Igor Natusch

Intervenção federal: mais um conto sobre icebergs e toalhas

Igor Natusch
21 de fevereiro de 2018

Vamos falar sobre a intervenção federal no Rio de Janeiro? OK, vamos.

 

Era uma vez um iceberg. Vamos imaginar, em nome de facilitar o nosso contar de história, que o nome do iceberg é “violência urbana“. Ele é um iceberg bem grande, mas vem se tornando mais problemático a cada ano, na medida em que não para de derreter e molhar as pessoas. Sendo feito de gelo, o iceberg sempre derreteu, pois derreter é de sua natureza, e sempre foi necessário enxugá-lo de alguma forma. O problema é que o iceberg está muito perto de uma fonte desgraçada de calor, daquelas que deixa tudo quente para caramba – e que ninguém sequer cogita desligar, porque muitos acham conveniente que essa calefação siga ligada, mesmo que só alguns poucos de fato esquentem os pés a partir dela. Segue o calor perto do iceberg, segue o iceberg derretendo mais do que o normal, e segue o problema permanente de enxugar esse gelo todo.

São as pessoas mais pobres da comunidade em torno do iceberg as que moram mais próximas dele, e que portanto se molham mais com a água que não para de derreter. Mas o pessoal um pouco mais distante, que também se incomoda mesmo não vivendo tão perto do iceberg, é quem grita mais alto contra a situação. Precisamos enxugar esse iceberg mais rápido, dizem elas. O derretimento do iceberg está completamente fora de controle.

Estando um pouco distantes como estão, não conseguem enxergar o perrengue pelo qual estão passando os enxugadores de iceberg: as toalhas de péssima qualidade e em quantidade menor que o necessário, a falta de treinamento dos enxugadores mais novos, a inexistência de uma estratégia para que a enxugada seja um pouco mais eficiente. Alguns enxugadores desviam toalhas para o mercado negro, outros jogam as toalhas encharcadas em cima das comunidades mais próximas, molhando aquelas pessoas ainda mais do que já estão. Uma bagunça, enfim.

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Mas o pessoal que está um pouco mais longe do iceberg, mesmo que tenha a melhor intenção e a mais justa das preocupações, não consegue enxergar direito essas coisas todas. Tudo que veem é a água do iceberg invadindo o pátio, entrando por baixo da porta de casa.

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E então erguem a voz para falar com o andar de cima, que coordena as tropas de enxugadores e, ao mesmo tempo, é quem fabrica e vende as toalhas para a operação. Isso tudo dá a eles muito dinheiro, fazendo com que possam pagar pelas confortáveis peças do andar de cima. Alem disso, estão com os pés bem quentes pelo uso contínuo da calefação e, uma vez morando acima de tudo que está acontecendo, há pouco ou nenhum risco real de se molharem em meio à bagunça lá de baixo. Erguem então a voz, os que moram no andar de baixo, e gritam aos de cima: precisamos de mais toalhas. Façam alguma coisa.

Gritam assim uma, duas, inúmeras vezes.

Com o tempo, porém, começam a se dar conta de algo. Começam a perceber que são os do andar de cima que fabricam as toalhas, ganham dinheiro a partir delas e que, quem sabe, não estão realmente dispostos a resolver o problema do iceberg. Começam a notar que eles descem a escada, dizem “OK, está tudo sob controle”, fazem um discurso motivador e ufanista para os enxugadores, sobem de novo aos seus aposentos e o problema segue mais ou menos igual. Percebem que, à menor menção de que desligar a calefação seria uma boa ideia, os donos das coberturas ficam muito irritados, gritam bonitos palavrões, mudam quase imediatamente de assunto. E mais importante: os que estão um pouco mais longe, mas não distantes o suficiente para que a água gelada do iceberg não os alcance, percebem que lá, no confortável andar de cima, os seus líderes nunca irão se molhar. E, é claro, se chateiam com essas coisas todas.

