Voos Literários

Misoginia nas eleições e na vida em sociedade

Flávia Cunha
1 de setembro de 2022

Misoginia

  1. ódio ou aversão às mulheres
Fonte: Oxford Languages

A campanha eleitoral de 2022 é só mais um campo social no qual podemos observar a misoginia e o machismo cotidiano no Brasil. Até o momento, um episódio virou um símbolo misógino: os ataques de Jair Bolsonaro à jornalista Vera Magalhães durante o debate presidencial do dia 28 de agosto. Ofendido pelo comentário da jornalista sobre a conduta de desinformação e atraso na vacinação da covid-19, Bolsonaro reagiu da seguinte forma:

“Vera, eu acho que eu não podia esperar outra coisa de você. Acho que você dorme pensando em mim. Você tem alguma paixão em mim. Não pode tomar partido num debate como esse. Fazer acusações mentirosas a meu respeito. Você é uma vergonha para o jornalismo brasileiro.”

Machismo recorrente

A partir daí, o tema machismo na política esquentou o debate, com Bolsonaro como a figura central de crítica, principalmente das candidatas mulheres presentes no programa, Simone Tebet (MDB) e Soraya Thronicke (União Brasil).  A postura machista do atual presidente do Brasil não é uma novidade. Mas ele segue negando este fato. Em um evento com empresários em Brasília, dois dias depois do debate eleitoral, afirmou:

“Eu não ofendi a Vera Magalhães, só que ela bate em mim o tempo todo. Eu falei que ela… sonha comigo. Nada mais do que isso aí. Outra coisa, ela não fez uma pergunta, ela fez uma afirmação contra mim.”

Apesar do machismo evidente das duas declarações, o candidato pelo PL seguirá nessa narrativa de negação, que faz parte da conduta machista. Afinal, uma das formas de desmerecer uma mulher é justamente invalidar suas opiniões a respeito de um assunto. No caso, a jornalista Vera Magalhães afirma que a declaração de “dormir pensando nele” é, por si só, misógina. Além disso, para ela, a fala de Bolsonaro contribui para o machismo estrutural, ao associar o papel da mulher mesmo quando ela está exercendo seu trabalho a alguma conotação de cunho sexual.

Misoginia cotidiana

Para além das eleições, as mulheres enfrentam o machismo em suas relações cotidianas. De casos escancarados, como este de Bolsonaro, até o machismo sutil, com microagressões, inclusive no ambiente de trabalho.  Porém, para haver uma mudança de atitude na sociedade brasileira como um todo, é preciso haver uma conscientização sobre os prejuízos do machismo nas relações interpessoais.

Sendo assim, indico quatro sugestões de leitura que podem ser aconselhadas tanto para homens que queiram apoiar o feminismo quanto para mulheres que ainda não entenderam a importância da luta feminista. 

Dicas de leitura

Clube da Luta Feminista – Um manual de sobrevivência (para um ambiente de trabalho machista), de Jessica Bennett

Um guia divertido e prático sobre como se defender do machismo nas relações profissionais. Um viés interessante trazido pela autora é sobre comportamentos que não são notoriamente misóginos e que podem provocar dúvidas e inseguranças nas mulheres no ambiente corporativo. Entre eles, por exemplo, o caso da revista norte-americana Newsweek. Nos anos 1960 e 1970, era uma publicação notoriamente machista, o que deixou de ser décadas depois, quando Jessica Bennett foi repórter lá.

Confira um trecho:

“Certa vez, Gail Collins, colunista do New York Times, me contou que, se o machismo em sua época era de fato acachapante, pelo menos tinha uma espécie de vantagem: era fácil identificá-lo. Quando um sujeito passava a mão na sua bunda ou te dizia que ‘na Newsweek, mulher não escreve’, sem dúvida era injusto, mas pelo menos você reconhecia na hora. Era uma discriminação flagrante – machismo de papel passado e se encaixando na definição jurídica –, e não simplesmente uma ‘sensação’. (Será que aconteceu mesmo? Estou maluca? Será que só eu vi isto?)

