Igor Natusch

Nada de bate-boca – o negócio é mostrar que Bolsonaro não manja nada

Igor Natusch
1 de agosto de 2018

É difícil acertar o tom de sobriedade quando se fala de Jair Bolsonaro. Por um lado, é fundamental demonstrar, de forma séria e enfática, os riscos que sua candidatura traz à claudicante democracia brasileira, bem como à sociedade como um todo. Porém, não seria sábio ignorar que é justamente dessa oposição que o candidato do PSL tira muito de sua força: o confronto é seu espinafre, é no bate-boca que ele se fortalece, e qualquer contestação a ele serve para reforçar, junto a seu eleitorado cativo, a ideia de todos-contra-ele que é o coração de sua tentativa de chegar à presidência.

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Aos que prezam pelo básico em termos de liberdade e direitos fundamentais, a omissão diante de Bolsonaro pode ser trágica. E ir para o confronto direto não ajuda, já que o tensionamento é justamente o que sua candidatura mais deseja. O que fazer, então?

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Quem assistiu ao Roda Viva com Bolsonaro, programa exibido pela TV Cultura na última segunda-feira, teve a chance de tirar algumas pistas. Não acho que a sabatina tenha tido o poder de mudar posições arraigadas: quem sente ojeriza a Bolsonaro saiu ainda mais nauseado, quem o apoia e enxerga nele a vocalização de seus medos e intolerâncias só enxergou motivos para ampliar sua idolatria. De fato, boa parte do programa foi um desperdício nesse sentido, com inúmeras questões voltadas às coisas horrendas que o candidato defende – terreno onde ele se move com desenvoltura, soltando inúmeras frases de efeito para o delírio de seu público cativo. Não há novidade possível nessa abordagem: o deputado fará a sua cena habitual, ganhará aplausos delirantes de seu fandom e ainda poderá usar a repulsa dos oponentes como mecanismo de confirmação. Não é com essa munição que se estoura o balão bolsonarista – com a ressalva, é claro, de que derrubar o candidato Bolsonaro não é, e nem precisa ser, a meta primeira dos jornalista que eventualmente o entrevistem.

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A trilha que surge, a partir das declarações públicas de Bolsonaro, aponta para outro alvo, em outra direção: a linha do meio

Os indecisos

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Porque é inegável que existe uma legião de brasileiros, tomados pelos mais diferentes tipos de angústia, que não odeiam Bolsonaro por definição, mas também não morrem de amores por ele. Talvez nem mesmo o conheçam. Talvez só tenham ouvido falar e, no momento, nutrem não mais que uma pequena antipatia, ou uma simpatia igualmente imprecisa. Em quem esses eleitores votarão – e mais, de que maneira vão escolher, a partir de quais diretrizes e bandeiras decidirão seu voto?

Foi curioso ver o fenômeno de redes sociais tentando abrir o discurso em alguns momentos. Sua expressão ficava tensa, a voz gaguejava, perdia-se toda a desenvoltura tão bem exercida quando o assunto é soltar frases de baixo nível para agradar o eleitorado cativo. Alguns momentos (como a pífia leitura sobre mortalidade infantil e o constrangedor desconhecimento sobre a situação dos trabalhadores do campo) seriam dignos de uma comédia, não fossem o fato apavorante de virem de um candidato à presidência do Brasil.

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Se a interpretação exige um mínimo de conteúdo, o personagem Bolsonaro começa a sorrir amarelo, como um ator pouco competente que esquece as falas segundos antes de entrar em cena. Esse é seu calcanhar de aquiles, a kryptonita que pode derrubá-lo: a sua absoluta falta de conhecimento sobre qualquer coisa que seja relevante para o futuro do país.

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As pessoas querem respostas fáceis, sim. Mas não tão fáceis que nem como respostas consigam convencer. Tire de Bolsonaro seus espantalhos e a tendência é que não sobre muita coisa.

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Menosprezar o candidato do PSL a essa altura do campeonato seria, por certo, uma tolice absoluta. Mas também não nos ajudará em nada achar que a criatura é imbatível – algo que, definitivamente, não é. Esse mesmo Bolsonaro fracassou em obter o apoio do centrão, tão necessário para dar a ele valiosos cabos eleitorais e significativos segundos de rádio e TV. Esse mesmo Bolsonaro enfrenta grandes dificuldades para fechar um vice, algo inusitado para alguém supostamente tão próximo da vitória – nem mesmo Janaína Paschoal, a cada vez mais caricata responsável pelo pedido de impeachment contra Dilma Rousseff, empolgou-se com a ideia de subir no palanque ao lado do mito.

