No episódio desta semana do Bendita Sois Vós, a jornalista Geórgia Santos conversa com os também jornalistas Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol sobre Democracia em Vertigem, o documentário de Petra Costa sobre a escalada da crise política brasileira.
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Mais do que uma análise da produção, há um debate sobre os erros e acertos da cineasta no que tange aos fatos que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff, a prisão de Luiz Inácio Lula da Silva, e a eleição de Jair Bolsonaro
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Também em pauta está o documentário Brasil em Transe, do jornalista Kennedy Alencar para a BBC. Uma produção que se propõe a explicar os anos que antecedem o atual momento do Brasil.
No Sobre Nós, Raquel Grabauska e Juçara Gaspar interpretam o poema Traduzir-se, de Ferreira Gullar, do livro Na Vertigem do Dia.
O episódio desta semana foi sugerido pela ouvinte Beatriz Costa. Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.
O plano de abertura de O Processo, documentário de Maria Augusta Ramos, sobrevoa a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, para mostrar que há uma disputa política dada, encravada na polarização dos vermelhos, à esquerda, e dos verde-amarelos, à direita. A disputa pelos espaços midiáticos, narrativos, conceituais, encobre o tal processo do título, tempera os conflitos políticos, incendeia a já muito confusa discussão rodeada de “certezas históricas” e prerrogativas morais que corroem a esfera pública nacional. A batalha campal que é filmada de cima, dividindo dois focos de luta, amor e ódio, ao menos no plano simbólico, remete ao aspecto falsamente dual de nosso contexto político. Apesar de não romper com o dualismo, O Processo retira, na medida da possível, a política da esfera do espetacular, do televisivo, e a coloca em um espaço de observação e de crítica.
Consumado em agosto de 2016, após longo circo político-midiático, o impechment de Dilma Rousseff interrompeu seu segundo mandato presidencial, encerrando prematuramente o ano 14 de sucessivos governos do Partido dos Trabalhadores.
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O Processo é feito de imagens de arquivo e captadas pela diretora em sessões do congresso, comissões, votações e debates da bancada governista no senado planejando os próximos movimentos da defesa de Dilma.
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O entendimento geral, no entanto, era de que o processo já possuía suas jogadas marcadas, seu xeque-mate programado. Resistir por todos os meios e fins era, pois, um ato político derradeiro.
Há uma coleção de imagens muito interessantes e bem articuladas, especialmente as captadas por Maria Augusta Ramos durante o “rito” jurídico, que respeita o tempo do drama e da fala, percebe a encenação que se apresenta para a câmera nas filmagens internas, de gabinete, nos corredores, as ligações telefônicas e entrevistas para imprensa. Ela respeita isso e seu filme ganha força e densidade dramática. Mas ao filmar o absurdo da política partidária institucional, o absurdo olha para você em reação. Momentos involuntariamente cômicos se embaralham com momentos de crise.
O filme quer tornar claro que houve um golpe parlamentar contra o PT e Dilma ao mesmo tempo em que, como documentário sobre o processo do impechment, quer também compreender os acontecimentos que basearam o golpe. No filme, está claro: não houve crime de responsabilidade fiscal, diz a defesa e a bancada governista representadas, entre outros, como personagens num thriller político, por José Eduardo Cardozo, Gleisi Hoffmann, Vanessa Grazziotin e Lindbergh Farias. A acusação teve em Janaína Paschoal, advogada e professora de Direito Penal, sua mais proeminente figura atendida pela câmera paciente e dedicada da cineasta. Mas se há uma coisa que o filme não faz é duvidar de si mesmo, explorar mais vivamente as tensões fora da máquina polarizadora para, aí então, buscar compreender algo. A narrativa é muito justa, retilínea e segura de sua ordem para que se possa compreender muito além da narrativa do golpe, como decerto era intenção do filme. Antes, já tinha as respostas: aqui está o golpe e foi assim. Os vermelhos, lá fora, choram a derrota e anunciam a volta por cima; os verde-amarelos, pujantes e satisfeitos, gozam não se sabe muito bem o que. O filme militante, muito justo, escorrega em suas virtudes.
Não se pode cobrar, claro, imparcialidade do documentário – embora, caso se queira, é plenamente possível ser imparcial. A história narrada por suas imagens tem um fio condutor, causalidade e uma sucessão de eventos em meio ao trâmite político cujo desenlace é o golpe, o impechment. É possível dizer que se tentou dar espaço para o outro lado, mas a construção da câmera é voltada para destruir a retórica da acusação, para isolar seus personagens ou para dimensioná-los, vez ou outra, pela caricatura. Isso é legítimo, embora fragilize a ideia de um filme feito “para que as pessoas possam refletir”. É verdade que, mesmo sem função, há imagens muito raras para não participarem do filme, como quando Janaína Paschoal bebe um achocolatado de canudinho no intervalo de alguma sessão ou o presidente da comissão que interrompe um debate para pedir a troca de uma campainha que não estava à altura do local. Esses momentos de precisão estética (fruto de atenção documental, atenção com o espaço ao redor) casam bem com o fato de alguns personagens aparecerem pouco, como Aécio Neves, Lula, Gilberto Carvalho e a própria Dilma.
Gilberto Carvalho é quem, aliás, marca um momento de reflexão tardia, já com a assunção da queda. Essa cena, crucial para o discurso do filme, é retrato também dos limites dessa reflexão que a militância petista difundiu pensando estar fazendo autocrítica.
O golpe parlamentar encerra um acordo político nacional com o pemedebismo, que foi rompido – e o lado do PT perdeu. Os golpeados não foram os políticos.
O Processo, de Maria Augusta Ramos, Brasil, 2018. Com José Eduardo Cardozo, Gleisi Hoffmann, Vanessa Grazziotin, Lindbergh Farias, Janaína Paschoal, Dilma Rousseff, Aécio Neves, Antonio Anastasia, Eduardo Cunha.