Voos Literários

Carnaval, nudez e feminismo

Flávia Cunha
5 de março de 2019

Pensem comigo: qual a principal diferença da nudez das musas do Carnaval carioca e de feministas peladonas nas manifestações do Dia Internacional da Mulher?

A mais gritante é o padrão de beleza apresentado por quase a totalidade das mulheres que são destaques nas grandes escolas de samba do Rio de Janeiro. Já as manifestantes que decidem ficar nuas em protestos em geral têm corpos comuns, com seios que podem ser caídos pela ação do tempo, com barrigas que podem não ser chapadas por exercícios físicos e procedimentos estéticos e com axilas que podem, para o horror dos conservadores, não serem depiladas. Digo podem porque esse estereótipo da feminista peluda, mal amada e que não se importa com a estética corporal também é excludente.

O que me indigna não é a beleza das divas do Carnaval  – cada um cuida do seu corpo do jeito que achar melhor. O que enraivece é a normalização da nudez nos desfiles transmitidos pela televisão e repercutidos nos portais da Internet em notícias sobre a boa forma feminina.

A nudez feminina é permitida, desde que siliconada.

A nudez feminina é concedida, desde que nos padrões.

Também não quero dizer com isso que o Carnaval é uma festa do patriarcado.  Cada vez mais surgem blocos femininos e feministas, com mulheres não somente adornando com sua beleza a folia, mas também sendo protagonistas da batucada. Também se consolidam alas com integrantes plus size, o que tenho minhas dúvidas se é algo bom, por deixar as “gordinhas” e “barrigudinhas” separadas das mulheres com “beleza padrão”.

Nessa busca por uma referência literária para esse desabafo carnavalesco e feminista achei dois livros interessantes.

O primeiro é um clássico da terceira onda feminista: O Mito da Beleza, de Naomi Wolf.  No trecho selecionado, há uma ponderação sobre essa falácia de que as mulheres não podem ser bonitas E inteligentes:

A cultura estereotipa as mulheres para que se adequem ao mito nivelando o que é feminino em beleza-sem-inteligência ou inteligência-sem-beleza. É permitido às mulheres uma mente ou um corpo, mas não os dois ao mesmo tempo. Uma alegoria comum que ensina esse fato às mulheres é a ligação entre uma feia e uma bonita: Lia e Raquel no Antigo Testamento, Maria e Marta no Novo; Helena e Hermia em Sonho de uma noite de verão; Anya e Dunyasha em O jardim das cerejeiras de Tchecov; Violeta e Dulçurosa Suíno em Ferdinando; Glinda e a Bruxa Má do Oeste em O Mágico de Oz; Mary e Rhoda em The Mary Tyler Moore Show; e assim por diante. A cultura machista parece se sentir melhor ao imaginar duas mulheres juntas se elas puderem ser definidas como um fracasso e um sucesso de acordo com o mito da beleza.

O outro livro é Ao Acaso – Mulheres Livres, Mamilos Polêmicos, da ilustradora brasileira Manuela Cunha Soares. A obra é constituída por desenhos, como a imagem de capa desse texto. O livro é uma ode à diversidade e à beleza que rompe padrões e estereótipos e está disponível para download gratuito no formato e-book.  Confiram mais alguns belos desenhos de Manuela.

Acredito que a nudez como libertação ainda é uma utopia em um país com tantos feminicídios como o Brasil. Mas também já houve um tempo em que as mulheres votarem era uma utopia e foi preciso a luta das sufragistas para que o voto feminino fosse uma realidade.

Por isso, o  dia 8 de Março deve ser um dia de luta por um mundo com menos desigualdade e opressão.  Vamos às ruas?

 

Imagem: Reprodução/ Ilustração Manuela Cunha Soares

 

 

 

Voos Literários

(Quase) toda a nudez será castigada nas redes sociais

Flávia Cunha
3 de outubro de 2017

A arte nunca esteve tão em evidência. Pena que o motivo seja o conservadorismo, que voltou com força total, com a defesa de que exposições de arte e performances não apresentem transgressões, como a nudez. No país do Carnaval, do fio dental nas praias e dos filmes pornô conhecidos mundo afora, de uma hora para outra parece que ficar pelado em cena ou retratar o sexo nas artes visuais tornou-se um tabu.

Em se tratando de literatura, é bom não esquecer a queima de livros em praça pública em cidades universitárias da Alemanha nazista. Capitaneada pelo governo e com o apoio de jovens (alô, MBL!!), o objetivo era buscar obras que fossem consideradas impuras, decadentes ou degeneradas. Tudo isso, claro, de acordo com o juízo de valor do regime nazista da época.

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Perceberam o perigo que existe na patrulha ideológica da atualidade?

Quem vai considerar o que é arte e o que é “sem vergonhice”?

Qual o critério?

E, principalmente, quem vai estudar a sério o assunto antes de destilar ódio e histeria nas redes sociais?

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No Brasil, Nelson Rodrigues foi um dos que sofreu duras críticas e censura por suas obras, principalmente ao escrever para o teatro. O curioso é ele não era de esquerda nem libertário, autodenominava-se reacionário e chegou a defender o regime militar. Porém, a criação de enredos com questionamento à hipocrisia das famílias tradicionais e recorrentes personagens levados ao incesto, fizeram com que os conservadores ficassem de cabelo em pé com Nelson, classificando-o como um autor maldito.

A terceira peça teatral rodrigueana, Álbum de Família, foi a primeira dele a ser proibida nacionalmente. O espetáculo Senhora dos Afogados também foi censurado e depois liberado. Apenas em São Paulo seguiu sendo proibida na época, por pressão da Liga das Senhoras Católicas. O mesmo fato ocorreu com Perdoa-me por me traíres. Essa liga devia ser muito forte em São Paulo nesse período, pelo jeito.  

A reação de Nelson? Aproveitar a publicidade gerada pela censura para conseguir mais público depois da liberação. É o que podemos ver nesse cartaz da peça Anjo Negro.

Toda nudez será castigada gerou polêmica foi no cinema. O enredo criado por Nelson Rodrigues no filme dirigido por Arnaldo Jabor foi considerado imoral pela censura. Três meses após sua liberação, os rolos da película foram apreendidos em todo o território nacional. Na mesma época, o longa-metragem foi premiado no Festival Internacional de Berlim, sendo então permitida sua exibição nas salas de cinema, com muitos cortes. Hoje, é considerado um dos melhores filmes brasileiros, de acordo com a Associação Brasileira dos Críticos de Cinema.

Moral da história? Os cidadãos de bem têm uma certa miopia para avaliar o que é Arte ou não. Existem longos debates no meio acadêmico justamente com essa questão. Nas minhas incursões no mundo das Letras, participei de muitas aulas onde era avaliado o que faz um texto ser considerado literário. E, só para constar, Nelson Rodrigues faz parte do cânone literário, mesmo tendo sido considerado um “imoral” lá nos idos de 1960/1970.