou prédios no entorno. Todas pensamos a mesma coisa.

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“Nós somos muito trouxas. É uma emboscada!!!!”

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Começamos a gritar, eu comecei a chorar e a Fernanda não parava de gritar que era uma emboscada. A Évelin e a Renata tentaram manter a calma, mas elas estavam apavoradas também. “Eles vão nos estuprar no mato, cortar nossos corpos em pedacinhos e ninguém nunca mais vai encontrar. Meu Deus, nossas famílias. Que horror. Arranca esse carro, foge. É uma emboscada! É uma emboscada!!!!”

Eu sei que parece coisa de quem vê muito Criminal Minds, mas a situação era tensa. Eu alternava entre risos e choro e estava muito assustada. Até que tudo ficou ainda pior. Eles pararam o carro em uma rua escura e, aparentemente, sem saída. Não conseguiríamos passar por eles. Nisso, outro carro surge do nada e nos fecha. Fodeu.

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“Eu disse que era uma emboscada, a gente vai morrer!!!”, gritou a Fernanda

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A essa altura do campeonato, todas nós acreditávamos nisso. De verdade. Quando eles desceram do carro, o discurso de despedida já começava a ser ensaiado e as lágrimas eram bastante intensas. Era o fim. Adieu. Era uma emboscada.

Exceto pelo fato de que estávamos em frente à pousada e o cara que “nos fechou” só estava entrando na garagem da própria casa. Mas também, dá uma olhada na rua do bagulho. Imagina à noite. Compreensível, né?

Sim, adivinhou, caímos na gargalhada. De novo. Só que dessa vez foi difícil de parar. Eu levei muito tempo. Acordamos o dono da pousada, demorei uma hora pra fazer a lareira funcionar (que já estava preparada e era só acender um fósforo) e quase fui expulsa do quarto ao melhor estilo Big Brother, com votação e tudo, porque não calava a boca.

Hoje “A Emboscada” virou nome de grupo no whatsapp. Mas a saga daquele final de semana não parou por aí. Ainda fizemos estragos em São Francisco de Paula…

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Lugares para ver

Fortaleza e Itaimbezinho

O turismo em Cambará é totalmente voltado pra natureza e as grandes atrações são os canyons da Fortaleza e o Itaimbezinho. Particularmente, acho o da Fortaleza mais bonito e interessante. O único inconveniente é o acesso. A estrada pra chegar até lá é horrível. Mas não tem erro, é só seguir as placas, mesmo quando parece que alguém vai te matar no meio do nada. Chegando lá, é só caminhar bastante e explorar as trilhas ao máximo – e desviar dos boizinhos – e aproveitar a vista maravilhosa. Pra quem gostas de algo mais radical, é possível fazer a trilha no riacho que corta o canyon, mas pra isso é preciso procurar as empresas especializadas que oferecem esse serviço. Os hotéis e pousadas, na maioria, oferecem pacotes com passeios exclusivos por trilhas em diversos locais da região.

Já o Itaimbezinho tem uma infraestrutura mais preparada para receber turistas, com guias, banheiros e tudo muito bem sinalizado. Há duas trilhas, que o visitante escolhe de acordo com o quanto quer caminhar. Ao longo do caminho, há recantos lindos esperando por quem está afim de explorar o matagal, com riachos e cascatas pra recarregar as energias. Só tomem cuidado com os búfalos. Não é piada. Especialmente com neblina….

Turismo rural

Eu nasci na colônia, então passear por sítios e fazendas em meio a animais não me impressiona. Mas pra quem nasceu na cidade, pode ser um passeio interessante. Há uma série de estâncias que estão prontas para receber visitantes que queiram conhecer um pouco mais do universo campeiro. Os hotéis da região estão todos preparados pra indicar o melhor roteiro pra tua viagem.

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Onde comer

Não é uma cidade grande, com grandes restaurantes. por isso, recomendo a hospedagem em um local que ofereça café da manhã. Os melhores restaurantes da cidade estão localizados no hotéis mais equipados – e caros -, que qualquer pessoa pode acessar. Mas há outras alternativas.