Sua força nas redes sociais é inegável, e sua capacidade de virar centro de todas as discussões relacionadas a direitos fundamentais é para lá de perigosa. Mas ainda está para ser visto até que ponto isso vira apoio na hora da verdade, o quanto isso é capaz de manter viva uma candidatura que estará praticamente ausente das mídias tradicionais, que vai precisar demais das manchetes para não ficar acorrentada às correntes de Whatsapp.

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É preciso expor Bolsonaro aos que, ainda incertos sobre o voto em 7 de outubro, seguem ao alcance sinistro do grito mais alto, da resposta simples ao problema complexo

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Deixar claro que Bolsonaro é feito de vento, e que seus apoiadores, na grande maioria, apenas repetem memes e frases feitas, sem refletir sobre as implicações do que estão dizendo. E me parece fundamental fazer isso com serenidade e frieza – pois a exaltação ou, por outro lado, o deboche são armas que só servem ao culto bolsonarista, independente de quem as esteja empunhando. Para a maioria das pessoas, ironia soa como arrogância, e arrogância desperta imediata antipatia. É preciso fazer o que os jornalistas na bancada do Roda Viva conseguiram poucas vezes fazer, mas sempre com bom resultado: tirar a discussão da gritaria e do bate-boca, reconduzi-la ao embate de ideias. Porque, de ideias, Bolsonaro é um deserto. E quanto mais deserto ele parecer, menos convincente sua figura conseguirá ser.

Pode ser que não dê certo. Afinal, é uma luta dura, e nós já estamos atrasados. Mas é preciso tentar, com firmeza e de forma incansável. A opção é sentar na pracinha e chorar, ou ficar torcendo pelo acomodar das melancias na carroça política nacional – algo que, como temos visto, até pode acontecer, mas está bem longe de ser uma aposta segura.

Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Voos Literários

(Quase) toda a nudez será castigada nas redes sociais

Flávia Cunha
3 de outubro de 2017

A arte nunca esteve tão em evidência. Pena que o motivo seja o conservadorismo, que voltou com força total, com a defesa de que exposições de arte e performances não apresentem transgressões, como a nudez. No país do Carnaval, do fio dental nas praias e dos filmes pornô conhecidos mundo afora, de uma hora para outra parece que ficar pelado em cena ou retratar o sexo nas artes visuais tornou-se um tabu.

Em se tratando de literatura, é bom não esquecer a queima de livros em praça pública em cidades universitárias da Alemanha nazista. Capitaneada pelo governo e com o apoio de jovens (alô, MBL!!), o objetivo era buscar obras que fossem consideradas impuras, decadentes ou degeneradas. Tudo isso, claro, de acordo com o juízo de valor do regime nazista da época.

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Perceberam o perigo que existe na patrulha ideológica da atualidade?

Quem vai considerar o que é arte e o que é “sem vergonhice”?

Qual o critério?

E, principalmente, quem vai estudar a sério o assunto antes de destilar ódio e histeria nas redes sociais?

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No Brasil, Nelson Rodrigues foi um dos que sofreu duras críticas e censura por suas obras, principalmente ao escrever para o teatro. O curioso é ele não era de esquerda nem libertário, autodenominava-se reacionário e chegou a defender o regime militar. Porém, a criação de enredos com questionamento à hipocrisia das famílias tradicionais e recorrentes personagens levados ao incesto, fizeram com que os conservadores ficassem de cabelo em pé com Nelson, classificando-o como um autor maldito.

A terceira peça teatral rodrigueana, Álbum de Família, foi a primeira dele a ser proibida nacionalmente. O espetáculo Senhora dos Afogados também foi censurado e depois liberado. Apenas em São Paulo seguiu sendo proibida na época, por pressão da Liga das Senhoras Católicas. O mesmo fato ocorreu com Perdoa-me por me traíres. Essa liga devia ser muito forte em São Paulo nesse período, pelo jeito.  

A reação de Nelson? Aproveitar a publicidade gerada pela censura para conseguir mais público depois da liberação. É o que podemos ver nesse cartaz da peça Anjo Negro.

Toda nudez será castigada gerou polêmica foi no cinema. O enredo criado por Nelson Rodrigues no filme dirigido por Arnaldo Jabor foi considerado imoral pela censura. Três meses após sua liberação, os rolos da película foram apreendidos em todo o território nacional. Na mesma época, o longa-metragem foi premiado no Festival Internacional de Berlim, sendo então permitida sua exibição nas salas de cinema, com muitos cortes. Hoje, é considerado um dos melhores filmes brasileiros, de acordo com a Associação Brasileira dos Críticos de Cinema.

