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BSV Especial Coronavírus #18 “Você sabe com quem está falando?”

Geórgia Santos
27 de julho de 2020

Nós estamos preocupados com os rumos do Brasil e da pandemia do novo coronavírus. Mas nem todo mundo está. Há quem esteja mais preocupado em manter o status, seja lá o que isso significa. O brasileiro sem conviveu com o famigerado, “Você sabe com quem está falando?” Mas agora essa estupidez elitista foi transplantada para a pandemia. Inclusive oficialmente. Élcio Franco Filho, secretário executivo do Ministério da Saúde, não se constrangeu em destratar um garçom que seria água durante uma reunião. 

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E a coisa continua nas ruas
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No Rio de Janeiro, um homem disse que pagava o salário dos fiscais sanitário e sua companheira foi rápida em dizer aos servidores que ele não era um cidadão, mas um engenheiro civil, “muito melhor do que você”. Em Santos, São Paulo, desde o dia primeiro de maio é obrigatório o uso de máscaras na cidade. Mas o desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo Eduardo Siqueira resolveu não usar. E ainda agrediu verbalmente os guardas municipais que estavam cumprindo sua função, chamando-os de analfabetos.

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Esse país é construído sobre a percepção do status. E isso é doente
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E por mais ridículo que seja, esse elitismo aparece em todos os cantos. Até na reportagem em que uma mulher que não usava máscara aparece dizendo que não usaria a proteção e que era advogada, “meu amor”. Em Porto Alegre, empresários decidem se haverá lockdown ou não, uma questão de saúde pública. Enfim, há muitas pessoas que se acham acima da pandemia. Ricos, doutores, professores, jornalistas, intelectuais que querem acabar com o novo coronavírus por decreto. 

Para falar sobre a cultura do “você sabe com quem está falando?” e as diversas formas em que isso afeta a pandemia, participam do programa os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no SpotifyItunes e Castbox

 

Vós Pessoas no Plural · BSV Especial Coronavírus #18 “Você sabe com quem está falando?”
Igor Natusch

Um fim de tarde qualquer em um bairro brasileiro de classe média

Igor Natusch
18 de dezembro de 2019
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– Eu estava pensando…

– Pelo amor de Deus, amor, não fale isso em voz alta!

– Sim, desculpe – baixou o tom de voz. – Eu estive pensando, sabe.

– Mas como assim? Desde quando você pensa?

– Ah, não faz muito tempo. Umas duas semanas, talvez. Três, no máximo.

– E por que não me disse nada antes?

– Acho que tive um pouco de… Receio – a voz, além de quase cochichada, era cautelosa, escolhendo as palavras. – Nunca se sabe como os outros vão reagir, sabe como é.

– Mas de mim você não precisa ter medo.

– Sim, eu sei. Mas, logo que comecei a pensar, eu fiquei em dúvida. E preferi esperar um pouco. Entende? Vai que é só uma fase. Vai que, no dia seguinte, eu parasse de pensar.

– É, faz sentido. Mas, pelo jeito, você segue pensando.

– Isso. E não está passando, sabe. Pelo contrário. Estou pensando cada vez mais.

– Você precisa tomar cuidado.

– Eu sei, amor. Eu sei. Mas tento ser discreto. Penso só quando estou sozinho. Com o celular desligado.

– Mas desligar o celular é proibido! Não brinque assim – Chegou a gaguejar de preocupação. – Vai que… Eles acreditam.

– Desculpe, amor. Você tem toda a razão. Foi uma brincadeira fora de hora. Me perdoe.

Seu aparelho celular estava no bolso. Logo após falar, ele voltou os olhos para a esposa e disse, apenas movendo os lábios:
“Eu espero descarregar a bateria.”

Ela entendeu e, um pouco alarmada, fez que sim com a cabeça.

– Mas enfim, a verdade é que ando pensando – recomeçou ele. – Ainda não é crime, eu sei, mas as leis mudam tão rápido! Ando um pouco preocupado com isso. Talvez eu precise de tratamento.

– E como é pensar? – perguntou ela, em um impulso. – Eu… Não lembro muito bem como era.

