Geórgia Santos

10 coisas que odeio em vocês, os do Twitter – e em mim

Geórgia Santos
21 de junho de 2017

Fiquei umas duas semanas relativamente afastada do Twitter. É impressionante o nosso poder de não evoluir em duas semanas. E falo de mim, de ti e de vocês, que continuaram no Twitter. Hoje foi a primeira vez em 15 dias que parei efetivamente para ler o que as pessoas estão a dizer no infame microblog e descobri dez coisas que odeio em vocês, os do Twitter – e em mim, claro

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1. Somos malvados

Já perceberam a facilidade que temos pra xingar alguém com base em 140 caracteres? E a gente acha bonito. Retuita e curte e comenta e xinga e fala da bunda daquela, da celulite daquela outra, fulano é ladrão, sicrano é assassino, vai estudar, vai se enxergar, tu não sabe nada, sua ridícula.

2. Somos desonestos intelectualmente

Todo mundo tem uma agenda e não tem nada de errado com isso. Vou escrever e retuitar o que me interessa e colocar as coisas nos meus termos. O problema é quando a gente fala algo sabendo que não é verdade, especialmente quando temos grande audiências. Só um exemplinho de hoje: o deputado estadual Marcel Van Hattem (PP) disse que a repórter Vitória Famer, da Rádio Guaíba, é uma “militante de esquerda radical” e disse que ela tem “postura de militante de extrema esquerda”. Nem vou entrar no mérito da competência da Vitória porque não precisa, mas o deputado Van Hattem é um cara informado e familiarizado com a Ciência Política, até onde sei. Sendo assim, ele sabe que nem a Vera Guasso é extrema esquerda e, mesmo assim, coloca esse rótulo em uma repórter que simplesmente falou algo que ele não gostou. Porque cola com o público dele, pronto. Temos dois problemas aí: ele está atingindo a integridade do trabalho de uma repórter e está fazendo isso com uma afirmação que ele sabe que é não é verdade. E a verdade é que a gente tem uma tendenciazinha a fazer isso com nossas coisas, também. A menos que eu esteja superestimando as pessoas.

PS.: a desonestidade intelectual do deputado acometeu muitos dos seus seguidores, que passaram a atacar a repórter de várias maneiras nas redes sociais. Não estou dizendo que foi a gênese, mas é parte de um fenômeno bizarro. 

3. Somos obcecados com a dupla Grenal

Eu sou gremista, torço, choro, sofro e todo o pacote. Falo de Grêmio, corneteio o colorado e tudo o mais, mas a gente é obcecado. Hoje teve a tal da coluna pedindo pra parar com a corneta, o que foi ridículo. Mas é motivo pra passar o DIA INTEIRO FALANDO DISSO?

4. Somos cegos politicamente

Não precisa de explicação, né? É nosso, é lindo. É deles, é feio. Essa é nossa base política.

5. Não temos senso de humor

Assim como xingamos a galera rapidinho, nos ofendemos com QUALQUER COISA com a mesma velocidade. E não, não estou falando de preconceito, assédio, agressão verbal etc. Estou falando de escrever uma cornetinha, fazer uma piadinha e receber MIL replies de pessoas que precisam de umas 12 horas de sono. É muito ressentimento, muita desconfiança. Por exemplo, meu marido é comentarista esportivo, e no Twitter, QUALQUER coisa que ele diga tem o objetivo de DESTRUIR Grêmio ou Inter (voltando ao ontem 3). Sério mesmo?

6. Juramos ser especialistas

Desse aqui sou culpada até o pescoço. Temos uma necessidade IMPRESSIONANTE  de comentar todo e qualquer evento que aconteça na Via Láctea e juramos ser especialistas de absolutamente tudo. A gente tem certeza que tem as respostas certas e soluções para todos os males do mundo. Preguiiiiiça.