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Desçam aqui embaixo, gritam os que estão no meio do caminho entre a cobertura e o iceberg. Vocês não prestam para nada! Venham se molhar junto com a gente! Chegam, vejam só, a ameaçar subir as escadas e expulsar os atuais proprietários do andar de cima, insistem que vão arranjar outras pessoas para comandar as tropas de enxugadores de gelo.

Isso, é claro, deixa os donos do andar de cima um pouco preocupados.

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Diante dos protestos crescentes, acabam inventando uma solução. Convocam os protetores da fronteira, que impedem os povos de outros vilarejos de eventualmente invadirem aquela área, ainda um pouco mais seca, fugindo de seus próprios icebergs insolúveis. Eles não são bons em manusear toalhas: na verdade, já foram chamados algumas vezes, em situações de suposta emergência, e não houve qualquer melhora visível no derretimento do gelo. Mas são muito respeitados pelo pessoal do andar de baixo, que enxergam neles os homens mais fortes de toda aquela comunidade. E é isso, acima de tudo, que os do andar de cima têm em mente.

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Convocam os protetores de fronteira e dizem: agora vocês serão a elite dos enxugadores de gelo.

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Dão a eles as toalhas mais sofisticadas que conseguem tecer – mas não muitas, claro, pois se houver abundância periga até conseguirem manter o iceberg seco por algum tempo. Entregam a eles também uns esfregões, que não são de muita utilidade para enxugar a água que está no chão, mas causam um belo impacto visual. Anunciam sua chegada com banda de música, câmeras, pompa e circunstância. E dizem: vão lá, campeões de nosso povo. Deem o seu melhor. Enxuguem esse iceberg por alguns meses e temos certeza que, depois disso, ele não derreterá nunca mais. Confiamos em vocês!

Os protetores de fronteira sentem uma ponta de orgulho pela consideração recebida, mas parecem um pouco confusos. Seguram os toalhões de forma desajeitada, usam os esfregões sem nenhuma perícia, molhando bastante e até machucando os que estão bem pertinho do iceberg. Mas o pessoal que mora um pouco mais longe está em êxtase. Era exatamente disso que precisávamos, vibram. Enfim o andar de cima tomou um gesto corajoso. Chega de gente fraca enxugando gelo. Chega do iceberg lá, debochando da gente sem que ninguém fizesse nada. Viva o andar de cima!

Alguns tentam criticar a decisão dos coordenadores, dizem que os protetores de fronteira não deveriam enxugar gelo, que isso não vai dar certo. Mas a satisfação da maioria sufoca esses protestos. Quem não enxuga que não atrapalhe! Iceberg bom é iceberg seco! Que venha a elite!

Sorridentes e aliviados, os moradores da cobertura voltam a repousar em seus confortáveis divãs, voltam a esquentar os pés no calorzinho gostoso da calefação. E lá vai a elite dos enxugadores, sob aplausos, marchando de forma ritmada e firme, atacar o iceberg que não para de derreter.

O que as pessoas que moram ao lado do iceberg pensam disso tudo, ninguém sabe. Mas enfim, não dá para levar em conta o lado de todo mundo em um conto de fadas como esse.

Foto: Andrew Malone

Igor Natusch

Violência urbana: um conto sobre icebergs e toalhas

Igor Natusch
15 de novembro de 2017

Não sou bom desenhista, mas vamos lá.

A violência é um iceberg. Gigante, daqueles que a gente nem consegue olhar de tão enorme que é. Um iceberg, todos sabemos, é feito de gelo?—?e sendo gelo, está sempre derretendo um pouquinho, fazendo um pouco de água, por menos que a gente perceba. Sempre houve, portanto, a necessidade primordial e incontornável de enxugá-lo. Às vezes pouco, às vezes muito, mas não adianta: estamos sempre enxugando o gelo do iceberg, desde que o mundo é mundo, desde que seres humanos somos e percebemos que há um iceberg a enxugar.

