Voos Literários

Misoginia na política, um mal a ser combatido

Flávia Cunha
21 de janeiro de 2022

Misoginia em Mulheres e poder – um manifesto

“Quais são os fundamentos culturais da misoginia na política ou no ambiente de trabalho e quais são suas formas[…]? Como e por que as definições convencionais de “poder” (ou de “sabedoria” , “perícia” e “autoridade”) que trazemos em mente excluem as mulheres? 

O livro de autoria da professora britânica Mary Beard é uma boa fonte de consulta para entender as origens históricas da misoginia. De acordo com a especialista, o ódio às mulheres continua infelizmente tendo espaço na atualidade, principalmente na política.

Realidade brasileira

Contudo, a misoginia, assim como o machismo, podem ser sutis. Como o apagamento ou a falta de protagonismo recorrente das mulheres em determinados setores da vida pública. Se pensarmos no cenário político do Brasil 2022, já sabemos alguns fatos sobre o próximo presidente da República. Afora alguma mudança muito grande no cenário atual, assumirá o cargo um homem, branco, com 50 anos de idade ou mais. Mesmo com as mulheres sendo a maioria do eleitorado em nosso país, a eleição de Dilma Rousseff à presidência, nos já distantes anos de 2010 e 2014, parece ter sido um fato isolado na política nacional.

Desigualdade recorrente

E não é apenas no cargo máximo da República brasileira que a presença feminina é desigual. No Congresso Nacional, apenas 15% das cadeiras são ocupadas por parlamentares do sexo feminino. As desculpas dos conservadores para essa desproporção gigantesca vão desde falta de interesse das mulheres por política até o mais completo silêncio sobre o tema. No entanto, para quem estiver disposto a se dar conta, os motivos são o machismo estrutural e a misoginia, que conferem uma camada de violência e agressão simbólica para as mulheres que conseguem ser eleitas.

Para piorar, o machismo faria com que a maior parte do eleitorado feminino considerasse candidatas menos preparadas para ocupar determinados cargos eletivos. Afinal, não teve um político brasileiro que há poucos anos falou que mulher era ótima apenas para saber o preço dos produtos nos supermercados? Dentro desta visão deturpada e conservadora, elementos tão domésticos da sociedade não estariam preparados para serem deputadas, senadoras e presidentes.

Golpe misógino

E por falar em presidente ou presidenta, chegamos a um dos pontos mais difíceis de abordar até dentro da esquerda brasileira. Apesar do consenso para esse grupo de que houve um golpe parlamentar, o caráter misógino do impeachment de Dilma Rousseff é muitas vezes minimizado até por integrantes do PT.

Na visão que compartilho com militantes feministas, o golpe foi orquestrado por homens que odiavam Dilma não só por seu partido político. Mas, principalmente, pela ex-presidente ser uma mulher sem os atributos de doçura, submissão e beleza padrão valorizados por machistas.

Machismo e misoginia à esquerda

Para além dos antipetistas, a misoginia na política também contamina o espectro de esquerda. Prova disso foi o comentário de Washington Quaquá, vice-presidente nacional do PT, sobre a ausência de Dilma em um jantar. De acordo com o dirigente, Dilma não teria sido convidada ao evento, que contou com a presença do ex-presidente Lula e de Geraldo Alckmin, ex-tucano ventilado como vice do petista, por ser irrelevante politicamente. 

As declarações de Quaquá, por sua vez, geraram revolta dentro de integrantes da própria legenda, que consideraram a fala misógina e machista. Confira aqui a nota da Secretaria Nacional de Mulheres do PT.

Depois deste incidente, a reação de Quaquá, como machista “raiz” que demonstra ser, foi se dizer atacado e denunciar uma suposta tentativa de calarem sua voz de homem branco não consciente de seus privilégios. 

Para a evolução dos “esquerdomachos”

De uma maneira geral, ressalto que seria ótimo se a misoginia e o machismo fossem comportamentos recorrentes só na extrema direita. Pois daí, nós, mulheres, sofreríamos bem menos. Bastaria saber em quem os homens da nossa convivência votaram para estarmos “a salvo” da possibilidade de desdém, achincalhe ou desprezo sobre quem somos enquanto sujeitos políticos.