7. Somos preconceituosos

A todo instante é possível ler algum tuíte em que alguém fala mal de gays, estrangeiros, refugiados, mulheres, negros, pobres, ricos, petistas, tucanos, de direita, de esquerda, disso, daquilo. E quando paramos pra pensar, há nenhuma lógica por trás do preconceito puro e simples. É normal ter receio com o desconhecido, afinal, não conhecemos. Mas a quantidade de discursos inflamados sobre o desconhecido é assustadora. A quantidade de discursos inflamados contra a pura e simples existência de determinadas pessoas é desoladora.

8. Somos provincianos

É impressionante como somos atrasados, simples assim. A impressão que dá é que ficamos andando em círculos. Vocês se deram conta que, de uma forma ou outra, ainda rivalizamos sobre a Revolução Farroupilha? Sem falar nesse papo de somos melhores em tudo.

9. Não conseguimos mudar de assunto

É sempre a mesma coisa.

10. Odiamos demais

Quer prova maior do que eu fazer uma lista sobre o que odeio?

 

Geórgia Santos

Nosso muro particular – O fim do Ciência Sem Fronteiras

Geórgia Santos
4 de abril de 2017

Passamos horas debatendo o absurdo do muro que Donald Trump pretende construir para separar os Estados Unidos do México. É um tema quase querido, digamos assim, como se de estimação. Mas esquecemos do nosso pequeno muro particular. Não, Michel Temer não pretende empilhar tijolos para isolar o Brasil de qualquer vizinho que seja, mas ele está, sim, se empenhando em construir uma parede invisível que nos afasta do resto do mundo com o fim do Ciência Sem Fronteiras.

“A justificativa é falta de dinheiro, claro, como se fosse explicação para tudo”

No último final de semana foi confirmada a extinção do programa que financiava o intercâmbio de estudantes de graduação brasileiros em outros países. A justificativa é falta de dinheiro, claro, como se fosse explicação para tudo. O governo alega que o programa deixou dívidas (?) e que os alunos beneficiados não deixaram resultados expressivos em suas universidade – e aqui a vontade é de colocar um milhão de pontos de interrogação.

Há tantas perguntas que me faço ao ouvir essas pseudojustificativas. Que dívidas? Com quem? O que são resultados expressivos? Qual seria a resposta adequada dos alunos? Em quanto tempo esses resultados deveriam aparecer? Quais são esses resultados? Dinheiro? Pesquisa? Enfim. Eu passaria o dia todo fazendo perguntas. A questão é que o governo deixa claro que trata a educação como negocio e não como uma ferramenta transformadora de – preste atenção nisso – longo prazo.

Eu tenho relativa experiência com estudo no exterior. Fiz um mestrado em Portugal e agora estou como pesquisadora visitante nos Estados Unidos. Essa jornada começou em 2013, há quatro anos, quando fui uma das escolhidas pelo Instituto Ling para participar do programa Jornalista de Visão, que oferta bolsas de mestrado no exterior. Somente agora começo a devolver um pouco, muito pouco, do que me foi ofertado. Seja por meio da minha pesquisa sobre mídia, protestos e democracia no Brasil ou por meio deste que Vós fala.

O governo quer resultados imediatos? Quer retorno financeiro? Quer pesquisas que comecem e terminem em meses? Bom, isso não existe.

O muro invisível de Temer isola jovens ansiosos e brilhantes. Evita o crescimento que só o diferente pode nos ofertar. Impede que alunos curiosos evoluam fora de sua bolha a menos que tenham condições financeiras para tal – e sabemos que a maioria dos brasileiros não tem.

Digo isso, no entanto: tenha certeza, senhor Doutor Michel Temer, que os “resultados expressivos” aparecerão em alguns anos. O conhecimento daqueles que foram o senhor não pode extinguir.

 

 

 

Geórgia Santos

Oscar 2017 – O erro não precisava ter sido agora

Geórgia Santos
27 de fevereiro de 2017

Houve erros em edições anteriores do Oscar, mas nenhum como o que ocorreu no último domingo. Faye Dunaway e Warren Beatty anunciaram La La Land como vencedor na categoria de melhor filme quando, na verdade, o ganhador era Moonlight. Bafão.