Feito de gelo que é, o iceberg derrete mais rápido na medida em que há mais calor. O nosso modelo de sociedade, talvez a gente possa compará-lo com o aquecimento global?—?mas aí a parábola fica muito ambientalista, não é bem a ideia nesse caso. Basta dizer que a sociedade, em si mesma, produz calor, seja lá como ela queira se organizar. Basta juntar pessoas para que a temperatura ambiente fique mais alta. E o iceberg, claro, derrete.

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O problema é que a gente inventou um jeito especialmente quente de ficarmos juntos, uma engrenagem social que faz um calor dos diabos, daqueles que a gente fica suando sem parar. Uma calefação, que tal?

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Isso aí, cercamos o nosso mundo (e o iceberg) com uma calefação desgraçada, que está ligada há muito tempo e que ninguém sabe, ou se lembra, ou se importa em saber como desligar. E se a gente acaba ensopando de suor, imagina o quanto que o iceberg não derrete nesse caso?

Antes, quando o iceberg não derretia tão rápido, a gente tinha inventado algumas formas, mais ou menos eficientes, de enxugá-lo. Ele nunca ficava totalmente seco, claro?—?mas a gente dava jeito de evitar que o chão ficasse encharcado, pelo menos. Jogava umas toalhas no chão, colocava uns avisos de piso escorregadio, cercava algumas áreas mais críticas e, bem ou mal, dava para ir levando.

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Só que o calor da nossa calefação maluca fez com que nossas antigas estratégias não deem mais conta de tanto gelo derretendo. Tá tudo úmido, escorregando, fazendo poças d’água, um horror. Daqui a pouco ninguém mais fica seco nessa vida. Aí, o que a gente faz?

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Convocamos enormes tropas de enxugadores de gelo, é claro!

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Milhares e milhares, ou melhor dizendo, milhões de enxugadores munidos de toalhas bem felpudas e altamente absorventes. Mostramos o problema, damos coordenadas, é melhor atacar o iceberg nesse ponto e tal. E lá vão eles, bravos e determinados, enxugar o iceberg que derrete mais e mais. De início, até parece que vai dar certo. Todos sorriem, aliviados, protegidos e relativamente secos.

O problema é que, como sabemos, o gelo nunca vai parar de derreter. E logo as tropas começam a perder a batalha?—?o que aumenta, em consequência, nossa urgência em enxugar o iceberg.

Antes, a gente treinava bem esses nobres soldados enxugadores; agora é água demais, gelo molhado demais, só dá tempo de jogar a toalha na mão dos recrutas e gritar vai lá, ser enxugador de gelo na vida. Alguns são determinados até demais, enxugam gelo com tanta fúria que acabam rasgando as toalhas, machucando pessoas em sua volta. Outros até tentam manter a calma, passar a toalha no iceberg do jeito e no ritmo que foram ensinados no treinamento. Nenhum deles tem muito sucesso. Eles enxugam, jogam longe as toalhas encharcadas e pegam novas toalhas secas sem parar.

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O iceberg, sendo o iceberg que é, segue derretendo. E o que a gente faz? Ficamos na ponta da sala, berrando: enxuguem mais! Mais rápido! Não tenham piedade do iceberg! Ninguém aguenta mais tanta água!

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Não ocorre a ninguém que a calefação, tão bonita e que nos manteve tão quentinhos em alguns meses mais frios, possa ser o problema.

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Desligar a calefação, então, nem se cogita. Alguns talvez até tenham cogitado, para falar a verdade, mas a ideia parece tão complexa e absurda que acabamos mandando esses desgarrados calarem a boca. Quem não enxuga que não atrapalhe, gritamos. Falar é fácil, quero ver segurar a toalha lá na frente!

