Voos Literários

Feminismo para quê? (Ou quem lava louça em casa)

Flávia Cunha
6 de março de 2020

Esse é o primeiro de quatro textos com sugestões de leituras e provocações a respeito da necessidade do feminismo nos dias atuais. Na estreia dessa série, sera abordada a divisão de tarefas domésticas entre homens e mulheres.

Com o avanço do conservadorismo nos últimos anos no Brasil, cada vez mais se menospreza a importância do movimento feminista para que as mulheres tenham adquirido mais direitos enquanto cidadãs, além de terem obtido independência e autonomia nas relações sociais e também no ambiente doméstico. Ao ler cada vez mais comentários femininos dizendo que “não precisam de feminismo para nada”, “feministas são mal-amadas” ou “feminazis com sovacos peludos”, considero necessário fazer um rápido resgate do quanto comportamentos hoje vistos como naturais foram conquistas adquiridas por meio da luta de mulheres que foram, no seu tempo, chamadas de radicais ou loucas.

Direito ao voto. Usar calças compridas. Andar de bicicleta. Viajar desacompanhada.
Morar sozinha. Ter autonomia sobre o próprio corpo, mesmo dentro do casamento.
Direito ao divórcio. 

Todos esses exemplos já foram, em algum momento, considerados inadequados ou proibidos para mulheres ocidentais. Uma das precursoras da segunda onda do movimento feminista, Betty Friedan, lançou em 1963 o livro A Mística Feminina. A ativista entrevistou norte-americanas que seguiam os preceitos sociais vigentes nos anos 1940 e 1950, sendo em sua esmagadora maioria donas-de-casa, atormentadas por não terem uma vida própria e dedicarem-se apenas a suas famílias. 

No final da obra, Betty Friedan questiona:

“Quem sabe o que será a mulher quando finalmente livre para ser ela mesma? Quem sabe qual a contribuição da sua inteligência quando esta puder ser alimentada sem sacrifício do amor? Quem sabe das possibilidades do amor quando o homem e a mulher compartilharem não só dos filhos, do lar, de um jardim, da concretização de seu papel biológico, mas também das  responsabilidades e paixões do trabalho que constrói o futuro humano e traz o pleno conhecimento da personalidade? Mal foi iniciada a busca da mulher pela própria identidade. Mas está próximo o tempo em que as vozes da mística feminina não poderão abafar a voz íntima que a impele ao seu pleno desabrochar.”

O leitor mais cético pode argumentar que o livro de Betty Friedan está ultrapassado, que em pleno século 21 não precisamos de feminismo para nada, já que agora as mulheres estão em pé de igualdade com os homens. Mas será mesmo? Se pegarmos o singelo item divisão de tarefas domésticas, poucas mulheres estão livres da sobrecarga de tomar para si essa atividade (não remunerada e invisível) e precisar conciliar esse trabalho com seus empregos.

Em O homem infelizmente tem que acabar, da escritora gaúcha Clara Corleone, lançado no final de 2019, ela cita como as mulheres – mesmo as mais “fodonas”- seguem em geral sendo as cuidadoras das relações, da casa e da família:

“Não há fator biológico que justifique as mulheres estarem sempre pensando na administração da casa e os homens, não. É completamente cultural. A mulher é educada para cuidar – cuidar do lar, cuidar do corpo, cuidar do marido, cuidar dos filhos, cuidar dos relacionamentos. Por isso a mulher normalmente tem a saúde melhor que o homem, por exemplo, e por isso a mulher tende a ser mais delicada nas relações. […] Mulheres trabalham muito com esse conceito de cuidado, por mais agressivas/ da pá virada, esse negócio de cuidado gruda na gente. Normalmente somos nós que deixamos o emprego quando alguém da família fica doente. Isso diz muito sobre a forma como somos educadas.”

Por isso, espero que a mulherada ativista siga protestando por esse e outros motivos (fim violência contra a mulher e feminicídios, direito ao aborto, igualdade salarial…). Mudanças só acontecem quando pessoas saem de suas zonas de conforto e questionam os padrões vigentes. E isso não tem a ver com esquerda ou direita. Os famosos esquerdomachos estão aí para provar isso. Eles querem que os proletários de todo mundo se unam por melhores condições de trabalho, desde que, em casa, a esposa siga lavando a louça, cuidando de suas roupas e sendo a responsável pela faxina. Aos meus leitores de esquerda do sexo masculino, alerto que repensar pequenas atitudes é a verdadeira revolução.