Sabores da Querência

É um local delicioso que vende geleias e antepastos orgânicos, produzidos no local, a Querência Macanuda. Quando nós visitamos pela primeira vez, em 2012, só era possível fazer uma pequena degustação dos produtos. Hoje o sítio está preparado para receber quem queira degustar um espumante ou uma boa cerveja artesanal. Ainda oferecem tábuas de queijos, sorvetes e outras delícias.

Restaurante Galpão Costaneira

O lugar perfeito pra quem quer experimentar uma boa comida campeira, sem falar na ótima seleção de cachaças que a casa oferece. É um espetáculo no inverno, com a comida reconfortante e fogões à lenha. A comida é maravilhosa e rola até um som bem gaudério.

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Onde ficar

Parador Casa da Montanha

Se tem grana sobrando, nem pense em ficar em outro lugar. É a experiência perfeita. Da vista à comida, dos spas à lareira. Desenhado para agradar até ao cliente mais exigente, é sofisticado sem apagar o clima rural da cidade.

Cabanas Brisa dos Canyons

Foram essas as cabanas difíceis de achar. Apesar do local ermo – que nem é tanto assim -, vale muito a pena. O preço é acessível e as cabanas são bem equipadas e aconchegantes. Uma ótima alternativa.

 

 

Guia de Viagem

Cambará do Sul – Parte 1: O corpo no chão

Geórgia Santos
22 de abril de 2017

As temperaturas já começaram a cair no Rio Grande do Sul e o primeiro instinto é se enfiar debaixo de um cobertor e ascender a lareira ou o fogão a lenha ou uma espiriteira (aquele lance de jogar álcool na panela e tocar fogo, super seguro). O segundo instinto é viajar pra Serra. Gramado, Canela e blá blá blá. Um saco, lamento. Tudo muito fake pro meu gosto. Já Cambará do Sul é outra história.

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Cambará é a essência do inverno gaudério: campos de cima da serra, um frio do cão, comida campeira, chimarrão, poncho e neblina. Perfeito

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Por esses e outros motivos, minhas amigas e eu resolvemos nos bandear praqueles lados e explorar a natureza da região, intercalando as trilhas com vinho em frente à lareira. Fernanda, Évelin, Renata e eu estávamos empolgadas naquele inverno de 2012, afinal, seria nossa primeira viagem juntas e, certamente, seria linda. Mas nem tudo correu como imaginávamos.

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Aliás, nem com a imaginação da J.K. Rowling nós chegaríamos ao que nos aconteceu naquele final de semana

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Reservamos uma cabaninha charmosa em Cambará. Ficaríamos de sexta a domingo e, na volta, ainda passaríamos em São Francisco de Paula. Como eu dava aula na sexta à noite, só poderíamos sair depois das 22h. E foi o que fizemos. Levei minhas coisas pra Universidade e as gurias me buscaram lá. Renata foi dirigindo. Estávamos tranquilas, afinal, mesmo que a estrada não fosse uma maravilha, não teria muito movimento àquela hora da noite. Estávamos certas.

A primeira bizarrice aconteceu na estrada, na ERS-020Estávamos felizes e cantantes, empolgadas com aquelas musiquinhas clássicas de roadtrips entre quatro amigas e nenhum jeans viajante.

 

Obrigada, Alemão Ronaldo, por esse momento. Continuando, passamos a viagem comendo porcaria e bebendo coisas açucaradas sem nenhuma culpa.

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Estávamos falando mal dazinimiga, trocando confidências e dando gargalhadas quando vimos um corpo na beira da estrada e um carro estacionado ao lado. Sim. Foi isso

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Ficamos em imediato silêncio e resolvemos parar pra ver o que estava acontecendo, aquele instinto sem noção de jornalista. Quando nos aproximamos do veículo que não conseguimos identificar, um homem desce do automóvel. Com uma silhueta significantemente assustadora ao melhor estilo cadeirudo à meia noite, ele caminha na nossa direção.

