OUÇA Bendita Sois Vós #49 Mulheres no país do Messias, dólar em alta e a tal fraude
Geórgia Santos
10 de março de 2020
No episódio de hoje, mulheres. Mulheres e os obstáculos constantes, especialmente em um país governado por um presidente misógino e machista.
A ideia de um Dia da Mulher surgiu no início do século 20, entre movimentos socialistas e operários, justamente no contexto das lutas feministas por melhores condições de vida e trabalho e pelo direito ao voto. Em 1975, o 8 de março foi adotado como Dia Internacional da Mulher pelas Nações Unidos principalmente para lembrar o quanto ainda precisamos lutar. E aqui estamos nós, em 2020 – e dadas as devidas proporções – lutando por melhores condições de vida e trabalho.
Também hoje, a queda no preço do petróleo, o colapso da Bolsa e a disparada do dólar. E a mais nova tentativa de Bolsonaro de enfraquecer as instituições. Segundo ele, a eleição em que ele foi escolhido presidente foi fraudada.
Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol.Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.
Esse é o primeiro de quatro textos com sugestões de leituras e provocações a respeito da necessidade do feminismo nos dias atuais. Na estreia dessa série, sera abordada a divisão de tarefas domésticas entre homens e mulheres.
Com o avanço do conservadorismo nos últimos anos no Brasil, cada vez mais se menospreza a importância do movimento feminista para que as mulheres tenham adquirido mais direitos enquanto cidadãs, além de terem obtido independência e autonomia nas relações sociais e também no ambiente doméstico. Ao ler cada vez mais comentários femininos dizendo que “não precisam de feminismo para nada”, “feministas são mal-amadas” ou “feminazis com sovacos peludos”, considero necessário fazer um rápido resgate do quanto comportamentos hoje vistos como naturais foram conquistas adquiridas por meio da luta de mulheres que foram, no seu tempo, chamadas de radicais ou loucas.
Direito ao voto. Usar calças compridas. Andar de bicicleta. Viajar desacompanhada.
Morar sozinha. Ter autonomia sobre o próprio corpo, mesmo dentro do casamento.
Direito ao divórcio.
Todos esses exemplos já foram, em algum momento, considerados inadequados ou proibidos para mulheres ocidentais. Uma das precursoras da segunda onda do movimento feminista, Betty Friedan, lançou em 1963 o livro A Mística Feminina. A ativista entrevistou norte-americanas que seguiam os preceitos sociais vigentes nos anos 1940 e 1950, sendo em sua esmagadora maioria donas-de-casa, atormentadas por não terem uma vida própria e dedicarem-se apenas a suas famílias.
No final da obra, Betty Friedan questiona:
“Quem sabe o que será a mulher quando finalmente livre para ser ela mesma? Quem sabe qual a contribuição da sua inteligência quando esta puder ser alimentada sem sacrifício do amor? Quem sabe das possibilidades do amor quando o homem e a mulher compartilharem não só dos filhos, do lar, de um jardim, da concretização de seu papel biológico, mas também das responsabilidades e paixões do trabalho que constrói o futuro humano e traz o pleno conhecimento da personalidade? Mal foi iniciada a busca da mulher pela própria identidade. Mas está próximo o tempo em que as vozes da mística feminina não poderão abafar a voz íntima que a impele ao seu pleno desabrochar.”
O leitor mais cético pode argumentar que o livro de Betty Friedan está ultrapassado, que em pleno século 21 não precisamos de feminismo para nada, já que agora as mulheres estão em pé de igualdade com os homens. Mas será mesmo? Se pegarmos o singelo item divisão de tarefas domésticas, poucas mulheres estão livres da sobrecarga de tomar para si essa atividade (não remunerada e invisível) e precisar conciliar esse trabalho com seus empregos.