Às mulheres cis e trans, desejo um 8 de março de muita luta e de conscientização da importância do feminismo na nossa sociedade.

“Ser feminista continua sendo defender a maioria silenciosa das mulheres, ajudá-las a libertarem-se e adquirir seus direitos.” – Isabel Allende, escritora chilena

Imagem: Achim Thiemermann/Pixabay

Voos Literários

Carnaval, nudez e feminismo

Flávia Cunha
5 de março de 2019

Pensem comigo: qual a principal diferença da nudez das musas do Carnaval carioca e de feministas peladonas nas manifestações do Dia Internacional da Mulher?

A mais gritante é o padrão de beleza apresentado por quase a totalidade das mulheres que são destaques nas grandes escolas de samba do Rio de Janeiro. Já as manifestantes que decidem ficar nuas em protestos em geral têm corpos comuns, com seios que podem ser caídos pela ação do tempo, com barrigas que podem não ser chapadas por exercícios físicos e procedimentos estéticos e com axilas que podem, para o horror dos conservadores, não serem depiladas. Digo podem porque esse estereótipo da feminista peluda, mal amada e que não se importa com a estética corporal também é excludente.

O que me indigna não é a beleza das divas do Carnaval  – cada um cuida do seu corpo do jeito que achar melhor. O que enraivece é a normalização da nudez nos desfiles transmitidos pela televisão e repercutidos nos portais da Internet em notícias sobre a boa forma feminina.

A nudez feminina é permitida, desde que siliconada.

A nudez feminina é concedida, desde que nos padrões.

Também não quero dizer com isso que o Carnaval é uma festa do patriarcado.  Cada vez mais surgem blocos femininos e feministas, com mulheres não somente adornando com sua beleza a folia, mas também sendo protagonistas da batucada. Também se consolidam alas com integrantes plus size, o que tenho minhas dúvidas se é algo bom, por deixar as “gordinhas” e “barrigudinhas” separadas das mulheres com “beleza padrão”.

Nessa busca por uma referência literária para esse desabafo carnavalesco e feminista achei dois livros interessantes.

O primeiro é um clássico da terceira onda feminista: O Mito da Beleza, de Naomi Wolf.  No trecho selecionado, há uma ponderação sobre essa falácia de que as mulheres não podem ser bonitas E inteligentes:

A cultura estereotipa as mulheres para que se adequem ao mito nivelando o que é feminino em beleza-sem-inteligência ou inteligência-sem-beleza. É permitido às mulheres uma mente ou um corpo, mas não os dois ao mesmo tempo. Uma alegoria comum que ensina esse fato às mulheres é a ligação entre uma feia e uma bonita: Lia e Raquel no Antigo Testamento, Maria e Marta no Novo; Helena e Hermia em Sonho de uma noite de verão; Anya e Dunyasha em O jardim das cerejeiras de Tchecov; Violeta e Dulçurosa Suíno em Ferdinando; Glinda e a Bruxa Má do Oeste em O Mágico de Oz; Mary e Rhoda em The Mary Tyler Moore Show; e assim por diante. A cultura machista parece se sentir melhor ao imaginar duas mulheres juntas se elas puderem ser definidas como um fracasso e um sucesso de acordo com o mito da beleza.

O outro livro é Ao Acaso – Mulheres Livres, Mamilos Polêmicos, da ilustradora brasileira Manuela Cunha Soares. A obra é constituída por desenhos, como a imagem de capa desse texto. O livro é uma ode à diversidade e à beleza que rompe padrões e estereótipos e está disponível para download gratuito no formato e-book.  Confiram mais alguns belos desenhos de Manuela.

Acredito que a nudez como libertação ainda é uma utopia em um país com tantos feminicídios como o Brasil. Mas também já houve um tempo em que as mulheres votarem era uma utopia e foi preciso a luta das sufragistas para que o voto feminino fosse uma realidade.

Por isso, o  dia 8 de Março deve ser um dia de luta por um mundo com menos desigualdade e opressão.  Vamos às ruas?

 

Imagem: Reprodução/ Ilustração Manuela Cunha Soares