Coincidência ou não, Lula dias depois teve um encontro com Dilma e fez questão de postar a foto em suas redes sociais. Lula, então, não é machista? Sinceramente, considero muito improvável que um homem hetero de 76 anos não tenha, dentro de si, resquícios de machismo estrutural.  Mas, ao menos, o ex-presidente não vai a público desmerecer uma mulher, como fez o companheiro de partido. Nesse sentido, ele está anos-luz à frente de Jair Bolsonaro, que é machista (e racista e homofóbico…) 

Porém, se os homens de esquerda quiserem evoluir de verdade, precisam parar de se glorificar na comparação com bolsonaristas. Pois precisam mesmo é começarem a enxergar as próprias falhas e evoluírem, de verdade. 

Outros livros que inspiraram esse texto

Impeachment e misoginia nas redes sociais, de Rafael Maracajá Antonino – A obra investiga 

as conotações sexistas dos ataques sofridos na Internet pela então presidente Dilma Rousseff depois dos protestos de 2013. Leitura essencial para quem ainda duvida do ódio exacerbado à Dilma apenas pelo fato de ser uma mulher no comando de um país.   

O conto da aia, de Margaret Atwood – Muito já se falou sobre esse best-seller escrito nos anos 1980 e que voltou a ganhar atenção do público com uma bem-sucedida adaptação para série. Para quem teme ditaduras, é uma leitura assustadora, pois esta distopia mostra as consequências brutais para as mulheres da falta de democracia e do conservadorismo religioso. 

Imagem de capa: Arte/Canva

Imagem Dilma e Lula: Ricardo Stuckert/Instagram





 

 

 

PodCasts

BSV Especial Coronavírus #74 As mentiras de Bolsonaro na ONU

Geórgia Santos
22 de setembro de 2021

Nesta semana, uma série de vergonha: as mentiras de Bolsonaro na ONU e o machismo escancarado na CPI da Covid

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O presidente Jair Bolsonaro foi responsável pelo discurso de abertura da 76ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, nos Estados Unidos. Ele foi responsável, também, pela vergonha que os brasileiros passaram no evento.

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Afinal, ele mentiu. Mentiu muito

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Mentiu sobre não haver corrupção no governo, mentiu sobre o Brasil ter estado á beira do socialismo, mentiu sobre a política ambiental, mentiu sobre a economia, sobre o auxílio emergencial, mentiu sobre a pandemia, mentiu que as manifestações do 7 de setembro foram as maiores da história. E como se não bastasse, reforçou a negação da ciência ao defender o mentiroso tratamento precoce contra a Covid-19.

E a vergonha só aumenta, porque o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, está quarentenado em Nova York porque testou positivo para Covid. Isso mesmo.

Por aqui, um depoente da CPI da Covid se encarregou da vergonha. O ministro Wagner do Rosário, da Controladoria-Geral da União, chamou a senadora Simonte Tebet (MDB-MS) de “descontrolada”.

Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no SpotifyItunes e Castbox

 

Vós Pessoas no Plural · BSV Especial Coronavírus #74 As mentiras de Bolsonaro na ONU
Voos Literários

Feminismo para quê? (Ou quem lava louça em casa)

Flávia Cunha
6 de março de 2020

Esse é o primeiro de quatro textos com sugestões de leituras e provocações a respeito da necessidade do feminismo nos dias atuais. Na estreia dessa série, sera abordada a divisão de tarefas domésticas entre homens e mulheres.

Com o avanço do conservadorismo nos últimos anos no Brasil, cada vez mais se menospreza a importância do movimento feminista para que as mulheres tenham adquirido mais direitos enquanto cidadãs, além de terem obtido independência e autonomia nas relações sociais e também no ambiente doméstico. Ao ler cada vez mais comentários femininos dizendo que “não precisam de feminismo para nada”, “feministas são mal-amadas” ou “feminazis com sovacos peludos”, considero necessário fazer um rápido resgate do quanto comportamentos hoje vistos como naturais foram conquistas adquiridas por meio da luta de mulheres que foram, no seu tempo, chamadas de radicais ou loucas.