Moral da história? Os cidadãos de bem têm uma certa miopia para avaliar o que é Arte ou não. Existem longos debates no meio acadêmico justamente com essa questão. Nas minhas incursões no mundo das Letras, participei de muitas aulas onde era avaliado o que faz um texto ser considerado literário. E, só para constar, Nelson Rodrigues faz parte do cânone literário, mesmo tendo sido considerado um “imoral” lá nos idos de 1960/1970.

Geórgia Santos

Quando o Instagram deprime

Geórgia Santos
17 de julho de 2017

Eu larguei o Facebook de mão há muito tempo. É muita tese e lição de moral e mensagens de anjinhos pra o meu gosto. O Twitter é minha rede social preferida, uso basicamente como meu personal gatekeeper. Facilita o acesso às informações de múltiplos portais e empresas de comunicação. Sem contar que não tem espaço pra textão – apesar de o mimimi correr solto. E eu sempre gostei do Instagram. Tá ali, espalhando fotinha bonita pra o mundo e reduzindo a possibilidade de blá blá blá.

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Mas de uns tempos pra cá, a existência do Instagram me deprime e, às vezes, faz com que eu fique de mal comigo

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Isso porque se o meu feed estiver correto, enquanto eu estou sentada em frente ao computador trabalhando ou estudando, a maioria das pessoas ganha dinheiro se divertindo. Enquanto eu estou acima do peso, a maioria das pessoas é sarada. Enquanto eu luto contra espinhas e linhas de expressão (sim, as duas coisas ao mesmo tempo), a maioria das mulheres tem uma pele maravilhosa e impecável. Eu mencionei os abdomens e os drinques?

É verdade que tem sido uma ferramenta interessante de empoderamento e aceitação pra algumas mulheres, como Allison Kimmey, que admiro demais. Mas o que mais vejo é a perfeição esfregada em minha cara. E ao que tudo indica, eu não estou sozinha nesse complexo de instagranidade.

Um relatório divulgado pela UK’s Royal Society for Public Health (RSPH) and the Young Health Movement mostra o impacto das redes sociais na saúde mental de jovens entre 14 e 24 anos. O estudo revelou que o Instagram é a mais prejudicial das redes sociais quanto o assunto é ansiedade, depressão, autoestima e problemas com a própria imagem corporal – seguido por Snapchat e Facebook. Os pesquisadores indicam que os famosos filtros são parte do problema. Algumas meninas inclusive mencionaram que se sentem mais feias que absolutamente todo mundo. Algo que prejudica inclusive o sono das adolescentes.

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Ficar stalkeando também não ajuda quando o assunto é desencanar

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Segundo o estudo, passar horas com o telefone em mãos só agrava o problema, óbvio. Aparentemente, adolescentes que passam mais de duas horas na rede social tem maiores chances de desenvolver algum distúrbio de ansiedade relacionado à autoestima e imagem corporal.

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Lembro da tortura que é passar pela adolescência e não ter a cara e o corpo de quem vai estar na Vogue do próximo mês. E o Instagram não deve melhorar isso…

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É claro que eu exagerei quando falei do impacto que causa em mim. Apesar de ainda ser insegura com relação ao meu corpo (estou trabalhando nisso, no corpo e no psicológico), os meus quase 30 anos me ajudam a perceber que eu não posso me resumir a isso, ao meu tamanho. Sou mais que minhas estrias e celulites. E se eu uso filtros, o resto da humanidade também usa.

Tudo isso pra dizer que talvez a gente precise de menos Instagram e mais vida real. Não é boicote, longe disso, eu ainda gosto de postar minhas fotos por lá e de acompanhar amigos queridos. Inclusive tento postar algo todos os dias sobre experiências positivas que tenho ou simplesmente porque estou me sentindo bem. Só acho que talvez a gente possa usar menos filtros, afinal, não é uma opção na hora de encarar o mundo. E a gurizada que está crescendo diante da tela de um celular precisa saber que a maioria das pessoas não é igual à Kendall Jenner, não tem a pele da Gigi Hadid e não tem o abdômen da Bella Falconi. E tá tudo bem.