Mas a culpa não foi dos eternos Bonnie and Clyde, e sim de um dos responsáveis pelos envelopes. Acontece que um funcionário da empresa responsável pela contagem dos votos entregou o papel errado a Beatty.  O veterano claramente ficou confuso ao ler o conteúdo do envelope, mas a confusão foi interpretada como uma tentativa de fazer graça. Não era. Ele tinha em mãos o envelope de melhor atriz, cuja vencedora era Emma Stone, de La La Land. Daí o problema.

Mas erros acontecem. Geralmente não no anúncio de melhor filme do Oscar, mas acontecem. Só não precisava ter sido neste ano. Não neste ano.

Críticas a Trump

O tempo todo, a cerimônia foi permeada por críticas ao presidente dos Estados Unidos, Donald Trump (ainda é estranho dizer isso, por sinal). Todas merecidas. Meryl Streep foi a estrela, com sua atuação superestimada; Gael García Bernal, que é mexicano, declarou ser contra “qualquer tipo de muro” que possa dividir as pessoas; e Asghar Farhadi, o diretor iraniano que levou o prêmio de melhor filme estrangeiro com O Apartamento, enviou uma mensagem em que afirmava não estar presente “por respeito às pessoas do meu país e dos outros seis países que foram desrespeitados pela lei dos Estados Unidos, que proíbe a entrada no país”.

Portanto, também foi uma cerimônia bastante política. Sem contar com as sacadas interessantíssimas de Jimmy Kimmel ao longo da premiação, que chegou a mandar um tuíte a Donald Trump, perguntando se ele estava acordado – já que ainda não havia se manifestado sobre os recados dados pelos artistas.

“Absolutamente todas as manifestações contra Trump foram legítimas e fundamentadas”

 

Até que o erro aconteceu e era basicamente tudo o que Trump queria e precisava. Segundo ele, a confusão aconteceu porque eles estavam mais focados em política que na festa em si. Não deixa de ter certa razão, afinal, alguém se distraiu em algum momento. Por outro lado, absolutamente todas as manifestações contra Trump foram legítimas e fundamentadas. Tudo o que foi dito naquele palco foi com base nos atos espúrios do presidente dos EUA. E todos sabem disso.

Por isso esse erro não poderia ter acontecido agora. Porque tirou a força dos protestos emocionantes que testemunhamos na noite de domingo e que mereciam ser destaque na mídia internacional. O acontecido serviu para que o presidente voltasse ao Twitter com recadinhos infames à imprensa norte-americana. Isso depois de banir repórteres das coletivas de imprensa com base naquilo que ele gosta que seja dito ou não. Como bem disse John Stewart, está na hora de a mídia romper o relacionamento com Donald Trump, deixar de lado essa obsessão, sem mimimi, e procurar um hobby. Ele recomenda jornalismo.

Geórgia Santos

Justiça censura reportagem da Folha e está tudo bem

Geórgia Santos
13 de fevereiro de 2017
Divulgação: Palácio do Planalto

“ – Estamos em 2017 e vivemos em um país democrático em que imprensa é livre. Certo?”

  – Bom, de certo, nessa frase, somente o ano.

  – Como assim, a gente não vive em um país democrático, ao menos?

  – Em tese, sim, mas superficialmente falando, uma coisa deve estar ligada a outra e, ao que parece, a imprensa brasileira não é mais livre.

  – Hã?”

O diálogo é fictício, mas o conteúdo é a nossa mais pura (dura) realidade. Na tarde de hoje, 13 de fevereiro, o jornal Folha de São Paulo denunciou o fato de que a Justiça censurou uma reportagem a pedido do Palácio do Planalto. Uau, isso é grave.

Segundo informações do jornal, a matéria tratava de uma tentativa de extorsão sofrida pela primeira-dama Marcela Temer no ano passado. Liminar concedida pelo juiz Hilmar Castelo Branco Raposo Filho, da 21ª Vara Cível de Brasília, impede que a Folha  publique qualquer informação sobre o ocorrido. Um hacker teve acesso aos dados do celular da primeira-dama e usou o conteúdo para chantageá-la. A petição foi assinada pelo advogado Gustavo do Vale Rocha, subchefe da Casa Civil, em nome da esposa de Michel Temer.