Hoje, reconhecer o machismo está mais difícil do que antes. Tal como as microagressões que as pessoas negras suportam todos os dias – racismo dissimulado em forma de pequenos insultos ou desdém –, o machismo de hoje em dia é insidioso, vago, politicamente correto, e até mesmo simpático. São condutas indefiníveis, imensuráveis, escamoteadas, e dificílimas de acusar que talvez não sejam necessariamente intencionais nem conscientes. Às vezes as mulheres também incorrem nelas. Nada disso torna a coisa menos nociva. Na lida cotidiana, isso significa ver um homem instintivamente se voltar para uma mulher para ditar algo numa reunião, ou vê-la ser confundida com a auxiliar de escritório quando na verdade é a chefe.”

Mulheres na Luta 150 anos em busca de liberdade, igualdade e sororidade, de Marta Breen e Jenny Jordahl

Uma HQ com a trajetória de diversas mulheres importantes para o movimento feminista. O panorama destaca batalhas históricas, como a participação na política e a luta das mulheres contra a escravidão. A edição da editora Seguinte traz um posfácio sobre o feminismo no Brasil, que enriquece ainda mais este livro, de origem norueguesa.

Mulheres no jornalismo – práticas profissionais e emancipação social, organização de Marli dos Santos e Ana Carolina Rocha Pessôa Temer 

Este livro em formato digital da Faculdade Cásper Líbero está disponível gratuitamente aos interessados em se aprofundar nas especificidades de gênero de quem exerce a profissão de jornalista.

Confira um trecho:

“Como em outros segmentos do mundo do trabalho, o jornalismo está imerso no contexto da sociedade patriarcal, que desde seu surgimento se mantem à custa de um discurso baseado na questão econômica, o qual sustenta o poder familiar e político dos homens. Embora as conquistas femininas no mundo do trabalho se justificaram em grande parte pelas necessidades de sobrevivência e pelas mudanças nas instituições seculares, como a família, ainda hoje as mulheres sofrem com relações tensas no trabalho e discriminação de gênero, conforme apontam pesquisas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) […].”

E eu não sou uma mulher, de Bell Hooks

Um dos grandes méritos deste clássico feminista é demonstrar como a luta a favor do voto feminino nos Estados Unidos excluía mulheres negras e pobres.  Nesse sentido, considero a obra fundamental dentro do contexto eleitoral brasileiro atual. Levando em conta, por exemplo, o debate presidencial mencionado neste texto, somente com candidatos brancos e apenas duas pessoas sendo do sexo feminino. O racismo, inclusive, não foi um tema abordado ao longo deste debate, que também teve a ausência de jornalistas negros como apresentadores ou fazendo questionamentos.

Imagem: Band TV/ Reprodução


 

 

Voos Literários

Misoginia na política, um mal a ser combatido

Flávia Cunha
21 de janeiro de 2022

Misoginia em Mulheres e poder – um manifesto

“Quais são os fundamentos culturais da misoginia na política ou no ambiente de trabalho e quais são suas formas[…]? Como e por que as definições convencionais de “poder” (ou de “sabedoria” , “perícia” e “autoridade”) que trazemos em mente excluem as mulheres? 

O livro de autoria da professora britânica Mary Beard é uma boa fonte de consulta para entender as origens históricas da misoginia. De acordo com a especialista, o ódio às mulheres continua infelizmente tendo espaço na atualidade, principalmente na política.

Realidade brasileira

Contudo, a misoginia, assim como o machismo, podem ser sutis. Como o apagamento ou a falta de protagonismo recorrente das mulheres em determinados setores da vida pública. Se pensarmos no cenário político do Brasil 2022, já sabemos alguns fatos sobre o próximo presidente da República. Afora alguma mudança muito grande no cenário atual, assumirá o cargo um homem, branco, com 50 anos de idade ou mais. Mesmo com as mulheres sendo a maioria do eleitorado em nosso país, a eleição de Dilma Rousseff à presidência, nos já distantes anos de 2010 e 2014, parece ter sido um fato isolado na política nacional.

