Voos Literários

A violência contra a mulher é diária

Flávia Cunha
5 de dezembro de 2020

Após um novembro marcado por manifestações e campanhas de combate à violência contra a mulher, começamos dezembro com a repercussão de diversas denúncias de assédio moral e sexual envolvendo o humorista e ex-diretor da TV Globo Marcius Melhem. O ator reconhece ter sido “um homem tóxico”, mas nega as acusações de violência sexual.

LÓGICA PERVERSA

Infelizmente, acusações de assédio e de outros tipos de violência contra a mulher em geral têm uma característica bastante perversa. Inverte-se o jogo e o relato da assediada é que necessita de provas, duvidando-se da veracidade de testemunhos e questionando-se o comportamento feminino.

INCISIVA

Refletindo a respeito do assunto, lembrei da leitura recente que fiz do livro de crônicas/contos Aqui Dentro, de Nathallia Protazio. No texto “Incisiva”, a escritora relata a história de uma mulher que vê-se obrigada a receber, à noite sozinha em casa, um ex. Este homem, alcoolizado, faz chantagens para dormir na casa da protagonista. Ela, exausta, cede, mesmo com medo. Enquanto seu assediador está na sala do apartamento, a personagem permanece no quarto, onde começa a fazer digressões sobre o que pode acontecer a seguir:

“Transformá-lo em criminoso me transformava em vítima e eu não queria ser vítima de nada. Ou pior, vítima-cúmplice, afinal, fui eu quem abriu a porta. Sem querer assumir a verdade que eu estava, sim, sendo uma vítima e sem encontrar uma forma de sair daquela situação, à beira do desespero psicológico eu chorei.”

VIOLÊNCIA DIÁRIA

Sabemos que a situação vivida pela personagem criada pela escritora Nathallia Protazio no texto “Incisiva” está longe de ser uma fantasia. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública apontam que 45% das mulheres em situação de violência são agredidas diariamente. Em média, a cada 8 minutos uma mulher é estuprada no Brasil. 

No texto-título de sua obra, “Aqui Dentro”, Nathalia Protazio alerta para os inúmeros problemas enfrentados pelas mulheres:

“Cansada de amar o fato de ser mulher e viver num mundo contrário a isso. Todo mundo já enjoou de ouvir falar em como tudo é injusto. Feminismo. Machismo. Tudo que está errado. Salário mais baixo; mais títulos e menos carreira; violência doméstica; descaso governamental e preconceito institucional. A gente não pode se maquiar e colocar uma saia sem se lembrar que nascemos no planeta errado, e ainda tentam nos fazer acreditar que o que tá errado é o nosso gênero.”
Mas como Nathalia anuncia, no início do texto ‘Aqui Dentro”:  “Amanhã eu amanheço e renasço.”

Que tenhamos força para renascer, seguir resistindo (e tendo coragem para denunciar abusadores da vida real).

SOBRE A AUTORA E O LIVRO:

Nathallia Protazio é pernambucana, farmacêutica e escritora. Já morou em muitos lugares, incluindo São Paulo e Lausanne, Suíça. Hoje vive em Porto Alegre/RS, onde acaba de lançar o título Aqui Dentro, na coleção de bolso “A voz da Ancestralidade” pela Editora Venas Abiertas. O livro está disponível pelo Instagram da autora: @nathalliaprotazio.

Imagem de capa:  Nino Carè/Pixabay

Imagem da autora: Acervo Pessoal

Raquel Grabauska

O monstro pode estar logo ali

Raquel Grabauska
8 de dezembro de 2017

Nessa semana um funcionário CC da secretaria de cultura de Porto Alegre foi preso em flagrante num vôo entre Guarulhos e Porto Alegre. Ele foi acusado de ter estuprado uma menina de seis anos. Li várias notícias, discussões, pontos de vista a respeito. 

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Gente que admiro falou sobre esperar as provas

Gente que admiro falou em linchar

Eu fiquei zonza

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Já tive caso de abuso na família. Uma pessoa muito amada e próxima foi abusada quando criança. Nunca conseguiu contar para alguém.  Um dia me contou. Já tinham se passado 40 anos. E contou como se tivesse vivendo o dia. Cada detalhe. A dor, a culpa, a vergonha, o desespero. A marca que fica, não sai. Nunca.