– É esquisito. Você pega as frases e, tipo, junta elas na cabeça. E aí algumas frases não fazem sentido juntas. Mas outras fazem, e quando elas se juntam surgem… Outras coisas. Não sei explicar direito.

– Isso parece bem perigoso.

– Eu diria que é mais cansativo, sabe. Eu começo a pensar e, logo em seguida, fico exausto e preciso parar. Deve ser falta de prática.

– Não, estou falando sério. É perigoso. Como ficam as informações que recebemos todos os dias no celular, se a gente começa a fazer… Isso daí que você faz? Como ficam as nossas certezas? Daqui a pouco vão achar que bandido bom é bandido vivo, ou que o nazismo… – Fez o sinal da cruz. – Não é de esquerda!

– Pare com isso! – Agora era ele quem parecia alarmado. – Não pensei nada disso. Não fique colocando ideologias na minha cabeça! Inclusive, olhe como está bonita a minha suástica – Apontou para o bracelete nazista, bastante vistoso, que ostentava no braço esquerdo.

– Sim, é realmente linda – concordou ela.

– Mas… Esse é o problema de pensar – retomou ele, novamente cauteloso. –  Porque, se o nazismo é de esquerda, e a esquerda é a personificação de todo o mal… Então por que nós, que somos da direita divina, somos encorajados a usar um bracelete nazista? Ele não é um símbolo dos nossos inimigos? De tudo que a gente detesta?

– Credo – quase gritou ela, enquanto espantava ideias com a mão. – Não fale bobagem. O nazismo é de esquerda, as suásticas são uma forma de humilhar os esquerdinhas. Está tudo claro. Não comece a inventar moda!

– Você tem razão – assentiu, respirando fundo.

O silêncio foi longo. Do lado de lá da janela, começava a surgir entre as nuvens um bonito pôr-do-sol.

– Amor?

– Sim?

– No que você estava pensando?

– Deixe para lá – sua voz era pensativa e, ao mesmo tempo, receosa.

– Ah, não faça assim. Você pode confiar em mim.

– Posso?

– Pode.

– Bem, então… Eu estava pensando e, pela lógica… A Terra não pode ser plana.

– AH NÃO, AMOR! PELO AMOR DE DEUS!!!

Foto: Sheila Tostes / Flickr

Voos Literários

O reizinho mandão veio parar no Brasil de 2017

Flávia Cunha
19 de setembro de 2017

A cada dia, aparecem mais notícias desalentadoras para os de espírito crítico e libertário no Brasil. Uma onda conservadora tomou conta do país, em um verdadeiro tsunami de chorume. É exposição de arte sendo fechada por pressão da moral e dos bons costumes, psicólogo defendendo a cura gay com aval judicial e governante sendo autorizado pela Justiça a impedir protestos no seu entorno.

A verdade é que O Reizinho Mandão, personagem do clássico infantil de Ruth Rocha, parece ter invadido o Brasil contemporâneo. Pode assumir a forma de um movimento com jovens inflexíveis e cerceadores da liberdade alheia, pode ser o hater das páginas a favor das causas negra, LGBTQ e feminista, também é possível que seja aquele colega de trabalho que tira sarro dos outros e depois reclama que o mundo tá muito chato.

Para quem não conhece o livro, o enredo aborda a história de um jovem rei que é a mais perfeita encarnação do absolutismo, (a exemplo de Luis XIV, que ilustra esse texto). Ele assume o trono após a morte de seu pai e impõe ao seu país imaginário uma série de leis absurdas e não quer ser contrariado por ninguém, nem por seus conselheiros.

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Eles explicavam que um rei tem de fazer leis importantes, para tornar o povo mais feliz.

Mas o reizinho não queria saber de nada. Era só um conselheiro qualquer abrir a boca para dar um conselho e ele ficava vermelhinho de raiva, batia o pé no chão e gritava de maus modos:

– Cala a boca! Eu é que sou o rei. Eu é que mando!

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A história prossegue com o reino todo desaprendendo a falar, em uma analogia com a ditadura existente no Brasil da época, já que Ruth Rocha lançou esse enredo em 1978. Mesmo ano em que Geisel estava no poder, em meio a um processo de abertura política que durou longos anos até chegar-se à promulgação da constituição de 1988.