O Grupo Folha, por sua vez, vai recorrer da decisão. Em nota publicada pelo jornal, o diretor jurídico da publicação, Orlando Molina, diz que se trata de um atentado contra a liberdade de imprensa e que a ação se configura como censura. Já Michel Temer nega que se trate de censura. “Não houve isso, você sabe que não houve”, disse aos jornalistas.

A verdade é que a essa altura pouco importa a opinião do excelentíssimo presidente. É censura, sim. Um veículo de comunicação foi impedido de publicar uma reportagem com o argumento de resguardar a intimidade. Mas pera aí, foi a Folha que invadiu o celular de Marcela?  Os dados divulgados pela reportagem são falsos? O conteúdo foi inventado? A notícia é mentirosa? Não. Não para todas as perguntas. A reportagem apenas divulgou informações tornadas PÚBLICAS pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Você também pode ter acesso a esses dados, os processos são os seguintes: 0000057-20.2017.8.26.0520, 0036961-28.2016.8.26.0050 e 0032415-27.2016.8.26.0050.

“Os jornalistas convivem com censura todos os dias”

O é que não é um caso isolado. Ano passado, um juiz paranaense ordenou a quebra de sigilo de uma jornalista que não quis divulgar suas fontes – algo protegido pela Constituição. A verdade é que os jornalistas convivem com censura todos os dias. Dentro da empresa, quando sua ideologia não fecha com a do patrão. Na rua, quando é agredido pela política em protestos – e até por manifestantes que veem o profissional como uma extensão do veículo em que trabalham. Quando é impedido de fazer seu trabalho, independente do motivo.

E o mais incrível é que há jornais que contribuem diariamente para o reforço da censura. A própria Folha fez isso quando divulgou um editorial extremamente questionável, para dizer o mínimo, em que endossa a violência da PM contra manifestantes e, de quebra, contra jornalistas. Afinal, segundo a ABRAJI (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), houve mais de 300 violações contra jornalistas durante os protestos de 2013.

Sem contar que a cada ano que passa, perdemos posições em rankings de liberdade de imprensa. Segundo a ONG Repórteres Sem Fronteiras, ocupávamos o 58º lugar em 2010. Hoje, estamos na 104ª posição. Que bela queda, hein. E isso que eu nem falei da autocensura, movida pelo medo, pelo temor de uma mão invisível.

Não sei quanto a vocês, mas tudo isso me faz pensar que estamos cada vez mais distantes de uma democracia e liberdade de imprensa ideais. E mais, seguimos nos enganando, como se fosse normal, como se estivesse tudo bem.

Geórgia Santos

A morte de Marisa e os lados da ignorância

Geórgia Santos
7 de fevereiro de 2017
Foto: Paulo Pinto - Agência PT

Em inúmeras ocasiões pensei que o ser humano não poderia ser mais torpe. E não falo de ações individuais de um serial killer, falo do inconsciente coletivo, mesmo. De ações de massa. Mas em (quase) todas essas ocasiões eu fui surpreendida: nós sempre podemos descer mais um pouquinho. E as reações à doença e morte da ex-primeira dama Marisa Letícia  e suas consequências foram o exemplo perfeito do quão pequenos podemos ser.

Aos 67 anos, a esposa do ex-presidente Lula sofreu um AVC e permaneceu internada por dias no hospital Sírio-Libranês, em São Paulo. Bastou a primeira linha da primeira notícia para as redes sociais serem inundadas por CELEBRAÇÕES. Sim, houve quem comemorasse o derrame de uma mãe, de uma avó, de uma companheira, de uma amiga, de uma pessoa. Bestas latiam enquanto se deleitavam com o sofrimento da “ladra” – o adjetivo mais leve dirigido à enferma. Houve, também, manifestações de solidariedade, mas essas foram apagadas pela enxurrada de ódio, que exigia resposta dos solidários.

Quando a morte de Marisa foi confirmada, na última sexta-feira (3), a canalhice continuou. Memes de péssimo gosto circulavam pelos celulares via WhatsApp, eram compartilhados no Facebook e enaltecidos por insensíveis.