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Isso não pode acontecer. Não pode. Lendo sobre essa notícia, mexi no baú da dor. Não pode acontecer. Não pode

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Li gente dizendo que o abusador tem bom caráter, que é pai de uma menina.  Isso é o mais assustador. Os abusadores normalmente são pessoas próximas das crianças. Que tem a confiança delas. Um parente, um amigo da família. Alguém que devia estar cuidando, protegendo. E isso é ainda mais assustador.

Não sei como foi o caso nesse vôo. Confesso que não quero nem ler mais a respeito. Não quero ler porque me dói nas entranhas. Por essa menina, pela pessoa que amo e foi abusada. Mas principalmente porque sei que isso acontece e vai continuar acontecendo. E isso não pode acontecer. Não pode.

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Duas em cada cinco crianças sofrem algum tipo de abuso sexual. Por isso, é interessante conversar com as crianças para alertá-las sobre adultos com comportamentos suspeitos. Pipo e Fifi é um livro infantil que funciona como uma ferramento de proteção, explicando a crianças que tenham mais de três anos de idade conceitos básicos sobre o corpo, sentimentos, convivência e trocas afetivas. Ele ensina a diferenciar toques de amor de toques abusivos. Clique aqui e conheça o projeto.

 

Reporteando

#JuntosContraoMachismo nas redações

Évelin Argenta
28 de setembro de 2017

Eu tinha um editor na antiga redação onde trabalhava que, por falta de noção ou caráter (nunca saberei), mantinha um blog com anotações e devaneios pessoais. A maioria dos textos girava em torno das personagens da redação, mulheres, quase sempre. Lá era possível ler fofocas e bastidores que somente os contemporâneos dele poderiam decifrar. Piadas internas, lembranças de fatos que provocavam gargalhadas entre o macharedo.

O fulano, aí já em tempos vividos por mim, começou a escrever sobre as estagiárias. Por desconhecimento ou medo de delatar esse tipo de comportamento na redação onde recém tinham sido admitidas (depois de um longo processo seletivo que inflou seus egos e murchou seus sonhos) nenhuma delatou. Eram tempos diferentes e essa juventude feminista ainda era tímida. Todo mundo dizia “ah, o fulano é louco”, “o fulano é um personagem”, “o fulano é doente”. Ninguém, no entanto, deixava de rir das piadinhas machistas do fulano.

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Pois bem, amigos, os tempos (graças às deusas todas) estão mudando. Hoje, uma coluna sobre a estagiária jamais passaria em branco. E não passou

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O desastre textual assinado pelo colega Guilherme Goulart, do Correio Braziliense, levantou a discussão e um grupo de jornalistas de São Paulo fez a discussão ganhar corpo, alma e voz.

Não é de hoje que as Jornalistas Contra o Assédio me orgulham. Além de amigas, talentosas repórteres, editoras, redatoras, âncoras premiadas, elas são o “sapato na máquina”, aquele que faz o trabalho parar e pensar que algo está sendo feito de forma errada. Essa semana, o coletivo lançou a campanha #JuntosContraoMachismo.

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A série de vídeos mostra homens reproduzindo frases que há anos são ouvidas por nós, mulheres, nas redações do país. A coleção tem pérolas como “a fulana trabalha como homem”,  “você saiu com algum diretor antes de virar apresentadora?” e por aí vai

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As frases – não que isso seja surpresa – foram ouvidas REALMENTE por colegas.  Elas surgiram a partir de uma consulta com um grupo de mais de cinco mil mulheres jornalistas de todo o Brasil. As profissionais foram consultadas sobre que tipo de assédio já tinham sofrido. O coletivo recebeu mais de DUZENTAS frases.

Participaram da #JuntosContraoMachismo nomes como Chico Pinheiro, Juca Kfouri, Fernando Rodrigues, Felipe Andreolli, Cazé, Mário Marra, Fábio Diamante, Marcus Piangers, Matheus Pichonelli, Abel Neto, Guilherme Balza, Cauê Fabiano, Nilson Xavier, Thiago Maranhão, Leonardo Leomil, Guilherme Zwetsch, Ricardo Gouveia, Fernando Andrade, Márcio Porto, Thiago Uberreich, Tiago Muniz, Rafael Colombo, Philipe Guedes, Chico Prado, Reinaldo Gottino e Haisem Abaki.

Os vídeos da campanha #TodosContraoMachismo estão disponíveis na página no Facebook do coletivo Jornalistas Contra o Assédio, no twitter e, espero, na tua rede social, também. A campanha vai até o dia 08/10.

O machismo é muito sério. Ele não diz respeito apenas a mulheres.

Somos #JornalistasContraoAssédio
E vamos #JuntosContraoMachismo