Ele não disse nada, não fez nenhum sinal ou tentativa de comunicação. Simplesmente caminhou na nossa direção e parecia que ele tinha algo em mãos. Mas a gente não conseguia ver, por causa da luz no nosso rosto. Ele não passava de uma sombra, na verdade.

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Me borrei toda. Corremos o mais rápido possível e saímos dali em um fração de segundos, berrando como cabritas sem a mãe

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Claro que precisávamos fazer alguma coisa, mas cinco corpos na beira da estrada não ajudariam a resolver o mistério. Chegamos à conclusão que deveríamos ligar para a polícia. Felizmente, com quatro jornalistas no carro, encontrar o telefone direto do batalhão não seria um problema. Não foi. Ligamos para o Comando Rodoviário da Brigada Militar e explicamos, com parcimônia, a situação. A verdade é que não sabíamos o que tínhamos visto, mas acreditávamos que valia a pena averiguar.

Depois deste fato, estávamos menos felizes e cantantes e mais tensas e silentes. Continuamos comendo porcaria, mas aquilo mexeu com a gente e com os nossos medos. Mas a gente não perdia por esperar….

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Como chegar

Carro ou ônibus. Há vários caminhos possíveis mas, apesar do corpo na beira da estrada, a melhor alternativa é usar o caminho pela ERS-020 quando sai de Porto Alegre.

Foto: Divulgação Prefeitura de Cambará do Sul

Geórgia Santos

Eu quero Porto Alegre de volta (mas tenho medo de ser baleada dentro de casa)

Geórgia Santos
20 de fevereiro de 2017
Porto Alegre, RS - 15/01/2017 Domingo na Redenção Local: Parque Farroupilha (Redenção) Foto: Joel Vargas/PMPA

Eu quero Porto Alegre de volta. Vivo em Porto Alegre há 12 anos e vivo bem. Foi a cidade que escolhi e que me acolheu. Sempre me senti à vontade na capital gaúcha, provavelmente por ser uma espécie de híbrido entre uma cidade pequena e uma cidade grande. É uma metrópole, claro, com milhões de habitantes, trânsito intenso e uma cena cultural bastante importante. Mas também é aquele tipo de cidade em que a gente vive encontrando conhecidos pelas ruas, em que nada é segredo, igualzinho ao que acontece no interior.

A adaptação não foi fácil, mas também não foi o bicho. Eu saí de um município de 7 mil habitantes, tateando, mas me senti em casa quando cheguei à cidade grande. Eu não tinha medo. Porto Alegre me tem, eu pensei. Hoje, isso mudou.

“Um carro entra na contramão, dois homens armados saem do veículo apontando duas pistolas na direção de dois caras que estavam na calçada. Meu instinto treinado por um pai delegado não teve dúvidas: “gurias, pro chão””

É meu aniversário e eu estava a celebrar com duas amigas. Bebíamos um bom vinho branco argentino, um torrontés, e conversávamos sobre coisas boas e ruins enquanto destilávamos no calor que nem o ar condicionado era capaz de aplacar. Nesse meio tempo, eu olho pela janela, que estava aberta na altura dos meus olhos, e vejo uma cena que já não é mais inusitada. Um carro entra na contramão, dois homens armados saem do veículo apontando duas pistolas na direção de dois caras que estavam na calçada. Meu instinto treinado por um pai delegado não teve dúvidas: “gurias, pro chão”.

Perdendo Porto Alegre

Estávamos ali, nós três, jogadas no chão durante a celebração do meu aniversário. Com medo de sermos baleadas dentro de casa. Porto Alegre não me tem mais

Como disse, já se vão 12 anos da minha relação com essa capital e eu sou muito feliz aqui. Mas sim, agora eu tenho medo. Muito medo. Porto Alegre foi abandonada por quem tinha que cuidar dela e a consequência é que a estamos entregando a quem não merece. Somente neste final de semana, 40 pessoas foram assassinadas no Estado, 12 somente na capital.  A situação é insustentável. Não se trata de uma sensação de insegurança, ela é real.

Eu quero Porto Alegre de alegre de volta.