A ignorância não tem fim, pensei eu. Triste.

Mas os insultos não estavam restritos às redes e pequenos grupos. Tampouco a quem detesta o PT e o que ele representa. Pelo contrário, eles estavam por todos os lados. Mas com alvos diferentes. Durante o velório da ex-primeira dama, um repórter da TV Globo não apenas foi impedido de trabalhar por quem frequentou a cerimônia como foi agredido física e verbalmente. “Assassino”, gritavam. Creditando o AVC sofrido por Marisa ao trabalho da mídia tradicional que, segundo eles, estava empenhada em acabar com Lula. Episódio similar ocorrera um dia antes quanto Michel Temer prestou solidariedade ao ex-presidente com uma visita ao hospital. Ele também fora chamado de assassino.

A ignorância se perpetua, pensei eu. Cada vez mais desiludida.

Então chegou o momento em que Lula discursou ao lado do caixão da esposa. Com os olhos vermelhos e lavados, lembrou da vida que construíram juntos e enalteceu a mulher. Terminou, no entanto, em tom surpreendente: “Marisa morreu triste”, disse ele, que explicou que a mulher estava sofrendo com o que ele chamou de perseguição. Achei inadequado, sim. Mas quem sou eu para dizer como um homem em luto deve se comportar? Como disse um amigo, se existe alguém, nessa história toda, que tinha justificativa para ser inadequado diante de tudo o que está acontecendo, esse alguém é Lula. Não por uma questão política, não está em jogo se é homem bom ou não, se roubou ou não, se foi bom ou mau presidente. Mas por uma questão humana. É um homem que acabou de perder a companheira de uma vida toda.

Porém, não há perdão. Rapidamente uma colunista que prefiro não citar o nome se apropria da situação e escreve: “Case com alguém que não vá fazer comício no seu velório quando chegar a hora.” Ora, é muito baixo. Crítico de velório é demais pra minha cabeça.

De fato, é desumano celebrar a morte de Marisa. É torpe chamar repórter de assassino. E baixo usar a morte politicamente.

A ignorância não escolhe lado.

Geórgia Santos

Meia-noite ainda não chegou mas a legalidade já virou abóbora

Geórgia Santos
12 de setembro de 2016

Era uma vez uma jovem chamada Democracia.

Linda, era daquele tipo de mulher que contagia, sabe? Uma brasileira voluptuosa de cerca de 30 anos com um poder hipnotizador. Com aquele sorriso largo, cheio de dentes e significado, ela dominava qualquer ambiente. Parecia quase uma justiceira, uma Mulher Maravilha em roupas mais discretas, talvez, mas sempre com o laço da verdade.

Ela era do tipo que acreditava realmente na igualdade, dizia que somente na igualdade nossa sociedade pode evoluir. Mais do que isso, ouvia a todos com a mesma atenção enquanto pregava que a liberdade de expressão é a mãe de todas as liberdades. Ela era tão livre que costumava sair correndo por aí, deixando sua marca por onde quer que passasse. Mas ela detestava atalhos. Ah, como detestava.

Mas esse caráter afável e altivo da Democracia a deixava vulnerável. Ela confiava e abraçava a todos mas nem todos o faziam com sinceridade. No discurso, eram amigos, mas pelas costas, o jeito faceiro dessa mulher inteligente e intensa, com os lábios sempre pintados de vermelho, incomodava aos que preferem uma moça recatada e do lar.

Em público, era a namoradinha do Brasil. Mas a portas fechadas, diziam que não é pra casar.

Todo o cinismo a deixou frágil a ponto de ela se tornar refém de sua madrasta, dona Câmara, que tinha duas filhas muito malvadas, chamadas Corrupção e Farsa. Ah, como elas a maltratavam. Dona Câmara fazia dela um joguete, usava seu nome quando considerava conveniente, mas não tinha a menor consideração por ela, o menor cuidado. E suas irmãs não perdiam a oportunidade de a destruir. Corrupção e Farsa constantemente espancavam Democracia diante de todos, que assistiam atônitos ao espetáculo. Rasgavam sua roupa, machucavam seu corpo e cometiam os abusos mais atrozes.