Fotos: Pixabay

Geórgia Santos

10 coisas que odeio em vocês, os do Twitter – e em mim

Geórgia Santos
21 de junho de 2017

Fiquei umas duas semanas relativamente afastada do Twitter. É impressionante o nosso poder de não evoluir em duas semanas. E falo de mim, de ti e de vocês, que continuaram no Twitter. Hoje foi a primeira vez em 15 dias que parei efetivamente para ler o que as pessoas estão a dizer no infame microblog e descobri dez coisas que odeio em vocês, os do Twitter – e em mim, claro

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1. Somos malvados

Já perceberam a facilidade que temos pra xingar alguém com base em 140 caracteres? E a gente acha bonito. Retuita e curte e comenta e xinga e fala da bunda daquela, da celulite daquela outra, fulano é ladrão, sicrano é assassino, vai estudar, vai se enxergar, tu não sabe nada, sua ridícula.

2. Somos desonestos intelectualmente

Todo mundo tem uma agenda e não tem nada de errado com isso. Vou escrever e retuitar o que me interessa e colocar as coisas nos meus termos. O problema é quando a gente fala algo sabendo que não é verdade, especialmente quando temos grande audiências. Só um exemplinho de hoje: o deputado estadual Marcel Van Hattem (PP) disse que a repórter Vitória Famer, da Rádio Guaíba, é uma “militante de esquerda radical” e disse que ela tem “postura de militante de extrema esquerda”. Nem vou entrar no mérito da competência da Vitória porque não precisa, mas o deputado Van Hattem é um cara informado e familiarizado com a Ciência Política, até onde sei. Sendo assim, ele sabe que nem a Vera Guasso é extrema esquerda e, mesmo assim, coloca esse rótulo em uma repórter que simplesmente falou algo que ele não gostou. Porque cola com o público dele, pronto. Temos dois problemas aí: ele está atingindo a integridade do trabalho de uma repórter e está fazendo isso com uma afirmação que ele sabe que é não é verdade. E a verdade é que a gente tem uma tendenciazinha a fazer isso com nossas coisas, também. A menos que eu esteja superestimando as pessoas.

PS.: a desonestidade intelectual do deputado acometeu muitos dos seus seguidores, que passaram a atacar a repórter de várias maneiras nas redes sociais. Não estou dizendo que foi a gênese, mas é parte de um fenômeno bizarro. 

3. Somos obcecados com a dupla Grenal

Eu sou gremista, torço, choro, sofro e todo o pacote. Falo de Grêmio, corneteio o colorado e tudo o mais, mas a gente é obcecado. Hoje teve a tal da coluna pedindo pra parar com a corneta, o que foi ridículo. Mas é motivo pra passar o DIA INTEIRO FALANDO DISSO?

4. Somos cegos politicamente

Não precisa de explicação, né? É nosso, é lindo. É deles, é feio. Essa é nossa base política.

5. Não temos senso de humor

Assim como xingamos a galera rapidinho, nos ofendemos com QUALQUER COISA com a mesma velocidade. E não, não estou falando de preconceito, assédio, agressão verbal etc. Estou falando de escrever uma cornetinha, fazer uma piadinha e receber MIL replies de pessoas que precisam de umas 12 horas de sono. É muito ressentimento, muita desconfiança. Por exemplo, meu marido é comentarista esportivo, e no Twitter, QUALQUER coisa que ele diga tem o objetivo de DESTRUIR Grêmio ou Inter (voltando ao ontem 3). Sério mesmo?

6. Juramos ser especialistas

Desse aqui sou culpada até o pescoço. Temos uma necessidade IMPRESSIONANTE  de comentar todo e qualquer evento que aconteça na Via Láctea e juramos ser especialistas de absolutamente tudo. A gente tem certeza que tem as respostas certas e soluções para todos os males do mundo. Preguiiiiiça.

7. Somos preconceituosos

A todo instante é possível ler algum tuíte em que alguém fala mal de gays, estrangeiros, refugiados, mulheres, negros, pobres, ricos, petistas, tucanos, de direita, de esquerda, disso, daquilo. E quando paramos pra pensar, há nenhuma lógica por trás do preconceito puro e simples. É normal ter receio com o desconhecido, afinal, não conhecemos. Mas a quantidade de discursos inflamados sobre o desconhecido é assustadora. A quantidade de discursos inflamados contra a pura e simples existência de determinadas pessoas é desoladora.

8. Somos provincianos

É impressionante como somos atrasados, simples assim. A impressão que dá é que ficamos andando em círculos. Vocês se deram conta que, de uma forma ou outra, ainda rivalizamos sobre a Revolução Farroupilha? Sem falar nesse papo de somos melhores em tudo.

