Voos Literários

Misoginia na política, um mal a ser combatido

Flávia Cunha
21 de janeiro de 2022

Misoginia em Mulheres e poder – um manifesto

“Quais são os fundamentos culturais da misoginia na política ou no ambiente de trabalho e quais são suas formas[…]? Como e por que as definições convencionais de “poder” (ou de “sabedoria” , “perícia” e “autoridade”) que trazemos em mente excluem as mulheres? 

O livro de autoria da professora britânica Mary Beard é uma boa fonte de consulta para entender as origens históricas da misoginia. De acordo com a especialista, o ódio às mulheres continua infelizmente tendo espaço na atualidade, principalmente na política.

Realidade brasileira

Contudo, a misoginia, assim como o machismo, podem ser sutis. Como o apagamento ou a falta de protagonismo recorrente das mulheres em determinados setores da vida pública. Se pensarmos no cenário político do Brasil 2022, já sabemos alguns fatos sobre o próximo presidente da República. Afora alguma mudança muito grande no cenário atual, assumirá o cargo um homem, branco, com 50 anos de idade ou mais. Mesmo com as mulheres sendo a maioria do eleitorado em nosso país, a eleição de Dilma Rousseff à presidência, nos já distantes anos de 2010 e 2014, parece ter sido um fato isolado na política nacional.

Desigualdade recorrente

E não é apenas no cargo máximo da República brasileira que a presença feminina é desigual. No Congresso Nacional, apenas 15% das cadeiras são ocupadas por parlamentares do sexo feminino. As desculpas dos conservadores para essa desproporção gigantesca vão desde falta de interesse das mulheres por política até o mais completo silêncio sobre o tema. No entanto, para quem estiver disposto a se dar conta, os motivos são o machismo estrutural e a misoginia, que conferem uma camada de violência e agressão simbólica para as mulheres que conseguem ser eleitas.

Para piorar, o machismo faria com que a maior parte do eleitorado feminino considerasse candidatas menos preparadas para ocupar determinados cargos eletivos. Afinal, não teve um político brasileiro que há poucos anos falou que mulher era ótima apenas para saber o preço dos produtos nos supermercados? Dentro desta visão deturpada e conservadora, elementos tão domésticos da sociedade não estariam preparados para serem deputadas, senadoras e presidentes.

Golpe misógino

E por falar em presidente ou presidenta, chegamos a um dos pontos mais difíceis de abordar até dentro da esquerda brasileira. Apesar do consenso para esse grupo de que houve um golpe parlamentar, o caráter misógino do impeachment de Dilma Rousseff é muitas vezes minimizado até por integrantes do PT.

Na visão que compartilho com militantes feministas, o golpe foi orquestrado por homens que odiavam Dilma não só por seu partido político. Mas, principalmente, pela ex-presidente ser uma mulher sem os atributos de doçura, submissão e beleza padrão valorizados por machistas.

Machismo e misoginia à esquerda

Para além dos antipetistas, a misoginia na política também contamina o espectro de esquerda. Prova disso foi o comentário de Washington Quaquá, vice-presidente nacional do PT, sobre a ausência de Dilma em um jantar. De acordo com o dirigente, Dilma não teria sido convidada ao evento, que contou com a presença do ex-presidente Lula e de Geraldo Alckmin, ex-tucano ventilado como vice do petista, por ser irrelevante politicamente. 

As declarações de Quaquá, por sua vez, geraram revolta dentro de integrantes da própria legenda, que consideraram a fala misógina e machista. Confira aqui a nota da Secretaria Nacional de Mulheres do PT.

Depois deste incidente, a reação de Quaquá, como machista “raiz” que demonstra ser, foi se dizer atacado e denunciar uma suposta tentativa de calarem sua voz de homem branco não consciente de seus privilégios. 

Para a evolução dos “esquerdomachos”

De uma maneira geral, ressalto que seria ótimo se a misoginia e o machismo fossem comportamentos recorrentes só na extrema direita. Pois daí, nós, mulheres, sofreríamos bem menos. Bastaria saber em quem os homens da nossa convivência votaram para estarmos “a salvo” da possibilidade de desdém, achincalhe ou desprezo sobre quem somos enquanto sujeitos políticos.