Direito ao voto. Usar calças compridas. Andar de bicicleta. Viajar desacompanhada.
Morar sozinha. Ter autonomia sobre o próprio corpo, mesmo dentro do casamento.
Direito ao divórcio. 

Todos esses exemplos já foram, em algum momento, considerados inadequados ou proibidos para mulheres ocidentais. Uma das precursoras da segunda onda do movimento feminista, Betty Friedan, lançou em 1963 o livro A Mística Feminina. A ativista entrevistou norte-americanas que seguiam os preceitos sociais vigentes nos anos 1940 e 1950, sendo em sua esmagadora maioria donas-de-casa, atormentadas por não terem uma vida própria e dedicarem-se apenas a suas famílias. 

No final da obra, Betty Friedan questiona:

“Quem sabe o que será a mulher quando finalmente livre para ser ela mesma? Quem sabe qual a contribuição da sua inteligência quando esta puder ser alimentada sem sacrifício do amor? Quem sabe das possibilidades do amor quando o homem e a mulher compartilharem não só dos filhos, do lar, de um jardim, da concretização de seu papel biológico, mas também das  responsabilidades e paixões do trabalho que constrói o futuro humano e traz o pleno conhecimento da personalidade? Mal foi iniciada a busca da mulher pela própria identidade. Mas está próximo o tempo em que as vozes da mística feminina não poderão abafar a voz íntima que a impele ao seu pleno desabrochar.”

O leitor mais cético pode argumentar que o livro de Betty Friedan está ultrapassado, que em pleno século 21 não precisamos de feminismo para nada, já que agora as mulheres estão em pé de igualdade com os homens. Mas será mesmo? Se pegarmos o singelo item divisão de tarefas domésticas, poucas mulheres estão livres da sobrecarga de tomar para si essa atividade (não remunerada e invisível) e precisar conciliar esse trabalho com seus empregos.

Em O homem infelizmente tem que acabar, da escritora gaúcha Clara Corleone, lançado no final de 2019, ela cita como as mulheres – mesmo as mais “fodonas”- seguem em geral sendo as cuidadoras das relações, da casa e da família:

“Não há fator biológico que justifique as mulheres estarem sempre pensando na administração da casa e os homens, não. É completamente cultural. A mulher é educada para cuidar – cuidar do lar, cuidar do corpo, cuidar do marido, cuidar dos filhos, cuidar dos relacionamentos. Por isso a mulher normalmente tem a saúde melhor que o homem, por exemplo, e por isso a mulher tende a ser mais delicada nas relações. […] Mulheres trabalham muito com esse conceito de cuidado, por mais agressivas/ da pá virada, esse negócio de cuidado gruda na gente. Normalmente somos nós que deixamos o emprego quando alguém da família fica doente. Isso diz muito sobre a forma como somos educadas.”

Por isso, espero que a mulherada ativista siga protestando por esse e outros motivos (fim violência contra a mulher e feminicídios, direito ao aborto, igualdade salarial…). Mudanças só acontecem quando pessoas saem de suas zonas de conforto e questionam os padrões vigentes. E isso não tem a ver com esquerda ou direita. Os famosos esquerdomachos estão aí para provar isso. Eles querem que os proletários de todo mundo se unam por melhores condições de trabalho, desde que, em casa, a esposa siga lavando a louça, cuidando de suas roupas e sendo a responsável pela faxina. Aos meus leitores de esquerda do sexo masculino, alerto que repensar pequenas atitudes é a verdadeira revolução.

Às mulheres cis e trans, desejo um 8 de março de muita luta e de conscientização da importância do feminismo na nossa sociedade.

“Ser feminista continua sendo defender a maioria silenciosa das mulheres, ajudá-las a libertarem-se e adquirir seus direitos.” – Isabel Allende, escritora chilena

Imagem: Achim Thiemermann/Pixabay

Voos Literários

Vinicius, as feias (e as bonitas) não te perdoam

Flávia Cunha
30 de outubro de 2019

Recentemente, umas das páginas de humor e deboche que eu mais gosto, Ajudar o Povo de Humanas a Fazer Miçanga, postou esse meme sobre Vinicius de Moraes.    