9. Não conseguimos mudar de assunto

É sempre a mesma coisa.

10. Odiamos demais

Quer prova maior do que eu fazer uma lista sobre o que odeio?

 

Igor Natusch

O “voto consciente” perdeu espaço para o protesto. E a culpa é do próprio sistema

Igor Natusch
22 de fevereiro de 2017
Rio de Janeiro - Manifestantes e policiais militares entram em confronto durante protesto no centro da cidade ( Fernando Frazão/Agência Brasil)

Que vivemos tempos de crescente descrença nas instituições e de revoltas quase periódicas nas ruas (e nas redes) de todo o Brasil, é algo que qualquer um pode constatar por si só. Se gostamos ou não do grito de guerra ou da vidraça quebrada presente (ou ausente) na ocasião, a conclusão continua a mesma: muita gente, de diferentes esferas sociais e políticas, resolveu reclamar do que julga incorreto no país. Em resposta, é muito comum que se faça uma defesa do voto como elemento democrático de mudança, quase como se fosse ele o caminho disponível e, mais ainda, o único correto para a manifestação política. Uma fala do ministro do STF Marco Aurélio Mello, dita em entrevista à Veja em 2014, ainda é uma das mais ilustrativas que conheço a esse respeito:

“O local de protesto por excelência é a urna. (…) Não é mediante a apatia nem o protesto extremado que chegaremos no Brasil a dias melhores. Chegaremos com a participação de todos, escolhendo os melhores candidatos. Mais importante do que o “vem para a rua”, que virou moda, é o “vem para a urna”. O protesto eficiente não se faz queimando lixeiras, mas participando da vida pública.”

Considero a fala do ministro equivocada em diferentes níveis. E um tanto simplista em termos de leitura, também.

Fiquemos na prática, sem teorizar muito. “Votar bem”, no Brasil (no mundo?) é cada vez mais difícil, quase impossível em várias situações. E nem tanto pelos candidatos em si: é porque os eleitos, sejam quais forem, têm uma margem de atuação cada vez mais estreita e engessada. Quem nos governa não é (ou é cada vez menos) o presidente, governador, prefeito, deputados ou vereadores: é uma estrutura consolidada de troca de favores, baseada na necessidade de amplas alianças políticas e financiada de forma no mínimo antiética por grandes grupos econômicos e empresariais – que são, no fundo, quem determinam as políticas públicas de médio e longo prazo, obviamente dentro dos próprios campos de interesse.

É um sistema de manutenção de poder e de privilégios, no qual o eleito (use ele uma estrela no peito ou um tucano em sua sigla) tem margem limitada de atuação e quase nenhum espaço para atuar fora dos eixos previamente estabelecidos, por mais que eventualmente deseje. É um problema muito mais sistêmico do que fruto da desonestidade ou incompetência dos eleitos – embora nada disso, é claro, inocente o político corrupto e/ou incompetente de seus fracassos. Meu ponto, aqui, é que o voto individual colide contra um enorme muro que protege os círculos mais altos do poder econômico – o que nos aproxima muito mais de uma plutocracia legitimada pelo voto do que de regimes democráticos de fato. Aqui no Brasil, e em praticamente todo o mundo.

E por que tanta gente protesta – entendendo protesto como algo muito mais comum e numeroso que as manifestações de rua de 2013 ou 2015/16? Porque encontrou no protesto uma forma desesperada talvez, mas muito mais direta e eficiente de atuação política. Coloco fogo em alguns pneus e a companhia elétrica finalmente aparece para consertar a luz na minha rua. Pressiono deputados na Assembleia e eles, de vez em quando, recuam em algumas decisões polêmicas. Eu protesto nas ruas e, às vezes, até reverto o aumento de passagem nos ônibus. Protesto não conquista tudo (e o visível aumento na repressão violenta aos protestos indica claramente a disposição de anular esse modelo de reivindicação), mas é onde as pessoas se sentem capazes de uma atuação política de resultados visíveis. Elas simplesmente detectaram, ao natural, o que a reflexão pode nos mostrar de forma talvez mais elaborada: que o nosso sistema político funciona cada vez menos.

