Samir Oliveira

Parada Livre de Porto Alegre: um berro contra os retrocessos

Samir Oliveira
2 de novembro de 2017
Foto: Fernanda Piccolo

No dia 26 de novembro Porto Alegre realiza a XXI edição da Parada Livre. Um evento de massas, que reúne pelo menos 35 mil pessoas todos os anos na Redenção em uma verdadeira festa política de luta por direitos e celebração da diversidade.

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O tema deste ano não poderia ser mais adequado:

“Berro contra os retrocessos”

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É com esta combatividade que os LGBTs irão às ruas neste dia. O momento político do país exige uma resposta frontal ao conservadorismo e uma reação afrontosa às tentativas medievais de censurar expressões de sexualidade e identidade.

A Parada Livre representa essa resistência construída democraticamente por uma série de coletivos e organizações. É verdade que é preciso que ela seja cada vez mais política, no sentido de incidir sobre a estrutura política que nega nossos direitos, abafa nossa liberdade e espanca nossos corpos. Esse processo está permanentemente em curso, com as linguagens e estéticas próprias que a população LGBT domina para fazer política. Afinal, a própria existência da Parada é um ato político. É extremamente político que dezenas de milhares de corpos LGBTs saiam às ruas juntos para expressar seus afetos e exercer a plena liberdade de ser quem são.

A Parada Livre deste ano será mais uma etapa de um novo ciclo de lutas que a população LGBT vem travando no Brasil nos últimos meses. Os ataques de setores proto-fascistas da sociedade exigem uma resposta forte e impulsionam uma articulação entre todo o movimento.

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Ataques constantes

A representação maior deste novo ciclo foi a reação ao fechamento da exposição QueerMuseu em Porto Alegre. O episódio fortaleceu grupos de extrema-direita que destilam ódio contra qualquer manifestação de diversidade. Iniciou-se uma cruzada medieval contra a arte e as expressões de sexualidade e gênero no Brasil. O recuo vergonhoso do Santander diante destes grupos violentos catalisou esse sentimento antidiversidade.

A reação do movimento LGBT foi imediata e forte. Mais de duas mil pessoas se reuniram em frente ao Santander em plena quarta-feira para defender a liberdade artística. A vanguarda do movimento se uniu à categoria artística num duro enfrentamento aos grupos de ódio – especialmente ao MBL e seus satélites, que compareceram presencialmente no protesto e provocaram os ativistas.

A decisão da Justiça, em primeira instância, de autorizar a chamada “cura gay” representa um retrocesso de pelo menos 30 anos no que diz respeito ao consenso médico-psiquiátrico, científico e psicológico de que homossexualidade não é uma doença. Também esse episódio gerou uma onda de lutas muito forte. Em Porto Alegre, milhares foram às ruas para lutar contra este absurdo.

A população LGBT carrega consigo a responsabilidade de estar no enfrentamento diário à intolerância e ao fascismo, pois são seus corpos e suas expressões de afeto, identidade e sexualidade que estão sendo atacadas.

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O Brasil é o país que mais mata LGBTs no mundo. Só neste ano foram 169 transexuais assassinados e assassinadas. A população de travestis e transexuais é a mais vulnerável nesse contexto de extermínio

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Fortalecer a Parada Livre é fortalecer essa resistência tão necessária nos dias de hoje. É lutar por vidas humanas que estão em risco por causa do preconceito e da intolerância. Por isso é tão criminoso que a prefeitura de Porto Alegre tenha suspendido o apoio que sempre deu ao evento. O movimento não se intimidou diante da postura autoritária de Nelson Marchezan Júnior e batalha duramente por financiamento, contando com a parceria de casas noturnas e bares LGBTs e com a criatividade militante na venda de bottons, camisetas e canecas – que podem ser compradas através da loja virtual http://www.lojaafirme.com.br.

A Parada Livre deste ano não será menor. Pelo contrário, expressará com muita força o verdadeiro berro contra os retrocessos que a população LGBT dará na Redenção em 26 de novembro. Será fabuloso!

Foto: Fernanda Piccolo

Voos Literários

“Comunista, vai pra Cuba!!”

