Igor Natusch

Povo unido protesta, com ou sem partido

Igor Natusch
5 de abril de 2017
Diretas Já em Porto Alegre. Foto: Alfonso Abraham

A imagem que ilustra a matéria foi registrada em 13 de abril de 1984, durante o movimento de Diretas Já em Porto Alegre – uma manifestação que, imagino eu, a maioria dos leitores e leitoras considerará, no mínimo, legítima. É possível enxergar com certa facilidade bandeiras do PDT, PCB e PMDB na foto – siglas que, à época, eram identificadas com o campo progressista e de oposição à ditadura. Ao ver essa imagem nas recordações de Facebook, durante a semana passada, voltei a fazer uma reflexão sobre os gritos de “povo unido protesta sem partido”, tão comuns em mobilizações de rua nos últimos anos, vindos tanto de gente mais à esquerda quanto de conservadores e direitistas.

É óbvio que estamos diante de cenários muito diferentes, mas ainda assim acho válido o questionamento. Faria algum sentido dizer que trabalhistas e comunistas teriam “cooptado” a manifestação de Diretas Já a seu favor, ou que sua presença abalou a legitimidade do protesto? Faria sentido, para os que protestaram na época, dizer que “povo protesta sem partido”? E por que isso faz todo o sentido agora, para tanta gente, sendo que os partidos políticos seguem sendo (ao menos em teoria) basicamente o que eram naqueles tempos: catalisadores da vontade de determinados grupos sociais, traduzindo em projetos e bandeiras os anseios de fatias significativas da população nacional?

Há, como bem se sabe, uma onda forte de descrédito quanto à política institucional. Quando alguém grita exigindo que as bandeiras sejam baixadas durante um protesto, está basicamente manifestando essa descrença, essa sensação de que os partidos preocupam-se apenas com as próprias conveniências e nada mais. No entanto, essa revolta traz entre suas características uma ausência de resposta implícita, já que dela não surge (ou ainda não surgiu) um caminho que melhore essas estruturas, que traga uma democracia institucional mais sólida e menos corrompida. Não é necessariamente um erro, diga-se: é mais um sintoma da ausência de reflexão por trás da maior parte das vozes que participam desses gritos. As alternativas, quando surgem, ou são articuladas de forma ingênua (voto em pessoas, não em partidos) ou propondo o abandono completo da esperança democrática, como nos cada vez menos constrangidos gritos por intervenção militar. Não são as únicas, mas são as vozes que ganham força em um cenário onde a indignação surge sem base, como água que brota do chão e não se sabe para qual lado irá correr.

Não tenho e nunca tive partido político. Sou crítico do atual modelo político brasileiro e um moderado descrente das possibilidades da política partidária como um todo, especialmente no sentido de promover verdadeiras mudanças de modelo e de sociedade. Não me sinto plenamente representado por nenhuma das bandeiras de partidos políticos que estiveram (ou estão) presentes em manifestações pelo País, e penso que precisamos de uma reformulação profunda no cenário partidário, no mínimo. Ainda assim, acho que esse tipo de grito traz em si a semente de um equívoco, acho errado querer impedir que partidos políticos se digam presentes nas ruas, em meio à massa humana que reclama de alguma coisa.

Essa demanda de “povo sem partido” pode ser espontânea, mas sua formulação em grito de guerra não é ingênua e desinteressada. É filhote de setores que acreditam existir na política partidária (em especial a de esquerda) uma tendência ao crime, à desonestidade e à criação de tensão social, entre outras coisas. Quem tradicionalmente pede que partidos fiquem de fora das manifestações populares é quem é contrário à ação política como um todo – e isso favorece quem se beneficia da despolitização coletiva para manter o poder de fato em suas mãos. Ao gritar que o “povo protesta sem partido”, está se reforçando a ideia de que um protesto “puro” só existe na completa ausência de mobilização partidária. Ou então está sendo defendida, mesmo que de forma inconsciente, uma noção de que o povo está intrinsecamente distante da articulação política, como algo que é “deles” e que nos contamina caso tenhamos contato com isso. Em última análise, são argumentos que jogam a favor do status quo e contra qualquer tentativa, institucional ou não, de mudança. Gostem ou não da política partidária, ela ainda é e possivelmente seguirá sendo um meio importante de atuação, e não me parece interessante (mesmo eu sendo, como apontei, um crítico do modelo) que ela seja deslegitimada desse modo.