A frase, infeliz, sobre a beleza ser fundamental é do poema Receita de Mulher, publicado pelo poetinha em 1957. Para minha surpresa, vi comentários, inclusive femininos, defendendo Vinicius, dizendo que a frase estava fora de contexto, uma das maiores desculpas para justificar erros do presente e do passado. Mas vamos lá, em que contexto Vinicius de Moraes falou esse verso pavoroso? Pois foi justamente na abertura do poema: 

“As muito feias que me perdoem //  Mas beleza é fundamental // É preciso //  Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso // Qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture // Em tudo isso”.

Vamos pensar junto com o poeta lá no fim da década de 1950. Ele defende que a mulher precisa ser bela, ter qualquer coisa de flor e de dança. Então, além de bonita, a mulher ideal da poética de Vinicius precisa ser delicada e graciosa. Tudo bem, Vinicius, a liberação sexual feminina ainda não era uma realidade e o feminismo engatinhava no mundo. O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, tinha sido lançado em 1949. Porém, a obra no Brasil ainda tinha pouca repercussão na época em que Vinicius ficava tentando ensinar às mulheres como ser ou se comportar.

Na Internet do século 21, algumas pessoas afirmaram que o poema em questão falava em “beleza interior”. Pois sou obrigada a discordar, não por implicância, mas porque os versos em si são bastante claros ao apontar apenas aspectos físicos femininos, como no trecho a seguir:

“Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos, então  // Nem se fala, que olhem com certa maldade inocente. Uma boca // Fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência. // É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos // Despontem, sobretudo a rótula no cruzar as pernas, e as pontas pélvicas // No enlaçar de uma cintura semovente. // Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteiras // É como um rio sem pontes. Indispensável // Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida // A mulher se alteia em cálice, e que seus seios // Sejam uma expressão greco-romana, mais que gótica ou barroca.”

Como um todo, o poema é mesmo uma receita, com instruções para as mulheres. Porém, é uma receita bastante cruel, já que as feias que perdoem o poeta, mas beleza seria fundamental. Mesmo com a ressalva de tantas décadas que nos separam da publicação desse texto, sabemos que a ditadura da beleza segue firme e forte. O Brasil continua campeão no ranking de cirurgias plásticas e a obsessão feminina pelo corpo perfeito ainda permanece bem maior do que a masculina. 

Claro que a discussão começa com uma brincadeira virtual. Porém, julgo necessário ressaltar. Mesmo que Vinicius de Moraes estivesse lindo em qualquer foto, ele não teria o direito de julgar a aparência alheia. Mas, na década de 1950, não havia essa visão. Tanto que um dos poetas mais consagrados do país escreveu, publicou e ficou famoso e respeitado mesmo com letras de música e poemas bastante questionáveis para a nossa visão contemporânea. Sigo admirando o poetinha, ele deixou um legado inegável para a poesia e a música brasileira. Mas não dá para passar pano para esse verso. 

“Vinicius que me perdoe,

Mas respeitar a aparência de todas as mulheres é que é fundamental.”

O poema completo está disponível no site oficial do escritor.

 

 

PodCasts

Sobre Nós # 3 |  Machismo

Geórgia Santos
4 de outubro de 2018

O movimento #elenão não surge à toa. É um grito de desabafo. São as mulheres dizendo que não vão mais aguentar. No Sobre Nós desta semana, atores interpretam relatos reais de mulheres que sofreram com o machismo no ambiente de trabalho – extraídos do projeto Everyday Sexism. E relatos reais  de homens machistas – extraídos de comentários em sites de notícia. A direção é da Raquel Grabauska.

 

Tão série

The Handmaid´s Tale – Quando a ficção está muito perto da realidade

Geórgia Santos
2 de dezembro de 2017

Recomendar a série The Handmaids Tale ( O conto da Serva, em tradução livre) é um tanto desconfortável diante do contexto político no qual estamos inseridos. A obra da Hulu é uma adaptação do livro homônimo de Margaret Atwood, que apresenta um cenário distópico em que mulheres férteis são escravizadas por homens poderosos que as estupram com fins de reprodução.