Coincidência ou não, Lula dias depois teve um encontro com Dilma e fez questão de postar a foto em suas redes sociais. Lula, então, não é machista? Sinceramente, considero muito improvável que um homem hetero de 76 anos não tenha, dentro de si, resquícios de machismo estrutural.  Mas, ao menos, o ex-presidente não vai a público desmerecer uma mulher, como fez o companheiro de partido. Nesse sentido, ele está anos-luz à frente de Jair Bolsonaro, que é machista (e racista e homofóbico…) 

Porém, se os homens de esquerda quiserem evoluir de verdade, precisam parar de se glorificar na comparação com bolsonaristas. Pois precisam mesmo é começarem a enxergar as próprias falhas e evoluírem, de verdade. 

Outros livros que inspiraram esse texto

Impeachment e misoginia nas redes sociais, de Rafael Maracajá Antonino – A obra investiga 

as conotações sexistas dos ataques sofridos na Internet pela então presidente Dilma Rousseff depois dos protestos de 2013. Leitura essencial para quem ainda duvida do ódio exacerbado à Dilma apenas pelo fato de ser uma mulher no comando de um país.   

O conto da aia, de Margaret Atwood – Muito já se falou sobre esse best-seller escrito nos anos 1980 e que voltou a ganhar atenção do público com uma bem-sucedida adaptação para série. Para quem teme ditaduras, é uma leitura assustadora, pois esta distopia mostra as consequências brutais para as mulheres da falta de democracia e do conservadorismo religioso. 

Imagem de capa: Arte/Canva

Imagem Dilma e Lula: Ricardo Stuckert/Instagram





 

 

 

PodCasts

OUÇA Bendita Sois Vós #26 Democracia em Vertigem

Geórgia Santos
14 de julho de 2019

No episódio desta semana do Bendita Sois Vós, a jornalista Geórgia Santos conversa com os também jornalistas Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol sobre Democracia em Vertigem, o documentário de Petra Costa sobre a escalada da crise política brasileira.

.

Mais do que uma análise da produção, há um debate sobre os erros e acertos da cineasta no que tange aos fatos que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff, a prisão de Luiz Inácio Lula da Silva, e a eleição de Jair Bolsonaro

.

Também em pauta está o documentário Brasil em Transe, do jornalista Kennedy Alencar para a BBC. Uma produção que se propõe a explicar os anos que antecedem o atual momento do Brasil.

No Sobre Nós, Raquel Grabauska e Juçara Gaspar interpretam o poema Traduzir-se, de Ferreira Gullar, do livro Na Vertigem do Dia.

O episódio desta semana foi sugerido pela ouvinte Beatriz Costa. Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.

Pedro Henrique Gomes

Crítica – O Processo

Pedro Henrique Gomes
19 de maio de 2018

O plano de abertura de O Processo, documentário de Maria Augusta Ramos, sobrevoa a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, para mostrar que há uma disputa política dada, encravada na polarização dos vermelhos, à esquerda, e dos verde-amarelos, à direita. A disputa pelos espaços midiáticos, narrativos, conceituais, encobre o tal processo do título, tempera os conflitos políticos, incendeia a já muito confusa discussão rodeada de “certezas históricas” e prerrogativas morais que corroem a esfera pública nacional. A batalha campal que é filmada de cima, dividindo dois focos de luta, amor e ódio, ao menos no plano simbólico, remete ao aspecto falsamente dual de nosso contexto político. Apesar de não romper com o dualismo, O Processo retira, na medida da possível, a política da esfera do espetacular, do televisivo, e a coloca em um espaço de observação e de crítica.

Consumado em agosto de 2016, após longo circo político-midiático, o impechment de Dilma Rousseff interrompeu seu segundo mandato presidencial, encerrando prematuramente o ano 14 de sucessivos governos do Partido dos Trabalhadores.

