Voos Literários

Sobre direitos humanos e “cidadãos de bem”

Flávia Cunha
12 de dezembro de 2020

Há 72 anos, em 10 de dezembro de 1948, era criado um dos documentos balizadores do mundo pós-guerra, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em uma assembleia-geral da Organização das Nações Unidas. Na época, a maioria dos 58 países integrantes da ONU foi favorável ao texto, incluindo o Brasil.  Desde sua criação, a declaração, composta por 30 artigos, é considerada um marco no compromisso internacional para um mundo mais justo e com menos desigualdade.

DESVIRTUAMENTO CONCEITUAL

Tantas décadas depois, o que vemos no Brasil do século 21 é uma deturpação do conceito de direitos humanos. A ideia errônea vigente é de que serviriam apenas para proteger criminosos e livrá-los de punição. E, então, o que percebemos entre os chamados cidadãos de bem é uma necessidade de justiçamento contra bandidos.  Também evidencia-se um discurso bastante questionável de que direitos humanos deveriam servir apenas para “humanos direitos”.

MAS SERÁ QUE ELES ENTENDEM O QUE SÃO OS DIREITOS HUMANOS?

Para começar, não dá para saber quantos partidários desse discurso tosco realmente leram a Declaração Universal dos Direitos Humanos. É bom lembrar que este é um texto amplamente acessível, inclusive na Internet, além de contar com uma bela adaptação destinada ao público infantil, com texto de Ruth Rocha e ilustrações de Otavio Roth.

Para efeitos didáticos, seguiremos o pensamento (equivocado, volto a ressaltar) de que direitos humanos deveriam ser apenas para “humanos direitos”. Como exercício de reflexão, consideraremos “humanos direitos” aqueles que não cometem crimes como assaltos e assassinatos. (Sonegar impostos, sabemos, é um crime considerado menor por cidadãos de bem, muitos deles grandes empresários cheios de pendências e problemas com a Receita Federal.)

Continuando essa linha de raciocínio, vamos imaginar aqui uma pessoa comum. Um trabalhador ou trabalhadora, de baixa renda, que se esforça para ter o suficiente por mês para pagar alimentação e um local de moradia. Será que os direitos humanos chegam mesmo a uma pessoa assim?

VEJAMOS O PRIMEIRO ITEM DO ARTIGO 23 DA DECLARAÇÃO:
Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.

Sobre a sentença acima, vale enfatizar que “condições justas e favoráveis de trabalho” são cada vez mais difíceis para a população brasileira, não somente em razão da pandemia. Há anos, vem se desenhando um cenário baseado em precarização das relações de trabalho, com salários cada vez menos justos. Afora que a livre escolha acaba se tornando uma falácia, em um panorama com grande desemprego e poucas oportunidades de novas vagas. 

Continuando nossa argumentação, destaco parte de um dos itens do artigo 27 da Declaração:
Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes […].

O ponto exposto nesse trecho do artigo 27 é o conceito de fruição da Arte. Sim, ele deveria ser fundamental na vida de todos, mas acaba sendo pouco presente na vida dos brasileiros, mesmo em tempos pré-pandêmicos. Dentre os maiores impeditivos para a Arte estar no dia a dia de muitos trabalhadores, acredito serem os mais comuns a falta de tempo e dificuldade de acesso a espaços culturais, mesmo gratuitos.

UM RESPIRO LITERÁRIO

Um exemplo literário dessa alienação do trabalho e falta de acesso à cultura e lazer pode ser encontrado no conto “Roda-Gigante”, do livro Mundos Paralelos, lançamento independente do escritor gaúcho Rodrigo Mizunski Peres. Tive o privilégio de ler esse texto antes de sua publicação, por ter sido a produtora editorial da obra. E esse conto foi o que mais me chamou a atenção dentre os 19 que integram o livro. Um exemplo claro, no meu ponto de vista, do quanto as condições de trabalho afetam a vida de “humanos direitos” e podem, de certa forma, impedir o acesso destes a direitos humanos básicos, como os que citei ao longo deste post.  