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É quase cruel falar disso em um momento em que 18 homens tiram o direito de uma mulher abortar o fruto de um estupro

Mas é necessário

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The Handmaid´s Tale se passa em um futuro próximo no que é conhecido como a República de Gileade, uma teonomia cristã e militar que ocupa o que antes se conhecia por Estados Unidos da América. A nação é controlada por um grupo fundamentalista evangélico autointitulado “Filhos de Jacó”, que suspende a Constituição dos EUA com o pretexto de restaurar a ordem. O que vale, então, é a lei de Deus – o Deus no qual eles acreditam, no caso.

O novo regime se baseia na restauração, com o objetivo de reorganizar a sociedade americana em torno de um novo modelo totalitário e militarizado inspirado no Antigo Testamento. A sociedade é dividida em castas e os direitos das mulheres são retirados imediatamente – são, inclusive, proibidas de ler.

A produtora executiva da série, Elisabeth Moss, interpreta a narradora da história, a serva Offred, cujo nome significa literalmente Of-Fred. Ou seja, “De (propriedade de) Fred”. Ela faz parte de uma classe de mulheres que é mantida única e exclusivamente para fins reprodutivos, passando de senhor em senhor para procriar. Elas são crucias para a perpetuação da humanidade em um mundo em que a maioria das pessoas é estéril devido à poluição e doenças sexualmente transmissíveis.

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Trata-se de uma história em que as complexas camadas revelam as inúmeras formas que a opressão às mulheres pode assumir. Inclusive por mulheres

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Conforme a intimidade da protagonista é revelada, testemunhamos a viagem de Offred à lembrança de uma vida feliz em que podia ter uma conta bancária, em que podia usar a roupa que quisesse, conversar com quem bem entendesse. Ler. Mas também testemunhamos o egoísmo de Serena Joy (Yvonne Strahowski), a mulher que arquitetou a opressão – ela sempre acreditou que as mulheres deveriam servir.

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Eu só espero que qualquer semelhança seja mera coincidência

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O problema é que são coincidências demais. Basta acompanhar a TV Câmara para ver que a decisão sobre a saúde reprodutiva das mulheres já está nas mãos de homens. Neste mesmo canal, assistimos estes mesmos homens tomarem essas mesmas decisões com base em uma interpretação particular da Bíblia. Em qualquer comentário do Facebook há traços de repressão sobre o que uma mulher deve vestir ou como se comportar.

Aproveitemos, então, enquanto ainda podemos ler. É uma ótima oportunidade para compreender a importância do feminismo e da luta por direitos iguais. Da luta por uma vida decente.

Enquanto produto de entretenimento, apesar da bela fotografia e do suspense, é uma obra de linguagem arrastada por vezes, que atrasa o engajamento inicial. Mas é uma observação absolutamente pessoal, que resistiu à vontade de acompanhar aquela realidade tão distante e tão próxima. É uma produção importante e que deve ser vista. E que bom que eu insisti.

Toda mulher – e todo homem – precisa assistir ao que pode ser o nosso não tão impraticável futuro.

 

Imagens: Divulgação

Reporteando

#JuntosContraoMachismo nas redações

Évelin Argenta
28 de setembro de 2017

Eu tinha um editor na antiga redação onde trabalhava que, por falta de noção ou caráter (nunca saberei), mantinha um blog com anotações e devaneios pessoais. A maioria dos textos girava em torno das personagens da redação, mulheres, quase sempre. Lá era possível ler fofocas e bastidores que somente os contemporâneos dele poderiam decifrar. Piadas internas, lembranças de fatos que provocavam gargalhadas entre o macharedo.

O fulano, aí já em tempos vividos por mim, começou a escrever sobre as estagiárias. Por desconhecimento ou medo de delatar esse tipo de comportamento na redação onde recém tinham sido admitidas (depois de um longo processo seletivo que inflou seus egos e murchou seus sonhos) nenhuma delatou. Eram tempos diferentes e essa juventude feminista ainda era tímida. Todo mundo dizia “ah, o fulano é louco”, “o fulano é um personagem”, “o fulano é doente”. Ninguém, no entanto, deixava de rir das piadinhas machistas do fulano.

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Pois bem, amigos, os tempos (graças às deusas todas) estão mudando. Hoje, uma coluna sobre a estagiária jamais passaria em branco. E não passou

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O desastre textual assinado pelo colega Guilherme Goulart, do Correio Braziliense, levantou a discussão e um grupo de jornalistas de São Paulo fez a discussão ganhar corpo, alma e voz.