Não é que votar não preste para nada. No mínimo, é algo que deve ser feito com grande responsabilidade, pois ainda é o mecanismo para definir quem, individualmente, estará em nossas casas representativas. E é bem melhor ter um Congresso pavoroso, mas eleito no voto, do que um definido autocraticamente por um tirano de ocasião. Ainda assim, a lógica do excelentíssimo ministro me parece distorcida. Votar, cada vez mais, para o bem e para o mal, é um gesto acessório; o que marca nosso atual momento é a ação política direta, seja elaborada ou ingênua, seja fechando ruas ou gritando contra um determinado partido nas redes sociais. E a culpa, se é que podemos falar em culpa, não é de quem incendeia a lixeira ou de quem quer o fantoche reacionário como Presidente da República: é do nosso sistema engessado, contaminado pelo poder financeiro, que se afunda mais e mais em descrédito para que indivíduos possam salvar a própria pele. A política representativa, no Brasil (no mundo?) precisa mudar muito, mas muito mesmo para reverter esse jogo. E não é falando em “votar bem” que vamos conseguir evitar qualquer desdobramento negativo. Por um simples motivo: antes de pedir um “voto consciente”, é preciso criar um cenário onde ele possa, de fato, ter eficiência.

Geórgia Santos

A morte de Marisa e os lados da ignorância

Geórgia Santos
7 de fevereiro de 2017
Foto: Paulo Pinto - Agência PT

Em inúmeras ocasiões pensei que o ser humano não poderia ser mais torpe. E não falo de ações individuais de um serial killer, falo do inconsciente coletivo, mesmo. De ações de massa. Mas em (quase) todas essas ocasiões eu fui surpreendida: nós sempre podemos descer mais um pouquinho. E as reações à doença e morte da ex-primeira dama Marisa Letícia  e suas consequências foram o exemplo perfeito do quão pequenos podemos ser.

Aos 67 anos, a esposa do ex-presidente Lula sofreu um AVC e permaneceu internada por dias no hospital Sírio-Libranês, em São Paulo. Bastou a primeira linha da primeira notícia para as redes sociais serem inundadas por CELEBRAÇÕES. Sim, houve quem comemorasse o derrame de uma mãe, de uma avó, de uma companheira, de uma amiga, de uma pessoa. Bestas latiam enquanto se deleitavam com o sofrimento da “ladra” – o adjetivo mais leve dirigido à enferma. Houve, também, manifestações de solidariedade, mas essas foram apagadas pela enxurrada de ódio, que exigia resposta dos solidários.

Quando a morte de Marisa foi confirmada, na última sexta-feira (3), a canalhice continuou. Memes de péssimo gosto circulavam pelos celulares via WhatsApp, eram compartilhados no Facebook e enaltecidos por insensíveis.

A ignorância não tem fim, pensei eu. Triste.

Mas os insultos não estavam restritos às redes e pequenos grupos. Tampouco a quem detesta o PT e o que ele representa. Pelo contrário, eles estavam por todos os lados. Mas com alvos diferentes. Durante o velório da ex-primeira dama, um repórter da TV Globo não apenas foi impedido de trabalhar por quem frequentou a cerimônia como foi agredido física e verbalmente. “Assassino”, gritavam. Creditando o AVC sofrido por Marisa ao trabalho da mídia tradicional que, segundo eles, estava empenhada em acabar com Lula. Episódio similar ocorrera um dia antes quanto Michel Temer prestou solidariedade ao ex-presidente com uma visita ao hospital. Ele também fora chamado de assassino.

A ignorância se perpetua, pensei eu. Cada vez mais desiludida.

Então chegou o momento em que Lula discursou ao lado do caixão da esposa. Com os olhos vermelhos e lavados, lembrou da vida que construíram juntos e enalteceu a mulher. Terminou, no entanto, em tom surpreendente: “Marisa morreu triste”, disse ele, que explicou que a mulher estava sofrendo com o que ele chamou de perseguição. Achei inadequado, sim. Mas quem sou eu para dizer como um homem em luto deve se comportar? Como disse um amigo, se existe alguém, nessa história toda, que tinha justificativa para ser inadequado diante de tudo o que está acontecendo, esse alguém é Lula. Não por uma questão política, não está em jogo se é homem bom ou não, se roubou ou não, se foi bom ou mau presidente. Mas por uma questão humana. É um homem que acabou de perder a companheira de uma vida toda.

Porém, não há perdão. Rapidamente uma colunista que prefiro não citar o nome se apropria da situação e escreve: “Case com alguém que não vá fazer comício no seu velório quando chegar a hora.” Ora, é muito baixo. Crítico de velório é demais pra minha cabeça.

De fato, é desumano celebrar a morte de Marisa. É torpe chamar repórter de assassino. E baixo usar a morte politicamente.

A ignorância não escolhe lado.