Nesse cenário de pesadelo, onde o iceberg já começa a cair em pedaços e logo afogará todos nós com seu degelo, apenas um grupo de pessoas está se dando bem: os vendedores de toalhas. Esses aí estão bem felizes, ricos, poderosos e bem considerados pela sociedade tão assustada, tão dependente de toalhas para enxugar o iceberg sem fim. Se você prestar atenção, de vez em quando verá os vendedores de toalhas segurando seus megafones, subindo no ponto mais alto desse mundo de conto de fadas e gritando: o gelo está derretendo, pessoal. Alguém precisa fazer alguma coisa. Enxuguem mais, que tá pouco.

Foto: Wade Morgen

Nós US

Importa quem se opõe a Trump

Sacha
25 de outubro de 2017
(you can read this post in English here)

O senador Jeff Flake gerou polêmica quando anunciou que não ia se recandidatar em 2018, com uma mensagem plenamente anti-Trump. A abordagem consolou o establishment republicano pouco confortável com Trump, mas relutante a exprimir isso publicamente. A oposição de Flake a Trump também deixa margem para a esquerda afirmar que o apoio partidário a Trump está fraturando. É cedo, porém, chegar a essas conclusões, por alguns motivos.

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Quem critica o presidente importa

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O senador Flake é um dos poucos republicanos no Congresso que se opõem abertamente a Trump, questionando a sua aptidão para o cargo. Por mais que se opusessem a Trump nas primárias, os republicanos têm se unificado em apoio a ele desde a sua nomeação. As diatribes e posições repreensíveis de Trump não têm levantado nenhuma voz republicana contrária em público. O silêncio em torno dos piores comportamentos do presidente tem sido a forma preferida do partido lidar com ele.

Esse silêncio é o fator determinante para a continuidade da administração. Os republicanos convergem na perspectiva de promulgar a sua agenda em virtude de controlar a presidência juntamente com a legislatura. Acreditam, devidamente, que se conseguissem passar legislação, ela seria assinada por Trump. Com a expectativa de que os democratas se oporiam à legislação republicana, nas câmaras de poder, a resistência democrata importa pouco para a sobrevivência da Casa Branca.

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Os republicanos estão altamente unidos

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Apoio republicano a Trump, ou falta de oposição, tem sido inabalável desde o início da sessão legislativa. Qualquer oposição ao extremismo de Trump tem encontrado resposta em votos unificados em todos os temas. Sejam nomeações, seja a legislação em si, dissidência republicana tem sido ausente. Com um partido tão qualitativamente unificado, qualquer crítica se destaca.

Destaquemos momentos cruciais em que republicanos votaram em contra de legislação própria, tais como as tentativas de derrubar o ACA. Em cada instância, o desejo republicano de revogar o Affordable Care Act (Lei de Proteção e Cuidado ao Paciente/PPACA em português) foi derrubado por um trio de senadores críticos da legislação, do impacto previsto, ou até do processo de lei mesmo. Esses senadores são mais dispostos a contrariar Trump e manter-se firmes em contra das suas propostas menos populares. Ainda assim, para qualquer tema há, no máximo, seis senadores que bloqueiam a legislação.

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Vozes críticas da maioria precisam manter o cargo para contar

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O senador Flake não tem sido, de acordo com o seu histórico de votação, um dos republicanos mais opositores à agenda de Trump. Contudo, em anunciando que não ia se recandidatar, começou a ser mais mordaz com o presidente. Embora votos importem mais como medida qualitativa para o partido da maioria decidir que assuntos são os mais importantes, a agenda é determinada pelo presidente. Por isso, sem se preocupar com muitos votos discordantes, críticas e dissidência por dentro do partido da maioria são tão importantes.

No entanto, para vozes republicanas críticas serem ouvidas e influenciarem a agenda legislativa da administração, é necessário que sejam representadas. É evidente que não se candidatar alivia o peso de fazer campanhas em que as palavras ditas podem ser mal-interpretadas. Flake parece que teria sido um candidato fraco contra candidatos nas primárias e na campanha geral. Outros senadores que decidiram não se recandidatar têm motivos semelhantes, ou bem da saúde.