Não é de hoje que as Jornalistas Contra o Assédio me orgulham. Além de amigas, talentosas repórteres, editoras, redatoras, âncoras premiadas, elas são o “sapato na máquina”, aquele que faz o trabalho parar e pensar que algo está sendo feito de forma errada. Essa semana, o coletivo lançou a campanha #JuntosContraoMachismo.

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A série de vídeos mostra homens reproduzindo frases que há anos são ouvidas por nós, mulheres, nas redações do país. A coleção tem pérolas como “a fulana trabalha como homem”,  “você saiu com algum diretor antes de virar apresentadora?” e por aí vai

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As frases – não que isso seja surpresa – foram ouvidas REALMENTE por colegas.  Elas surgiram a partir de uma consulta com um grupo de mais de cinco mil mulheres jornalistas de todo o Brasil. As profissionais foram consultadas sobre que tipo de assédio já tinham sofrido. O coletivo recebeu mais de DUZENTAS frases.

Participaram da #JuntosContraoMachismo nomes como Chico Pinheiro, Juca Kfouri, Fernando Rodrigues, Felipe Andreolli, Cazé, Mário Marra, Fábio Diamante, Marcus Piangers, Matheus Pichonelli, Abel Neto, Guilherme Balza, Cauê Fabiano, Nilson Xavier, Thiago Maranhão, Leonardo Leomil, Guilherme Zwetsch, Ricardo Gouveia, Fernando Andrade, Márcio Porto, Thiago Uberreich, Tiago Muniz, Rafael Colombo, Philipe Guedes, Chico Prado, Reinaldo Gottino e Haisem Abaki.

Os vídeos da campanha #TodosContraoMachismo estão disponíveis na página no Facebook do coletivo Jornalistas Contra o Assédio, no twitter e, espero, na tua rede social, também. A campanha vai até o dia 08/10.

O machismo é muito sério. Ele não diz respeito apenas a mulheres.

Somos #JornalistasContraoAssédio
E vamos #JuntosContraoMachismo

Voos Literários

Não é fácil ser mulher. Mas a gente segue na luta.

Flávia Cunha
5 de setembro de 2017

Nos últimos dias, um nó na garganta me invade com o debate a respeito da decisão judicial sobre o caso da ejaculação em cima de uma passageira de um ônibus em São Paulo. Não foi constrangimento. Não foi? Nem entro no mérito do direito criminalista, que não domino, mas na sensação de revolta provocada pelo teor da sentença, escrita por um homem.

Évelin Argenta, uma das colaboradoras do blog Reporteando, comentou nesse baita texto sobre como é difícil tratar o assunto como pauta ao conversar com colegas do sexo masculino. Parece que existe uma barreira interna em grande parte dos homens, que faz com que esse tipo de assunto seja considerado apenas uma vitimização da condição de ser mulher, quando o papo é bem mais complexo do que esse.

No caso da literatura brasileira, o machismo não é de hoje. Lá em 1897, uma mulher ajudou a fundar a Academia Brasileira de Letras. Era a carioca Júlia Valentina da Silveira Lopes de Almeida, uma ilustre desconhecida nos dias atuais. Apesar de ser uma escritora talentosa, foi barrada por ser mulher. Essa matéria aqui explica bem a situação, que está longe de ser mimimi. (Aliás, odeio esse termo, usado para tornar pejorativo causas essenciais nos dias atuais. Entre elas, o feminismo).

A aclamada escritora Lygia Fagundes Telles comentou, durante entrevista ao programa Roda Viva, que teve dificuldades de se impor no mundo da literatura por ser jovem e mulher. No início da sua carreira, ela relata que os comentários a seu respeito eram dirigidos à sua aparência e não à sua produção literária:

“Eu queria que me respeitassem e não respeitavam porque vinham com um negócio de beleza, eu ficava uma fúria, tá entendendo? Porque eu dizia: eu estou escrevendo tão bem e vocês não estão falando do meu texto, estão falando da minha cara. Isto me deixava muito infeliz e eu me sentia perseguida.”