Ainda, assim, recentemente teve cantor sertanejo dizendo por aí que a ditadura não existiu. Tristes tempos esses nossos…

A solução para acabar com a ignorância em massa que assola o país pode estar na literatura. E isso quem está dizendo é o historiador Dante Gallian, com seu livro A Literatura como Remédio. A obra destaca como a leitura de grandes clássicos pode ser proporcionar a cura para doenças da alma e proporcionar transformações humanizadores e terapêuticas, ao conseguir levar as pessoas a exercitarem a empatia.

Fortemente recomendado para pessoas com dificuldade de alteridade. Quem sabe não é um bom presente para aquela tia conservadora, que atormenta os almoços de família?

Geórgia Santos

A morte de Marisa e os lados da ignorância

Geórgia Santos
7 de fevereiro de 2017
Foto: Paulo Pinto - Agência PT

Em inúmeras ocasiões pensei que o ser humano não poderia ser mais torpe. E não falo de ações individuais de um serial killer, falo do inconsciente coletivo, mesmo. De ações de massa. Mas em (quase) todas essas ocasiões eu fui surpreendida: nós sempre podemos descer mais um pouquinho. E as reações à doença e morte da ex-primeira dama Marisa Letícia  e suas consequências foram o exemplo perfeito do quão pequenos podemos ser.

Aos 67 anos, a esposa do ex-presidente Lula sofreu um AVC e permaneceu internada por dias no hospital Sírio-Libranês, em São Paulo. Bastou a primeira linha da primeira notícia para as redes sociais serem inundadas por CELEBRAÇÕES. Sim, houve quem comemorasse o derrame de uma mãe, de uma avó, de uma companheira, de uma amiga, de uma pessoa. Bestas latiam enquanto se deleitavam com o sofrimento da “ladra” – o adjetivo mais leve dirigido à enferma. Houve, também, manifestações de solidariedade, mas essas foram apagadas pela enxurrada de ódio, que exigia resposta dos solidários.

Quando a morte de Marisa foi confirmada, na última sexta-feira (3), a canalhice continuou. Memes de péssimo gosto circulavam pelos celulares via WhatsApp, eram compartilhados no Facebook e enaltecidos por insensíveis.

A ignorância não tem fim, pensei eu. Triste.

Mas os insultos não estavam restritos às redes e pequenos grupos. Tampouco a quem detesta o PT e o que ele representa. Pelo contrário, eles estavam por todos os lados. Mas com alvos diferentes. Durante o velório da ex-primeira dama, um repórter da TV Globo não apenas foi impedido de trabalhar por quem frequentou a cerimônia como foi agredido física e verbalmente. “Assassino”, gritavam. Creditando o AVC sofrido por Marisa ao trabalho da mídia tradicional que, segundo eles, estava empenhada em acabar com Lula. Episódio similar ocorrera um dia antes quanto Michel Temer prestou solidariedade ao ex-presidente com uma visita ao hospital. Ele também fora chamado de assassino.

A ignorância se perpetua, pensei eu. Cada vez mais desiludida.

Então chegou o momento em que Lula discursou ao lado do caixão da esposa. Com os olhos vermelhos e lavados, lembrou da vida que construíram juntos e enalteceu a mulher. Terminou, no entanto, em tom surpreendente: “Marisa morreu triste”, disse ele, que explicou que a mulher estava sofrendo com o que ele chamou de perseguição. Achei inadequado, sim. Mas quem sou eu para dizer como um homem em luto deve se comportar? Como disse um amigo, se existe alguém, nessa história toda, que tinha justificativa para ser inadequado diante de tudo o que está acontecendo, esse alguém é Lula. Não por uma questão política, não está em jogo se é homem bom ou não, se roubou ou não, se foi bom ou mau presidente. Mas por uma questão humana. É um homem que acabou de perder a companheira de uma vida toda.

Porém, não há perdão. Rapidamente uma colunista que prefiro não citar o nome se apropria da situação e escreve: “Case com alguém que não vá fazer comício no seu velório quando chegar a hora.” Ora, é muito baixo. Crítico de velório é demais pra minha cabeça.

De fato, é desumano celebrar a morte de Marisa. É torpe chamar repórter de assassino. E baixo usar a morte politicamente.

A ignorância não escolhe lado.