Flávia Cunha
17 de outubro de 2017

Essa frase (e variações dela) vem sendo reproduzidas em comentários pela Internet, essa rede criada para interligar as pessoas mas que parece cada vez mais ser usada como instrumento de propagação de ódio. Fiquei divagando sobre esse tipo de declaração, ao ter um comentário desses associado a um texto meu. Fiquei genuinamente intrigada. 

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O que faz com que o internauta em questão ache que eu sou comunista?

E “comunista” é xingamento?

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Então, fui fazer algumas pesquisas para propor reflexões a respeito. A verdade é que o tão temido comunismo nunca foi aplicado em nenhum país, por prever o fim do Estado com a chegada da igualdade absoluta entre os cidadãos. A sociedade, portanto, arranjaria uma maneira de se autorregulamentar. Seria, a grosso modo, a etapa final do socialismo, esse sim implementado na antiga União Soviética e em Cuba, por exemplo.

Para entender as raízes do ódio ao comunismo, cheguei num artigo sobre o anticomunismo e constatei que não  há um consenso nesse movimento. Liberais, conservadores, democratas cristãos, fascistas e nazistas têm (ou tiveram) em comum o ódio aos comunistas. O principal motivo, me parece, seria por essa ideologia prever o fim da propriedade privada.

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Mas o que está ocorrendo no Brasil para que de uma hora para outra tanta gente fale em comunismo de forma tão agressiva? Sempre foi assim?

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Nas minhas investigações de obras ligadas ao tema, encontrei alguns fatos curiosos. Em 1980, um livro da coleção Primeiros Passos, da Editora Brasiliense com o título O Que é Comunismo? foi lançado sem problema algum em território brasileiro, mesmo antes da abertura política.  

Em 1985, era a vez de uma biografia sobre uma comunista virar sensação entre leitores de diferentes vertentes políticas. Olga, de Fernando Morais, aborda a trajetória da comunista e judia Olga Benário, como explica o jornalista, na introdução da obra:

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“A reportagem que você vai ler agora relata fatos que aconteceram exatamente como estão descritos neste livro; a vida de Olga Benario Prestes, uma história que me fascina e atormenta desde a adolescência, quando ouvia meu pai referir-se a Fílinto Müller como o homem que tinha dado a Hitler, “de presente”, a mulher de Luís Carlos Prestes, uma judia comunista que estava grávida de sete meses. Perseguido por essa imagem, decidi que algum dia escreveria sobre Olga, projeto que guardei com avareza durante os anos negros do terrorismo de estado no Brasil, quando seria inimaginável que uma história como esta passasse incólume pela censura.”

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Perceberam a última frase? Em 1985, era possível escrever sobre uma comunista sem ser execrado. Aliás, as críticas da época foram muito boas, como podemos notar pelas avaliações da imprensa da época, que constam nessa primeira edição.

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“Além de ser um retrato de corpo inteiro de Olga Benario, o livro acabou sendo uma história completa da revolta comunista de 1935.” (O Globo)

“Estou impressionado com a qualidade do texto e com o belo profissionalismo com que o trabalho foi encarado. É, sem sombra de dúvida, uma excelente obra e um livro indispensável.” (Tarso de Castro – Tribuna da Imprensa)

“Não é apenas o relato da vida e da morte de Olga Benario, mas traz revelações inéditas e polêmicas sobre a revolta comunista de 1935.” (Jornal O São Paulo)

“Só agora a fascinante história de Olga é contada de verdade para nós – e de forma apaixonada.” (Marília Gabriela – TV Bandeirantes)

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O livro Olga foi reeditado com sucesso em 1994 quando também não houve nenhum tipo de comoção por abordar, com humanidade e alguma ternura, a trajetória de uma comunista. O filme Olga, de 2004, tampouco enfrentou críticas do gênero. Alguma coisa realmente parece ter mudado nesses últimos anos no Brasil. E, no meu ponto de vista, não foi para melhor.

Sobre Cuba, citada no título desse texto, falarei em breve. A abordagem será de uma obra passada na terra de Fidel e escrita por um norte-americano premiadíssimo. Aguardem!