Outra que sempre enfrentou barreiras na literatura foi Hilda Hilst. Nascida no interior de São Paulo, filha de pais separados, era extremamente anticonvencional para a época em que viveu. Na sua literatura, fez poesias “sérias” e literatura erótica, tachada por muitos de pura pornografia. Falecida em 2004, aos 74 anos, ela comentou muitas vezes sobre o assunto:

“Existe um grande preconceito contra a mulher escritora. Você não pode ser boa demais, não pode ter uma excelência muito grande. Se você tem essa excelência e ainda por cima é mulher, eles detestam e te cortam.”

O trecho acima de entrevista de Hilda à revista A-Z.

Mas como diz a bela canção interpretada por Maria Bethânia, “Não mexe comigo que eu não ando só”. A mulherada segue na luta, ainda precisando se fazer respeitar em suas áreas de atuação. Entre elas, a literatura, essa forma de arte tão menosprezada no Brasil.

Samir Oliveira

Precisamos repetir o óbvio: ser gay não te impede de ser machista

Samir Oliveira
9 de março de 2017
Foto: Adria Meira

Nesta semana marcada pelo Dia Internacional da Mulher, o assunto desta coluna não poderia ser outro que não o machismo perpetuado por homens gays. Trata-se de algo tão intrínseco em nossa própria sociabilidade que pode ser difícil para alguns identificar determinados comportamentos e discursos como integrantes de uma cultura machista. Façamos, então, um esforço radical de compreensão.

Eu aprendi muito com minhas amigas. Especialmente com minhas amigas lésbicas. À medida em que passei a conviver mais com as outras letras da população LGBT, fui percebendo o quanto o segmento “G”, ao qual pertenço, está na vanguarda do atraso quando olhamos para o conjunto de nossa comunidade. Não me refiro apenas ao movimento gay enquanto um corpo político – justamente apontado como centralizador de toda causa LGBT, valendo-se de privilégios que lésbicas, bissexuais e transexuais não possuem. Refiro-me aos indivíduos gays enquanto sujeitos, suas dinâmicas internas de convivência e linguagem.

Ao deixar de me relacionar apenas com amigos heterossexuais passei a me libertar de diversas formas ao estabelecer vínculos com outros sujeitos como eu. Outros homens gays. Mas hoje percebo que, no que diz respeito ao machismo, apenas transitei do convívio com comportamentos machistas heterossexuais para o convívio com comportamentos machistas vindos de homossexuais.

Ainda é muito comum, em círculos de amizade formados por homens gays, ouvir absurdos misóginos

Ouvir expressões que humilham mulheres, que expressam a ideia de que homens gays possuem nojo da genitália feminina. Também não são raras as vezes em que homens gays se apropriam de elementos socialmente tidos como “femininos” como forma de rebaixamento, ecoando a noção de que tudo que é associado a uma ideia de “feminino” é inferior. Esses comportamentos, muitas vezes, não são reproduzidos de maneira a constituir conscientemente uma ação machista. Mas oprimem da mesma forma. Não me custa nada entender por que minhas amigas lésbicas preferem sair com meninas lésbicas, interagir com outras mulheres. Elas se sentem mais seguras e acolhidas, a salvo de comentários de seus amigos gays que, mesmo de forma inconsciente, reproduzem machismo e até mesmo lesbofobia.

Isso para não falar das mulheres transexuais e travestis. Estas estão sujeitas a toda forma duvidosa e opressora de humor por parte de homens gays. O tempo inteiro.

Ainda hoje é preciso repetir o óbvio: que ser gay não significa portar um passe livre para a reprodução de outras opressões. Que ser gay não te impede de ser machista. A força da luta das mulheres despertou em mim um alerta permanente a este tipo de conduta. Eu preciso do feminismo para ser viado. Porque homofobia e machismo andam de mãos dadas, massacrando juntas tudo que é associado a conceitos socialmente construídos de “feminilidade”. Porque durante toda a minha infância eu fui ensinado a entender que ser “mulherzinha” era ser inferior. Que não havia “xingamento” pior para um menino do que ser chamado de menina. Que eu não podia usar canetas coloridas na escola, porque isso “era coisa de bichinha”. Que eu não podia lavar louça em casa, porque “isso é coisa de mulher”. Que se eu não “andasse como um homem” poderia ser insultado nas ruas. A maioria dos ataques e insultos homofóbicos tem suas raízes cravadas no ódio a qualquer ideia socialmente associada ao feminino. É inaceitável que homens gays, vítimas desses mecanismos perversos de opressão sistêmica, também reproduzam a lógica das engrenagens que os sufocam.