Contudo, a liberdade de exprimir insatisfação num lugar onde isso implica contrariar a agenda legislativa não devia ser relegada apenas aos que não têm mais a perder politicamente. De cara com o extremismo, o freio mais importante são as vozes dissidentes entre as no poder. Precisamos dessas vozes agora e precisaremos delas depois de 2018, quando se constituirá a próxima legislatura.

Sem essas vozes, o Partido Republicano corre o risco de se render aos seus próprios elementos mais extremos. Se não houver figuras críticas dentro do seu partido, Trump terá a legitimação completa da sua agenda política. Essa é uma perspectiva inaceitável.

Imagem: Amanda Nelson
Igor Natusch

Das memórias afetivas em uma eleição

Igor Natusch
23 de agosto de 2017
Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

Uma das coisas mais agradáveis em uma eleição, para mim, é a água do bebedouro do Colégio Santa Teresa de Jesus. Sou uma pessoa que se preocupa com essas coisas: gosto de saber onde estão as fontes de água gratuita, de preferência gelada, para momentos imprevisíveis de sede. E poucas vezes na vida encontrei um bebedouro com água tão imensamente, tão satisfatoriamente gelada quanto o do Colégio Santa Teresa de Jesus, na zona sul de Porto Alegre.

Verdade que só saboreio essa maravilha duas vezes a cada dois anos, no máximo: não estudo nem nunca estudei na citada escola, então inexistem compromissos que me levem até lá em outros momentos que não o período eleitoral. Tivesse filhos, talvez os matriculasse no Colégio Santa Teresa de Jesus apenas para poder sorver a água deliciosamente gelada do bebedouro todos os dias, ao deixá-los e buscá-los da escola; não os tenho, porém, de forma que ao menos no momento essa solução não me é possível. Contento-me em transformar esse prazer em uma espécie de segundo compromisso eleitoral: vou até minha seção, deposito o voto na urna e na volta dou uma passada pelo eficiente bebedouro do Colégio Santa Teresa de Jesus, que sempre me fornece água geladinha, com eficiência invejável.

Voto sempre bem cedo, tão cedo quanto consigo, na verdade. Sendo a votação num domingo, ela sempre submete-se a uma hierarquia do dia anterior. Não que eu seja exatamente um frequentador das noites de sábado, mas os finais de semana naturalmente convidam a madrugadas mais extensas. Da última vez, consegui estar na urna por volta das 9h30, o que considero um bom horário. Pude caminhar tranquilo pelas ruas de paralelepípedos, passar pela praça deserta, ouvindo os gritos das caturritas.

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Do outro lado da Cavalhada, surgem os panfletos. Já foram bem mais volumosos, é verdade: em tempos idos formavam um espesso tapete multicolorido, uma trilha inconfundível levando às zonas eleitorais da região

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Dava quase para adivinhar os locais onde se votava, observando apenas o trajeto desenho pelos papéis ao chão. Hoje há bem menos papel, de tal modo que é quase possível prestar atenção neles, ler os nomes impressos. É bom: menos trabalho aos garis no dia seguinte.

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O dia de eleição sempre carregou um ar meio mágico para mim. Sou um filhote do processo de redemocratização, da eleição de 1989: acompanhei aquele período de forma febril, interessadíssimo, como se algo em mim despertasse a partir daqueles dias.

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Seja lá o que fosse, segue desperto, já que a política é assunto que sempre me cativa?—?e sigo enxergando essa coisa em todos os cantos, em todas as pessoas. Escutando seu eco em todas as vozes. Mesmo que algumas gritem muito alto, e gritem umas por cima das outras, tão alto e tanto que às vezes parece que nada existe para se ouvir.

