Voos Literários

Democracia em Vertigem: a descoberta de uma citação

Flávia Cunha
17 de janeiro de 2020

Stathis N. Kalyvas pode ser um nome desconhecido para o público brasileiro mas ele é o escritor grego citado por Petra Costa no documentário Democracia em Vertigem. O assunto volta à tona na coluna Voos Literários devido à indicação ao Oscar do filme e também pela descoberta do autor da citação literária que gerou um texto em julho de 2019, data próxima do lançamento de Democracia em Vertigem na Netflix e de uma imensa repercussão nas redes sociais. 

A citação literária a que me refiro é:

“Um escritor grego disse que a democracia só funciona quando os ricos se sentem ameaçados. Caso contrário, a oligarquia toma o poder.”

Depois de muito pesquisar na Internet e não encontrar o autor da frase impactante, me conformei em escrever um texto reflexivo a respeito dos limites da democracia e das origem da luta de classes, que remete a um período histórico muito anteriores a Karl Marx. Ao repostar esse texto na minha página pessoal no Facebook, no dia da indicação do documentário ao Oscar, um amigo me passou a informação tão procurada. Em uma matéria, a diretora do filme comenta a respeito de quem era o tal escritor grego:

“[Stathis N.] Kalyvas, mudou minha noção de democracia de muitas maneiras. Ele disse: ‘A democracia é o governo do povo’. Mas se as forças do governo não estão realmente governando para o povo, não é realmente democracia.”

Confira a matéria completa aqui.

O escritor que encantou a diretora de Democracia em Vertigem (e foi alvo da minha obsessão literária em 2019) é atualmente professor na renomada Universidade de Oxford, tendo trabalhado anteriormente em Yale. Tem formação em Ciência Política pelas universidades de Atenas e Chicago. De acordo com seu site pessoal, lançou até o momento 5 livros (nenhum deles com tradução para o português):  Civil Wars (2018), Modern Greece: What everyone needs to know (2015) Order, Conflict, Violence (2008), The Logic of Violence in Civil War (2006) e The Rise of Christian Democracy in Europe (2006).

Em seu site pessoal também é possível acessar alguns de seus artigos em inglês.  Stathis N. Kalyvas também disponibiliza seu curriculum vitae, no qual consta a informação de que nasceu na Grécia, em 1964. Um autor e pesquisador contemporâneo, portanto. O mais curioso é que na minha busca frenética pela citação referente a “um escritor grego” fiz a suposição de que se trataria de um dos pensadores da Grécia Antiga, berço da democracia.

Termino esse texto com a missão pessoal de ler alguns artigos de Kalyvas em inglês e procurar fazer conexões com o Brasil atual, em que a democracia segue ameaçada diariamente. E fico na torcida pela corrida no Oscar de Democracia em Vertigem. Longe de ser uma especialista em cinema, ainda assim arrisco dizer que o documentário de Petra Costa não deve levar a estatueta, por motivos como estar concorrendo com um filme dirigido por Barack e Michelle Obama. Não entrando no mérito da qualidade técnica do documentário, a verdade é que Democracia em Vertigem atinge o emocional de quem se deixa levar pela narrativa da diretora. E a indicação ao Oscar já é um mérito inegável para a produção brasileira, que segue disponível na Netflix.     

 

PodCasts

OUÇA Bendita Sois Vós #26 Democracia em Vertigem

Geórgia Santos
14 de julho de 2019

No episódio desta semana do Bendita Sois Vós, a jornalista Geórgia Santos conversa com os também jornalistas Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol sobre Democracia em Vertigem, o documentário de Petra Costa sobre a escalada da crise política brasileira.

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Mais do que uma análise da produção, há um debate sobre os erros e acertos da cineasta no que tange aos fatos que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff, a prisão de Luiz Inácio Lula da Silva, e a eleição de Jair Bolsonaro

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Também em pauta está o documentário Brasil em Transe, do jornalista Kennedy Alencar para a BBC. Uma produção que se propõe a explicar os anos que antecedem o atual momento do Brasil.

No Sobre Nós, Raquel Grabauska e Juçara Gaspar interpretam o poema Traduzir-se, de Ferreira Gullar, do livro Na Vertigem do Dia.

O episódio desta semana foi sugerido pela ouvinte Beatriz Costa. Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.