Desigualdade recorrente

E não é apenas no cargo máximo da República brasileira que a presença feminina é desigual. No Congresso Nacional, apenas 15% das cadeiras são ocupadas por parlamentares do sexo feminino. As desculpas dos conservadores para essa desproporção gigantesca vão desde falta de interesse das mulheres por política até o mais completo silêncio sobre o tema. No entanto, para quem estiver disposto a se dar conta, os motivos são o machismo estrutural e a misoginia, que conferem uma camada de violência e agressão simbólica para as mulheres que conseguem ser eleitas.

Para piorar, o machismo faria com que a maior parte do eleitorado feminino considerasse candidatas menos preparadas para ocupar determinados cargos eletivos. Afinal, não teve um político brasileiro que há poucos anos falou que mulher era ótima apenas para saber o preço dos produtos nos supermercados? Dentro desta visão deturpada e conservadora, elementos tão domésticos da sociedade não estariam preparados para serem deputadas, senadoras e presidentes.

Golpe misógino

E por falar em presidente ou presidenta, chegamos a um dos pontos mais difíceis de abordar até dentro da esquerda brasileira. Apesar do consenso para esse grupo de que houve um golpe parlamentar, o caráter misógino do impeachment de Dilma Rousseff é muitas vezes minimizado até por integrantes do PT.

Na visão que compartilho com militantes feministas, o golpe foi orquestrado por homens que odiavam Dilma não só por seu partido político. Mas, principalmente, pela ex-presidente ser uma mulher sem os atributos de doçura, submissão e beleza padrão valorizados por machistas.

Machismo e misoginia à esquerda

Para além dos antipetistas, a misoginia na política também contamina o espectro de esquerda. Prova disso foi o comentário de Washington Quaquá, vice-presidente nacional do PT, sobre a ausência de Dilma em um jantar. De acordo com o dirigente, Dilma não teria sido convidada ao evento, que contou com a presença do ex-presidente Lula e de Geraldo Alckmin, ex-tucano ventilado como vice do petista, por ser irrelevante politicamente. 

As declarações de Quaquá, por sua vez, geraram revolta dentro de integrantes da própria legenda, que consideraram a fala misógina e machista. Confira aqui a nota da Secretaria Nacional de Mulheres do PT.

Depois deste incidente, a reação de Quaquá, como machista “raiz” que demonstra ser, foi se dizer atacado e denunciar uma suposta tentativa de calarem sua voz de homem branco não consciente de seus privilégios. 

Para a evolução dos “esquerdomachos”

De uma maneira geral, ressalto que seria ótimo se a misoginia e o machismo fossem comportamentos recorrentes só na extrema direita. Pois daí, nós, mulheres, sofreríamos bem menos. Bastaria saber em quem os homens da nossa convivência votaram para estarmos “a salvo” da possibilidade de desdém, achincalhe ou desprezo sobre quem somos enquanto sujeitos políticos.

Coincidência ou não, Lula dias depois teve um encontro com Dilma e fez questão de postar a foto em suas redes sociais. Lula, então, não é machista? Sinceramente, considero muito improvável que um homem hetero de 76 anos não tenha, dentro de si, resquícios de machismo estrutural.  Mas, ao menos, o ex-presidente não vai a público desmerecer uma mulher, como fez o companheiro de partido. Nesse sentido, ele está anos-luz à frente de Jair Bolsonaro, que é machista (e racista e homofóbico…) 

Porém, se os homens de esquerda quiserem evoluir de verdade, precisam parar de se glorificar na comparação com bolsonaristas. Pois precisam mesmo é começarem a enxergar as próprias falhas e evoluírem, de verdade. 

Outros livros que inspiraram esse texto

Impeachment e misoginia nas redes sociais, de Rafael Maracajá Antonino – A obra investiga 

as conotações sexistas dos ataques sofridos na Internet pela então presidente Dilma Rousseff depois dos protestos de 2013. Leitura essencial para quem ainda duvida do ódio exacerbado à Dilma apenas pelo fato de ser uma mulher no comando de um país.   