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A tranquilidade do trajeto até a urna é um intervalo em meio ao ruído, talvez a calmaria antes de uma tempestade de ansiedade e incerteza. Hoje em dia, de raiva. Mas sempre de esperança, acima de tudo

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Esperança, como sabemos, está na caixa dos objetos valiosos que, quando quebram, dificilmente podem ser remendados com sucesso. Não tenho dúvida que foi isso que me atraiu para a política, lá na segunda metade dos anos 80. Que era a esperança que animava os brasileiros a assistir Marronzinho e Eldes Mattar nos horários eleitorais de 1989. Que conduziu Lula, metalúrgico e nordestino, à Presidência da República. E que hoje, ferida e deformada, junta a sua voz na gritaria dos que querem derrotar muito mais do que vencer, seja de que lado for.

Que a esperança seja ferida no processo político brasileiro não é algo inédito ou surpreendente. Lembro bem da minha mãe chorando na frente da TV durante o enterro de Tancredo Neves?—?e eu chorando junto, sem entender nada do que estava acontecendo, chorando apenas porque minha mãe chorava e a tristeza dela virava tristeza dentro de mim. Acho que foi ali que me nasceu o interesse político: na dor que eu não entendia e na decepção que, mesmo sem compartilhar, me levava a sofrer um pouco, junto com os decepcionados.

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Política é decepcionar-se. E tentar de novo. E ir achando o caminho, avançando um pouco a cada retomada, quase sem perceber. Chega-se a algum lugar? Não sei: anda-se, ao menos

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Estou voltando para casa quando vejo um homem que vai pelo caminho que retorno. Pele escura, bigode, cabelos brancos ameaçando conquistar o negro em sua cabeça. Roupas surradas, mas limpas. Olha para o chão; contempla os santinhos espalhados na calçada, no meio-fio, alguns já derramados para a área do asfalto. Detenho o passo, da forma mais discreta de que sou capaz, para observá-lo. Parece procurar algo. Hesita. Agacha-se e pega um dos papéis. Aproxima-o dos olhos como quem tem um defeito de visão, afasta de leve, traz o papel de novo para si. Pensa. E então faz uma careta quase imperceptível, deixa o santinho cair de seus dedos, rodopiando de volta ao monte de papel colorido no chão.

Retoma a caminhada. E eu também retomo meu caminho, pensando em como cada um faz suas escolhas, com seus critérios e dignidades. Às vezes fazemos política assim, pegando um papel no meio da rua sem levá-lo conosco, deixando a resposta fácil para trás. Terá votado em quem? Não importa: decidiu-se. E isso já é uma grande coisa.

Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

Igor Natusch

O “voto consciente” perdeu espaço para o protesto. E a culpa é do próprio sistema

Igor Natusch
22 de fevereiro de 2017
Rio de Janeiro - Manifestantes e policiais militares entram em confronto durante protesto no centro da cidade ( Fernando Frazão/Agência Brasil)

Que vivemos tempos de crescente descrença nas instituições e de revoltas quase periódicas nas ruas (e nas redes) de todo o Brasil, é algo que qualquer um pode constatar por si só. Se gostamos ou não do grito de guerra ou da vidraça quebrada presente (ou ausente) na ocasião, a conclusão continua a mesma: muita gente, de diferentes esferas sociais e políticas, resolveu reclamar do que julga incorreto no país. Em resposta, é muito comum que se faça uma defesa do voto como elemento democrático de mudança, quase como se fosse ele o caminho disponível e, mais ainda, o único correto para a manifestação política. Uma fala do ministro do STF Marco Aurélio Mello, dita em entrevista à Veja em 2014, ainda é uma das mais ilustrativas que conheço a esse respeito:

“O local de protesto por excelência é a urna. (…) Não é mediante a apatia nem o protesto extremado que chegaremos no Brasil a dias melhores. Chegaremos com a participação de todos, escolhendo os melhores candidatos. Mais importante do que o “vem para a rua”, que virou moda, é o “vem para a urna”. O protesto eficiente não se faz queimando lixeiras, mas participando da vida pública.”