Voos Literários

Democracia em Vertigem – a busca por uma citação literária

Flávia Cunha
2 de julho de 2019

“Um escritor grego disse que a democracia só funciona quando os ricos se sentem ameaçados. Caso contrário, a oligarquia toma o poder.”

 

Essa frase de Democracia em Vertigem ficou na minha mente durante dias. Não só pelo conteúdo contundente, mas pela curiosidade gerada ao não citar o nome do autor, um detalhe pequeno em meio a um documentário que tem gerado tanta controvérsia.  Petra Costa, diretora e roteirista do filme, tem enfrentado críticas da própria esquerda ao fazer uma análise bem pessoal sobre a política brasileira. 

Mas aquela frase havia virado uma obsessão pessoal. Eu precisava descobrir sua autoria, movida pela pura e simples curiosidade.

Em um primeiro momento, achei que seria fácil descobrir a origem da citação. Só jogar no oráculo Google e pronto. Ledo engano. Não havia referências claras a partir das palavras usadas na locução em off. Depois fui para as redes sociais e perguntei para meus amigos se alguém sabia identificar a autoria. Ninguém se arriscava a dizer. Perguntei para formados em Filosofia, Ciência Política,  Comunicação… Nenhuma resposta conclusiva.

Então prossegui nas minhas pesquisas solitárias na Internet, tentando achar alguma conexão da Grécia Antiga com a reflexão sobre a democracia precisar ser temida pelos mais favorecidos economicamente para realmente funcionar como sistema político. E fui me deparando com informações interessantes para conectarmos com o Brasil atual.

Filósofos como Sócrates e Platão, por exemplo, eram grandes críticos da Democracia. Isso me surpreendeu, apesar de saber o quanto a democracia grega se diferenciava  do modelo democrático atual, ao não incluir como eleitores mulheres, estrangeiros e escravos, por exemplo. Porém, não deixa de ser interessante que grandes filósofos considerassem a aristocracia um regime político mais adequado. 

Mas foi nas pesquisas sobre os grandes defensores da democracia grega clássica que deparei com informações mais curiosas. Sólon, um dos legisladores mais famosos de Atenas, promoveu, a partir de 594 a.C., mudanças estruturais como o fim da escravidão por dívidas. Porém, enfrentou críticas tanto dos mais ricos, que não gostaram das alterações propostas, quanto dos mais pobres, que defendiam medidas como a  reforma agrária para ter uma sociedade mais igualitária.

No século V a.C., o estadista Péricles foi acusado de populista ao favorecer quem tinha menos dinheiro. Entre suas medidas consideradas populistas, estava a de proporcionar aos pobres entrada gratuita para espetáculos teatrais em Atenas, com o Estado bancando os ingressos. Além disso, tentou colocar em prática leis que favoreciam o acesso das classes mais baixas ao sistema político democrático, o que era proibido por questões financeiras.

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Resumindo:

A luta de classes (acusada por conservadores atuais de de ser uma “invenção marxista”) já existia na Grécia Antiga e filósofos como Sócrates e Platão eram críticos da democracia justamente por considerá-la um regime político propenso a esse tipo de tensão entre ricos e pobres. Políticos que tentavam ajudar os menos favorecidos eram acusados de populistas (Eram? São?). E os ricos tentavam manter seus privilégios, como sempre.

O escritor grego – ainda desconhecido para mim – citado em Democracia em Vertigem,  parece ter mesmo razão. 

Encerro esse texto com a citação completa de Petra Costa e torcendo para que encontremos esperança em meio à vertigem:

Um escritor grego disse que a democracia só funciona quando os ricos se sentem ameaçados. Caso contrário, a oligarquia toma o poder. De pai pra filho, de filho pra neto, de neto pra bisneto e assim sucessivamente. Somos uma república de famílias. Umas controla as mídias, outras, os bancos. Elas possuem a areia, o cimento, a pedra e o ferro. E, de vez em quando, acontece delas se cansarem da democracia, do Estado de Direito. Como lidar com a vertigem de ser lançado em um futuro que parece tão sombrio quanto o nosso passado mais obscuro? O que fazer quando a máscara da civilidade cai e o que se revela é uma imagem ainda mais assustadora de nós mesmos?”

Foto: Netflix/Divulgação