A verdade, gostem ou não, é que povo simplesmente protesta, com ou sem partido. Evitem a proximidade com grupos político-partidários, se discordam deles; não aceitem suas sugestões, ignorem, mantenham distância. Mas não sejam ingênuos, atuando a favor de forças que, se tiverem chance, não hesitarão em calar as próprias vozes que as conclamam.

Foto: Alfonso Abraham

Geórgia Santos

R.I.P. Jornalismo ou (Você não pode achar isso normal)

Geórgia Santos
12 de setembro de 2016

Em 2013, os brasileiros foram surpreendidos com protestos massivos, que reuniam milhares e milhares de pessoas nas ruas de inúmeras cidades do país. Quem preferiu testemunhar do sofá, via a tudo estático, extasiado, empolgado e até assustado. Em grande parte, foram transmitidos em tempo real em canais de notícias da TV Fechada, especialmente a GloboNews. Até que alguém cunhou uma frase que resumia bem a situação: “O gigante acordou”. As pessoas, de repente, lembraram que a rua era, sim, lugar de protesto e reivindicação. E mesmo um público tão heterogêneo como aquele poderia querer a mesma coisa.

Ao longo desses últimos três anos, muita coisa aconteceu. Muitos protestos também. E com eles, muitos repertórios de reivindicação pertencentes a uma gama ampla e diversa (cartazes, gritos, apitos, depredação etc). Foi contra o governo em 2013, contra a Copa em 2014, contra Dilma em 2015, contra e a favor do Impeachment em 2016.

Com relação a esses últimos, a grande imprensa teve uma reação quase orgásmica. Deleitava-se com os protestos que fazia questão de dizer que eram pacíficos enquanto mostrava fotografias de criancinhas abraçadas em policiais e babás empurrando os carrinhos do bebê. Mas tudo bem, manifestação mais do que legítima e definitivamente expressiva (alguns falam na casa do milhão, mas as fotos são contraditórias. Deixemos assim).

Já sobre protestos contra impeachment, o foco da mídia é a “destruição”. Milhares de pessoas tomam as ruas, mas o mais importante é confronto com a polícia. Milhares estão indignados com a situação política, mas o grupo de 10 vândalos tem mais destaque. Uma menina ficou cega, mas o absurdo está em queimar contêiner.

Que seja. It happens.

Mas nada foi como que o jornal O Estado de São Paulo fez hoje.

Ontem (04), mais de cem mil pessoas saíram às ruas da capital paulista (e outras cidades do Brasil) para protestar contra o novo “presidente”, Michel Temer, que havia dito que havia umas 40 pessoas na rua. O “Fora Temer” ecoava pelo país inteiro em um grito pacífico. Sim, pacífico. Sem quebradeira, sem vandalismo, sem incêndio.

Sabe qual foi a capa do jornal O Estado de São Paulo nesta segunda-feira, dia 05?

A CANONIZAÇÃO DE MADRE TERESA DE CALCUTÁ.

Meia dúzia de palavras sobre o protesto em uma nota microscópica que ressalta um tumulto inexistente e nenhuma foto.

Em outros periódicos, frisaram o “confronto” que ocorreu no final do protesto. Detalhe, não houve confronto, apenas uma ação arbitrária da polícia, que usou bombas de gás para dispersar o público que não fez absolutamente nada a não ser gritar. Além, é claro, do jornalista agredido gratuitamente por policiais.

Se os manifestantes choraram a morte da democracia, eu registro aqui meu pesar pelo falecimento do jornalismo.