Considero a fala do ministro equivocada em diferentes níveis. E um tanto simplista em termos de leitura, também.

Fiquemos na prática, sem teorizar muito. “Votar bem”, no Brasil (no mundo?) é cada vez mais difícil, quase impossível em várias situações. E nem tanto pelos candidatos em si: é porque os eleitos, sejam quais forem, têm uma margem de atuação cada vez mais estreita e engessada. Quem nos governa não é (ou é cada vez menos) o presidente, governador, prefeito, deputados ou vereadores: é uma estrutura consolidada de troca de favores, baseada na necessidade de amplas alianças políticas e financiada de forma no mínimo antiética por grandes grupos econômicos e empresariais – que são, no fundo, quem determinam as políticas públicas de médio e longo prazo, obviamente dentro dos próprios campos de interesse.

É um sistema de manutenção de poder e de privilégios, no qual o eleito (use ele uma estrela no peito ou um tucano em sua sigla) tem margem limitada de atuação e quase nenhum espaço para atuar fora dos eixos previamente estabelecidos, por mais que eventualmente deseje. É um problema muito mais sistêmico do que fruto da desonestidade ou incompetência dos eleitos – embora nada disso, é claro, inocente o político corrupto e/ou incompetente de seus fracassos. Meu ponto, aqui, é que o voto individual colide contra um enorme muro que protege os círculos mais altos do poder econômico – o que nos aproxima muito mais de uma plutocracia legitimada pelo voto do que de regimes democráticos de fato. Aqui no Brasil, e em praticamente todo o mundo.

E por que tanta gente protesta – entendendo protesto como algo muito mais comum e numeroso que as manifestações de rua de 2013 ou 2015/16? Porque encontrou no protesto uma forma desesperada talvez, mas muito mais direta e eficiente de atuação política. Coloco fogo em alguns pneus e a companhia elétrica finalmente aparece para consertar a luz na minha rua. Pressiono deputados na Assembleia e eles, de vez em quando, recuam em algumas decisões polêmicas. Eu protesto nas ruas e, às vezes, até reverto o aumento de passagem nos ônibus. Protesto não conquista tudo (e o visível aumento na repressão violenta aos protestos indica claramente a disposição de anular esse modelo de reivindicação), mas é onde as pessoas se sentem capazes de uma atuação política de resultados visíveis. Elas simplesmente detectaram, ao natural, o que a reflexão pode nos mostrar de forma talvez mais elaborada: que o nosso sistema político funciona cada vez menos.

Não é que votar não preste para nada. No mínimo, é algo que deve ser feito com grande responsabilidade, pois ainda é o mecanismo para definir quem, individualmente, estará em nossas casas representativas. E é bem melhor ter um Congresso pavoroso, mas eleito no voto, do que um definido autocraticamente por um tirano de ocasião. Ainda assim, a lógica do excelentíssimo ministro me parece distorcida. Votar, cada vez mais, para o bem e para o mal, é um gesto acessório; o que marca nosso atual momento é a ação política direta, seja elaborada ou ingênua, seja fechando ruas ou gritando contra um determinado partido nas redes sociais. E a culpa, se é que podemos falar em culpa, não é de quem incendeia a lixeira ou de quem quer o fantoche reacionário como Presidente da República: é do nosso sistema engessado, contaminado pelo poder financeiro, que se afunda mais e mais em descrédito para que indivíduos possam salvar a própria pele. A política representativa, no Brasil (no mundo?) precisa mudar muito, mas muito mesmo para reverter esse jogo. E não é falando em “votar bem” que vamos conseguir evitar qualquer desdobramento negativo. Por um simples motivo: antes de pedir um “voto consciente”, é preciso criar um cenário onde ele possa, de fato, ter eficiência.