.

O Processo é feito de imagens de arquivo e captadas pela diretora em sessões do congresso, comissões, votações e debates da bancada governista no senado planejando os próximos movimentos da defesa de Dilma.

.

O entendimento geral, no entanto, era de que o processo já possuía suas jogadas marcadas, seu xeque-mate programado. Resistir por todos os meios e fins era, pois, um ato político derradeiro.

Há uma coleção de imagens muito interessantes e bem articuladas, especialmente as captadas por Maria Augusta Ramos durante o “rito” jurídico, que respeita o tempo do drama e da fala, percebe a encenação que se apresenta para a câmera nas filmagens internas, de gabinete, nos corredores, as ligações telefônicas e entrevistas para imprensa. Ela respeita isso e seu filme ganha força e densidade dramática. Mas ao filmar o absurdo da política partidária institucional, o absurdo olha para você em reação. Momentos involuntariamente cômicos se embaralham com momentos de crise.

O filme quer tornar claro que houve um golpe parlamentar contra o PT e Dilma ao mesmo tempo em que, como documentário sobre o processo do impechment, quer também compreender os acontecimentos que basearam o golpe. No filme, está claro: não houve crime de responsabilidade fiscal, diz a defesa e a bancada governista representadas, entre outros, como personagens num thriller político, por José Eduardo Cardozo, Gleisi Hoffmann, Vanessa Grazziotin e Lindbergh Farias. A acusação teve em Janaína Paschoal, advogada e professora de Direito Penal, sua mais proeminente figura atendida pela câmera paciente e dedicada da cineasta. Mas se há uma coisa que o filme não faz é duvidar de si mesmo, explorar mais vivamente as tensões fora da máquina polarizadora para, aí então, buscar compreender algo. A narrativa é muito justa, retilínea e segura de sua ordem para que se possa compreender muito além da narrativa do golpe, como decerto era intenção do filme. Antes, já tinha as respostas: aqui está o golpe e foi assim. Os vermelhos, lá fora, choram a derrota e anunciam a volta por cima; os verde-amarelos, pujantes e satisfeitos, gozam não se sabe muito bem o que. O filme militante, muito justo, escorrega em suas virtudes.

Não se pode cobrar, claro, imparcialidade do documentário – embora, caso se queira, é plenamente possível ser imparcial. A história narrada por suas imagens tem um fio condutor, causalidade e uma sucessão de eventos em meio ao trâmite político cujo desenlace é o golpe, o impechment. É possível dizer que se tentou dar espaço para o outro lado, mas a construção da câmera é voltada para destruir a retórica da acusação, para isolar seus personagens ou para dimensioná-los, vez ou outra, pela caricatura. Isso é legítimo, embora fragilize a ideia de um filme feito “para que as pessoas possam refletir”. É verdade que, mesmo sem função, há imagens muito raras para não participarem do filme, como quando Janaína Paschoal bebe um achocolatado de canudinho no intervalo de alguma sessão ou o presidente da comissão que interrompe um debate para pedir a troca de uma campainha que não estava à altura do local. Esses momentos de precisão estética (fruto de atenção documental, atenção com o espaço ao redor) casam bem com o fato de alguns personagens aparecerem pouco, como Aécio Neves, Lula, Gilberto Carvalho e a própria Dilma.

Gilberto Carvalho é quem, aliás, marca um momento de reflexão tardia, já com a assunção da queda. Essa cena, crucial para o discurso do filme, é retrato também dos limites dessa reflexão que a militância petista difundiu pensando estar fazendo autocrítica.

O golpe parlamentar encerra um acordo político nacional com o pemedebismo, que foi rompido – e o lado do PT perdeu. Os golpeados não foram os políticos.

O Processo, de Maria Augusta Ramos, Brasil, 2018. Com José Eduardo Cardozo, Gleisi Hoffmann, Vanessa Grazziotin, Lindbergh Farias, Janaína Paschoal, Dilma Rousseff, Aécio Neves, Antonio Anastasia, Eduardo Cunha.