O conto da aia, de Margaret Atwood – Muito já se falou sobre esse best-seller escrito nos anos 1980 e que voltou a ganhar atenção do público com uma bem-sucedida adaptação para série. Para quem teme ditaduras, é uma leitura assustadora, pois esta distopia mostra as consequências brutais para as mulheres da falta de democracia e do conservadorismo religioso. 

Imagem de capa: Arte/Canva

Imagem Dilma e Lula: Ricardo Stuckert/Instagram





 

 

 

Voos Literários

Mulheres intelectuais na Idade Média

Flávia Cunha
14 de agosto de 2019

Quando pensamos nos desmandos e arbitrariedades de um governo conservador e reacionário como o que está no poder no Brasil, automaticamente nos remetemos à Idade Média, uma época obscura, misógina e predominantemente masculina. Porém, apesar das imensas dificuldades enfrentadas nesse período histórico, novas pesquisas e publicações dão conta de relatos de trajetórias de figuras femininas que conseguiram estudar, trabalhar e ter destaque em diversas áreas do conhecimento, apesar do rígido controle da Igreja Católica no Ocidente.

Um dos livros que aborda esse viés é Mulheres Intelectuais na Idade Média – Entre a medicina, a história, a poesia, a dramaturgia, a filosofia, a teologia e a mística. A obra. de autoria de Marcos Roberto Nunes Costa e Rafael Ferreira Costa, está disponível para download gratuito aqui.  O livro tem cerca de 50 perfis femininos com relatos historiográficos. Dentre tantas histórias interessantes, escolhi a de Hipátia de Alexandria (370-413 d. C), uma estudiosa grega de arte, ciência e literatura É considerada a primeira mulher especialista em matemática no mundo. Também teve grande destaque na área de filosofia.

Tinha independência e autonomia por influência do pai, um grande intelectual da época que deu à filha total  acesso à Educação algo difícil na época. Manteve-se casta por convicção filosófica platônica. Nem assim escapou do controle religioso.

Por viver numa época de luta entre o paganismo e o cristianismo, Hipátia acabou sendo vítima de uma trama políticoreligiosa que a levou a um trágico fim, que teve início a partir de 412, com a ascensão de Cirilo (Patriarca de Alexandria) ao poder. Um cristão fanático, árduo defensor da Igreja e acirrado adversário daqueles que ele considerava serem hereges. Por ser uma mulher pagã, seus ideais científicos converteram-se em alvo fácil para Cirilo, que convenceu os cristãos a elegê-la como bode expiatório. Assim, em 4153 , quando ela regressava do Museu, onde lecionava, foi atacada em plena rua pelos seguidores de Cirilo, os quais, enfurecidos, arrastaram-na para o interior de uma Igreja e lá, “seu corpo foi ultrajado e espalhado por toda cidade […]. Uma multidão de homens mercenários e ferozes, que não temiam castigo divino, nem vingança humana, matou a filósofa, e assim cometeram um monstruoso e atroz ato contra a pátria. Tinha entre 60 a 65 anos de idade quando foi assassinada.”

Relatos como esse são chocantes, mas podem servir de incentivo para todas as mulheres do século 21. Não podemos permitir que a fé em uma religião possa ser imposta.

Isso não existe mais?

Pergunte para uma mulher desesperada com uma gravidez indesejada se ela não tem medo de ser trucidada por fanáticos “pela vida”, caso esses tivessem oportunidade.

Ponha-se no lugar de vítimas de estupro que têm o crime relativizado por decisões judiciais que levam em conta o teor alcóolico das mulheres abusadas.

Em meio à barbárie pós-moderna, sigamos o exemplo das intelectuais medievais, que lutaram pelo direito de ser quem quisessem, mesmo que o preço a pagar pudesse ser alto demais. É importante esse resgate histórico para mostrar a resistência feminina, mesmo em tempos dificeis,

Seguiremos resistindo!