Geórgia Santos

Não quero viver dentro dos meus livros de História

Geórgia Santos
16 de outubro de 2017

Cansei de ouvir pessoas que queriam “ter vivido nos tempos da Ditadura.” Não porque apoiassem, mas porque queriam ter tido a chance de lutar contra o regime, de protestar contra a Guerra do Vietnã, de ter ido à Woodstock, de entrar pra uma guerrilha. E não foram poucos os relatos desse tipo. Na faculdade, pipocavam sempre que se tocava no assunto. Muito romântico. Muito ridículo (desculpem-me, mas é).

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Pois talvez os “saudosistas” tenham uma chance

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Sempre tive fascínio pelas aulas de História. Sem saber das palavras de Heródoto, desde pequena acreditava que era importante conhecermos o passado para compreender o presente e idealizar o futuro. Sem saber da existência de Marx, acreditava que o passado poderia ser um instrumento de combate às injustiças e desigualdades. Mas nunca quis viver dentro dos livros de História que carregava.

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Estava perfeitamente confortável com o sentimento de distância do passado de autoritarismo

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Verdade que não conseguia conter as lágrimas ao ler sobre o Holocausto. Derretia por dentro ao ler sobre a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos e a batalha para acabar com a segregação racial. Ficava hipnotizada com a história da Ditadura Militar brasileira, apesar de não compreender como parte da população fora a favor do golpe – apenas mais tarde soube que era a maioria, muito mais tarde.

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Mas tudo parecia distante, como se tivesse acontecido há séculos

E cá tínhamos a história para evitar que

repetíssemos os mesmos erros

Eu me sentia segura fora dos meus livros de História

 

Ledo engano. Estamos em 2017 e há um grupo de pessoas que acredita que a TERRA É PLANA. Uma exposição de ARTE FOI FECHADA por atentar contra a MORAL E OS BONS COSTUMES. Candidatos à presidência reforçam preconceitos raciais e EXALTAM A TORTURA. Grupos negam a ciência e DUVIDAM DO AQUECIMENTO GLOBAL. RACISMO é justificado. XENOFOBIA é justificada. Homossexualidade é tratada como DOENÇA. Nacionalistas alemães são eleitos para o parlamento com bandeira ANTI-IMIGRAÇÃONo Brasil, clamam por intervenção militar.

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Qualquer semelhança não é coincidência

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Neste ritmo, talvez estejamos mais perto de um regime de exceção do que nossa vã imaginação pudesse imaginar até pouco tempo. Estamos retrocedendo a uma velocidade tão assustadora que me sinto puxada para dentro de meus livros de História, como em um redemoinho sombrio de erros do passado, e ali deparo com o preconceito, com o ódio, com a intolerância, com a ignorância. Não quero ficar aqui dentro.

 

 

 

Voos Literários

(Quase) toda a nudez será castigada nas redes sociais

Flávia Cunha
3 de outubro de 2017

A arte nunca esteve tão em evidência. Pena que o motivo seja o conservadorismo, que voltou com força total, com a defesa de que exposições de arte e performances não apresentem transgressões, como a nudez. No país do Carnaval, do fio dental nas praias e dos filmes pornô conhecidos mundo afora, de uma hora para outra parece que ficar pelado em cena ou retratar o sexo nas artes visuais tornou-se um tabu.

Em se tratando de literatura, é bom não esquecer a queima de livros em praça pública em cidades universitárias da Alemanha nazista. Capitaneada pelo governo e com o apoio de jovens (alô, MBL!!), o objetivo era buscar obras que fossem consideradas impuras, decadentes ou degeneradas. Tudo isso, claro, de acordo com o juízo de valor do regime nazista da época.

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Perceberam o perigo que existe na patrulha ideológica da atualidade?

Quem vai considerar o que é arte e o que é “sem vergonhice”?

Qual o critério?

E, principalmente, quem vai estudar a sério o assunto antes de destilar ódio e histeria nas redes sociais?

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No Brasil, Nelson Rodrigues foi um dos que sofreu duras críticas e censura por suas obras, principalmente ao escrever para o teatro. O curioso é ele não era de esquerda nem libertário, autodenominava-se reacionário e chegou a defender o regime militar. Porém, a criação de enredos com questionamento à hipocrisia das famílias tradicionais e recorrentes personagens levados ao incesto, fizeram com que os conservadores ficassem de cabelo em pé com Nelson, classificando-o como um autor maldito.