O enredo de “Roda-Gigante” narra a jornada exaustiva e repetitiva de uma operária. Conforme a leitura avança, acompanhamos o arrebatamento da personagem ao deparar-se com um parque de diversões, próximo à fábrica onde trabalha:

“Não costumava parar fosse na ida ou na volta de sua monótona rotina. Sequer passara na padaria para comprar seu pão. Mas se deteve na calçada, e ficou a mirar – já admirava – a roda-gigante. Pois nunca mesmo andara numa. Nunca fora a um parque de diversões. Nunca. Não soube precisar quanto tempo ficara ali parada, mas o suficiente para alterar sua rotina.”
Confiram um trecho do conto, na leitura cênica feita pela atriz Elisa Lucas:

DIREITOS HUMANOS

É essencial lutarmos para que os direitos humanos sejam respeitados. É a única forma de livrarmos o Brasil da barbárie e da injustiça social defendidas por uma parcela egoísta, privilegiada e torpe da nossa sociedade. Para quem ainda não leu, uma versão digital da Declaração Universal dos Direitos Humanos pode ser adquirida aqui.

 

 

 

Voos Literários

O reizinho mandão veio parar no Brasil de 2017

Flávia Cunha
19 de setembro de 2017

A cada dia, aparecem mais notícias desalentadoras para os de espírito crítico e libertário no Brasil. Uma onda conservadora tomou conta do país, em um verdadeiro tsunami de chorume. É exposição de arte sendo fechada por pressão da moral e dos bons costumes, psicólogo defendendo a cura gay com aval judicial e governante sendo autorizado pela Justiça a impedir protestos no seu entorno.

A verdade é que O Reizinho Mandão, personagem do clássico infantil de Ruth Rocha, parece ter invadido o Brasil contemporâneo. Pode assumir a forma de um movimento com jovens inflexíveis e cerceadores da liberdade alheia, pode ser o hater das páginas a favor das causas negra, LGBTQ e feminista, também é possível que seja aquele colega de trabalho que tira sarro dos outros e depois reclama que o mundo tá muito chato.

Para quem não conhece o livro, o enredo aborda a história de um jovem rei que é a mais perfeita encarnação do absolutismo, (a exemplo de Luis XIV, que ilustra esse texto). Ele assume o trono após a morte de seu pai e impõe ao seu país imaginário uma série de leis absurdas e não quer ser contrariado por ninguém, nem por seus conselheiros.

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Eles explicavam que um rei tem de fazer leis importantes, para tornar o povo mais feliz.

Mas o reizinho não queria saber de nada. Era só um conselheiro qualquer abrir a boca para dar um conselho e ele ficava vermelhinho de raiva, batia o pé no chão e gritava de maus modos:

– Cala a boca! Eu é que sou o rei. Eu é que mando!

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A história prossegue com o reino todo desaprendendo a falar, em uma analogia com a ditadura existente no Brasil da época, já que Ruth Rocha lançou esse enredo em 1978. Mesmo ano em que Geisel estava no poder, em meio a um processo de abertura política que durou longos anos até chegar-se à promulgação da constituição de 1988.

Ainda, assim, recentemente teve cantor sertanejo dizendo por aí que a ditadura não existiu. Tristes tempos esses nossos…

A solução para acabar com a ignorância em massa que assola o país pode estar na literatura. E isso quem está dizendo é o historiador Dante Gallian, com seu livro A Literatura como Remédio. A obra destaca como a leitura de grandes clássicos pode ser proporcionar a cura para doenças da alma e proporcionar transformações humanizadores e terapêuticas, ao conseguir levar as pessoas a exercitarem a empatia.

Fortemente recomendado para pessoas com dificuldade de alteridade. Quem sabe não é um bom presente para aquela tia conservadora, que atormenta os almoços de família?