Depois de muito sangrar, porém, Democracia se reergueu. Com a ajuda de tantos admiradores que jamais deixaram de acreditar, ela percebeu que podia confiar no futuro. Justiça, a fada madrinha, preparou-a para uma nova vida. Pegou uma abóbora, transformou-a em bicicleta mágica e chamou de Legalidade.

Por um tempo,  a Legalidade conduziu Democracia. Por caminhos tortos às vezes, é verdade, mas elas sempre chegavam ao destino.

Justiça não avisou, no entanto, que Legalidade sucumbiria eventualmente.E todos descobriram da maneira mais dura.

Meia-noite ainda não chegou, mas Legalidade já virou abóbora e Democracia está ferida.

(Espero que não seja o Fim)

Geórgia Santos

R.I.P. Jornalismo ou (Você não pode achar isso normal)

Geórgia Santos
12 de setembro de 2016

Em 2013, os brasileiros foram surpreendidos com protestos massivos, que reuniam milhares e milhares de pessoas nas ruas de inúmeras cidades do país. Quem preferiu testemunhar do sofá, via a tudo estático, extasiado, empolgado e até assustado. Em grande parte, foram transmitidos em tempo real em canais de notícias da TV Fechada, especialmente a GloboNews. Até que alguém cunhou uma frase que resumia bem a situação: “O gigante acordou”. As pessoas, de repente, lembraram que a rua era, sim, lugar de protesto e reivindicação. E mesmo um público tão heterogêneo como aquele poderia querer a mesma coisa.

Ao longo desses últimos três anos, muita coisa aconteceu. Muitos protestos também. E com eles, muitos repertórios de reivindicação pertencentes a uma gama ampla e diversa (cartazes, gritos, apitos, depredação etc). Foi contra o governo em 2013, contra a Copa em 2014, contra Dilma em 2015, contra e a favor do Impeachment em 2016.

Com relação a esses últimos, a grande imprensa teve uma reação quase orgásmica. Deleitava-se com os protestos que fazia questão de dizer que eram pacíficos enquanto mostrava fotografias de criancinhas abraçadas em policiais e babás empurrando os carrinhos do bebê. Mas tudo bem, manifestação mais do que legítima e definitivamente expressiva (alguns falam na casa do milhão, mas as fotos são contraditórias. Deixemos assim).

Já sobre protestos contra impeachment, o foco da mídia é a “destruição”. Milhares de pessoas tomam as ruas, mas o mais importante é confronto com a polícia. Milhares estão indignados com a situação política, mas o grupo de 10 vândalos tem mais destaque. Uma menina ficou cega, mas o absurdo está em queimar contêiner.

Que seja. It happens.

Mas nada foi como que o jornal O Estado de São Paulo fez hoje.

Ontem (04), mais de cem mil pessoas saíram às ruas da capital paulista (e outras cidades do Brasil) para protestar contra o novo “presidente”, Michel Temer, que havia dito que havia umas 40 pessoas na rua. O “Fora Temer” ecoava pelo país inteiro em um grito pacífico. Sim, pacífico. Sem quebradeira, sem vandalismo, sem incêndio.

Sabe qual foi a capa do jornal O Estado de São Paulo nesta segunda-feira, dia 05?

A CANONIZAÇÃO DE MADRE TERESA DE CALCUTÁ.

Meia dúzia de palavras sobre o protesto em uma nota microscópica que ressalta um tumulto inexistente e nenhuma foto.

Em outros periódicos, frisaram o “confronto” que ocorreu no final do protesto. Detalhe, não houve confronto, apenas uma ação arbitrária da polícia, que usou bombas de gás para dispersar o público que não fez absolutamente nada a não ser gritar. Além, é claro, do jornalista agredido gratuitamente por policiais.

Se os manifestantes choraram a morte da democracia, eu registro aqui meu pesar pelo falecimento do jornalismo.