A terceira peça teatral rodrigueana, Álbum de Família, foi a primeira dele a ser proibida nacionalmente. O espetáculo Senhora dos Afogados também foi censurado e depois liberado. Apenas em São Paulo seguiu sendo proibida na época, por pressão da Liga das Senhoras Católicas. O mesmo fato ocorreu com Perdoa-me por me traíres. Essa liga devia ser muito forte em São Paulo nesse período, pelo jeito.  

A reação de Nelson? Aproveitar a publicidade gerada pela censura para conseguir mais público depois da liberação. É o que podemos ver nesse cartaz da peça Anjo Negro.

Toda nudez será castigada gerou polêmica foi no cinema. O enredo criado por Nelson Rodrigues no filme dirigido por Arnaldo Jabor foi considerado imoral pela censura. Três meses após sua liberação, os rolos da película foram apreendidos em todo o território nacional. Na mesma época, o longa-metragem foi premiado no Festival Internacional de Berlim, sendo então permitida sua exibição nas salas de cinema, com muitos cortes. Hoje, é considerado um dos melhores filmes brasileiros, de acordo com a Associação Brasileira dos Críticos de Cinema.

Moral da história? Os cidadãos de bem têm uma certa miopia para avaliar o que é Arte ou não. Existem longos debates no meio acadêmico justamente com essa questão. Nas minhas incursões no mundo das Letras, participei de muitas aulas onde era avaliado o que faz um texto ser considerado literário. E, só para constar, Nelson Rodrigues faz parte do cânone literário, mesmo tendo sido considerado um “imoral” lá nos idos de 1960/1970.

Voos Literários

O reizinho mandão veio parar no Brasil de 2017

Flávia Cunha
19 de setembro de 2017

A cada dia, aparecem mais notícias desalentadoras para os de espírito crítico e libertário no Brasil. Uma onda conservadora tomou conta do país, em um verdadeiro tsunami de chorume. É exposição de arte sendo fechada por pressão da moral e dos bons costumes, psicólogo defendendo a cura gay com aval judicial e governante sendo autorizado pela Justiça a impedir protestos no seu entorno.

A verdade é que O Reizinho Mandão, personagem do clássico infantil de Ruth Rocha, parece ter invadido o Brasil contemporâneo. Pode assumir a forma de um movimento com jovens inflexíveis e cerceadores da liberdade alheia, pode ser o hater das páginas a favor das causas negra, LGBTQ e feminista, também é possível que seja aquele colega de trabalho que tira sarro dos outros e depois reclama que o mundo tá muito chato.

Para quem não conhece o livro, o enredo aborda a história de um jovem rei que é a mais perfeita encarnação do absolutismo, (a exemplo de Luis XIV, que ilustra esse texto). Ele assume o trono após a morte de seu pai e impõe ao seu país imaginário uma série de leis absurdas e não quer ser contrariado por ninguém, nem por seus conselheiros.

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Eles explicavam que um rei tem de fazer leis importantes, para tornar o povo mais feliz.

Mas o reizinho não queria saber de nada. Era só um conselheiro qualquer abrir a boca para dar um conselho e ele ficava vermelhinho de raiva, batia o pé no chão e gritava de maus modos:

– Cala a boca! Eu é que sou o rei. Eu é que mando!

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A história prossegue com o reino todo desaprendendo a falar, em uma analogia com a ditadura existente no Brasil da época, já que Ruth Rocha lançou esse enredo em 1978. Mesmo ano em que Geisel estava no poder, em meio a um processo de abertura política que durou longos anos até chegar-se à promulgação da constituição de 1988.

Ainda, assim, recentemente teve cantor sertanejo dizendo por aí que a ditadura não existiu. Tristes tempos esses nossos…

A solução para acabar com a ignorância em massa que assola o país pode estar na literatura. E isso quem está dizendo é o historiador Dante Gallian, com seu livro A Literatura como Remédio. A obra destaca como a leitura de grandes clássicos pode ser proporcionar a cura para doenças da alma e proporcionar transformações humanizadores e terapêuticas, ao conseguir levar as pessoas a exercitarem a empatia.

Fortemente recomendado para pessoas com dificuldade de alteridade. Quem sabe não é um bom presente para aquela tia conservadora, que atormenta os almoços de família?