Em O homem infelizmente tem que acabar, da escritora gaúcha Clara Corleone, lançado no final de 2019, ela cita como as mulheres – mesmo as mais “fodonas”- seguem em geral sendo as cuidadoras das relações, da casa e da família:
“Não há fator biológico que justifique as mulheres estarem sempre pensando na administração da casa e os homens, não. É completamente cultural. A mulher é educada para cuidar – cuidar do lar, cuidar do corpo, cuidar do marido, cuidar dos filhos, cuidar dos relacionamentos. Por isso a mulher normalmente tem a saúde melhor que o homem, por exemplo, e por isso a mulher tende a ser mais delicada nas relações. […] Mulheres trabalham muito com esse conceito de cuidado, por mais agressivas/ da pá virada, esse negócio de cuidado gruda na gente. Normalmente somos nós que deixamos o emprego quando alguém da família fica doente. Isso diz muito sobre a forma como somos educadas.”
Por isso, espero que a mulherada ativista siga protestando por esse e outros motivos (fim violência contra a mulher e feminicídios, direito ao aborto, igualdade salarial…). Mudanças só acontecem quando pessoas saem de suas zonas de conforto e questionam os padrões vigentes. E isso não tem a ver com esquerda ou direita. Os famosos esquerdomachos estão aí para provar isso. Eles querem que os proletários de todo mundo se unam por melhores condições de trabalho, desde que, em casa, a esposa siga lavando a louça, cuidando de suas roupas e sendo a responsável pela faxina. Aos meus leitores de esquerda do sexo masculino, alerto que repensar pequenas atitudes é a verdadeira revolução.
Às mulheres cis e trans, desejo um 8 de março de muita luta e de conscientização da importância do feminismo na nossa sociedade.
“Ser feminista continua sendo defender a maioria silenciosa das mulheres, ajudá-las a libertarem-se e adquirir seus direitos.” – Isabel Allende, escritora chilena
Pensem comigo: qual a principal diferença da nudez das musas do Carnaval carioca e de feministas peladonas nas manifestações do Dia Internacional da Mulher?
A mais gritante é o padrão de beleza apresentado por quase a totalidade das mulheres que são destaques nas grandes escolas de samba do Rio de Janeiro. Já as manifestantes que decidem ficar nuas em protestos em geral têm corpos comuns, com seios que podem ser caídos pela ação do tempo, com barrigas que podem não ser chapadas por exercícios físicos e procedimentos estéticos e com axilas que podem, para o horror dos conservadores, não serem depiladas. Digo podem porque esse estereótipo da feminista peluda, mal amada e que não se importa com a estética corporal também é excludente.
O que me indigna não é a beleza das divas do Carnaval – cada um cuida do seu corpo do jeito que achar melhor. O que enraivece é a normalização da nudez nos desfiles transmitidos pela televisão e repercutidos nos portais da Internet em notícias sobre a boa forma feminina.
A nudez feminina é permitida, desde que siliconada.
A nudez feminina é concedida, desde que nos padrões.
Também não quero dizer com isso que o Carnaval é uma festa do patriarcado. Cada vez mais surgem blocos femininos e feministas, com mulheres não somente adornando com sua beleza a folia, mas também sendo protagonistas da batucada. Também se consolidam alas com integrantes plus size, o que tenho minhas dúvidas se é algo bom, por deixar as “gordinhas” e “barrigudinhas” separadas das mulheres com “beleza padrão”.
Nessa busca por uma referência literária para esse desabafo carnavalesco e feminista achei dois livros interessantes.
O primeiro é um clássico da terceira onda feminista: O Mito da Beleza, de Naomi Wolf. No trecho selecionado, há uma ponderação sobre essa falácia de que as mulheres não podem ser bonitas E inteligentes:
A cultura estereotipa as mulheres para que se adequem ao mito nivelando o que é feminino em beleza-sem-inteligência ou inteligência-sem-beleza. É permitido às mulheres uma mente ou um corpo, mas não os dois ao mesmo tempo. Uma alegoria comum que ensina esse fato às mulheres é a ligação entre uma feia e uma bonita: Lia e Raquel no Antigo Testamento, Maria e Marta no Novo; Helena e Hermia em Sonho de uma noite de verão; Anya e Dunyasha em O jardim das cerejeiras de Tchecov; Violeta e Dulçurosa Suíno em Ferdinando; Glinda e a Bruxa Má do Oeste em O Mágico de Oz; Mary e Rhoda em The Mary Tyler Moore Show; e assim por diante. A cultura machista parece se sentir melhor ao imaginar duas mulheres juntas se elas puderem ser definidas como um fracasso e um sucesso de acordo com o mito da beleza.