Foto: Adria Meira

Geórgia Santos

Feminismo versus Machismo

Geórgia Santos
8 de março de 2017

Dia Internacional da Mulher. Um dia escolhido para celebrar a força das mulheres e homenageá-las e parabenizá-las e exaltá-las. Mais do que isso, um dia escolhido para lembrar a luta que cada mulher trava todos os dias para conquistar seus direitos e espaços em uma sociedade em que o machismo é tão enraizado que sequer percebemos os padrões que reproduzimos.

Hoje pela manhã, cometi a asneira (que é quase sadismo) de das uma espiada no que estava sendo dito nos comentários de sites de notícia. Abri uma matéria do G1 sobre os desafios do Gênero em 2017 e dei de cara com isso:

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“Tem que proibir aborto sim. Não quer filhos, fecha as pernas” (Fernando)

“O Problema é que essas feminazis querem dar sem limites” (Daniel)

“Quando percebo que a cidadã é feminista eu me afasto, por que sei que tem a cabeça pequena, eu gosto de mulher feminina.” (Anônimo)

“Abriu as pernas tem que assumer (sic)” (Celso)

“Pra finalizar, criticar um machista, sendo feminista, é igual a criticar um bandido por roubar e fazer a mesma coisa…..” (Anônimo)

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São apenas cinco comentários, mas os problemas contextuais são tantos que mal sei por onde começar. Mas acho importante usar esse espaço pra debater algumas coisas.

O assunto em questão era o aborto. Eu entendo que não seja um tema que se restrinja à agenda feminista, afinal, envolve o conceito de onde começa a vida, a chamada bioética, a religião e mais uma série de variáveis. Eu, particularmente, sou a favor da regularização do aborto, mas isso não vem ao caso. O que vem ao caso são alguns absurdos saltam aos olhos:

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  1. 1. Os comentários responsabilizam única e exclusivamente a mulher pela ocorrência da gravidez;
  1. 2. Comparam feministas, que nada mais são que mulheres que lutam por direitos iguais, com nazistas;
  1. 3. Falam de feministas como mulheres masculinizadas, exclusivamente. Feminista também pode usar batom vermelho, saia rodada e salto alto. E também pode ser masculina se quiser, ninguém tem nada com isso;
  1. 4. Mesclam a luta pela regularização do aborto a um dos mais antigos estereótipos a que as mulheres livres sexualmente são associadas: putas;
  1. 5. Por fim, o maior de todos os problemas, achar que feminismo é o mesmo que machismo.

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Diferença entre machismo e feminismo

Machismo é um conceito que se baseia na supervalorização do homem em detrimento da mulher. Machismo é quando uma mulher é desvalorizada ou prejudicada ou preterida pelo simples fato de ser mulher. Quando alguém comenta que uma mulher não serve pra determinada função, é machismo.

Feminismo é um movimento social e político que nasceu no final do século XIX com o objetivo de conquistar o acesso a direitos iguais entre homens e mulheres. Quando alguém fala que uma mulher deveria ganhar o mesmo salario que o homem que exerce a mesma função, é feminismo.

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Percebe a diferença? O machista acha que o homem é melhor que a mulher, a feminista quer que homens e mulheres sejam tratados da mesma forma

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Sociedade machista

Somos tão machistas que temos a ousadia de manchar o feminismo com o sufixo “nazi”, uma expressão que lembra o pior da espécie humana. Somos tão machistas que temos a audácia de responsabilizar a mulher por uma gravidez. Somos tão machistas que temos a cara de pau de pagar 30% a menos às mulheres, pelo simples fato de falta de pênis. Somos tão machistas que odiamos a namorada do nosso amigo só porque ela existe pra ele. Somos tão machistas que acreditamos no fato de que mulher gordinha não presta. Somos tão machistas que levamos adiante a história de que mulher bem sucedida deu pra alguém. Somos tão machistas que nem percebemos que somos machistas.

Mas deu, né.