O outro livro é Ao Acaso – Mulheres Livres, Mamilos Polêmicos, da ilustradora brasileira Manuela Cunha Soares. A obra é constituída por desenhos, como a imagem de capa desse texto. O livro é uma ode à diversidade e à beleza que rompe padrões e estereótipos e está disponível para download gratuito no formato e-book. Confiram mais alguns belos desenhos de Manuela.
Acredito que a nudez como libertação ainda é uma utopia em um país com tantos feminicídios como o Brasil. Mas também já houve um tempo em que as mulheres votarem era uma utopia e foi preciso a luta das sufragistas para que o voto feminino fosse uma realidade.
Por isso, o dia 8 de Março deve ser um dia de luta por um mundo com menos desigualdade e opressão. Vamos às ruas?
Imagem: Reprodução/ Ilustração Manuela Cunha Soares
Guardem as flores, meninos – estejam ao nosso lado
Geórgia Santos
8 de março de 2018
Dia 8 de março é um dia poderoso e um tanto curioso. Mulheres são mimadas, paparicadas. Recebemos flores, um carinho aqui e acolá, um chocolatinho no restaurante, um abraço dos colegas de trabalho, mensagenzinhas pré-fabricadas e poeminhas medíocres espalham-se pelo Facebook. Obrigada. É gentil. Mas parem, não tem mais graça.
Não, não estou mal-humorada, apenas cansada. Exausta, eu diria. O Dia Internacional da Mulher não é uma data para celebrar nossa sensibilidade, nosso cuidado, nosso amor inato; não é uma data para celebrar nossa beleza, nossa vaidade, nossa feminilidade; não é uma data para agradecer a quem cuida da casa, dos filhos, da louça, da roupa, das plantas.
A ideia de um Dia da Mulher surgiu entre o final do século 19 e início do século 20, entre movimentos socialistas e operários, justamente no contexto das lutas femininas por melhores condições de vida e trabalho e pelo direito ao voto. Em 1975, o 8 de março foi adotado como Dia Internacional da Mulher pelas Nações Unidos com o objetivo de celebrar conquistas sociais, políticas e econômicas. Mas principalmente para lembrar o quanto ainda precisamos lutar. E aqui estamos nós, em 2018 e dadas as devidas proporções, lutando por melhores condições de vida e trabalho.
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Por isso, meninos, guardem as flores por hoje e estejam ao nosso lado
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Homens e mulheres são diferentes, sim, mas possuem as mesmas capacidades e habilidades. Homens não são superiores. Mulheres não são superiores. Homens e mulheres são equivalentes e precisam ser tratados como tal. O feminismo busca isso e tem espaço para todos os gêneros nesse movimento que, mesmo múltiplo e com muitas vertentes, luta por justiça e igualdade. E unidade é particularmente importante em um mundo em que as pessoas acreditam que ser feminista é sinônimo de recalque.
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“Feminismo é discurso de mulher macho recalcada, que fica se fazendo de vítima. Mulher tem as mesmas oportunidades que os homens e essas feministas ficam querendo botar as mulheres contra os homens”, dizia um comentário infame na nossa rede social favorita
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Vamos aos fatos
Dados do Fórum Econômico Mundial indicam que, no ritmo atual, precisará de um século para acabar com a disparidade entre homens e mulheres. Levará cem anos para que alcançar a igualdade de gênero tanto nas tarefas domésticas quanto no trabalho ou política. Precisa de mais motivos?
No Brasil, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que as mulheres tem nível de escolaridade mais alto, mesmo assim, recebem salários menores. Em média, 76,5% do salário dos homens. Ainda não se convenceu?
A cada dez minutos uma mulher é assassinada pelo parceiro (ou ex) no mundo. No Brasil, uma mulher é assassinada a cada duas horas apenas por ser mulher.
Então não, não estou mal-humorada, apenas cansada. Exausta, eu diria. O Dia Internacional da Mulher não é uma data para celebrar futilidades, é um dia para lembrar de todas as mulheres que sobreviveram à invisibilidade e foram rebeldes e desobedientes o suficiente para mostrar ao mundo que nós podemos fazer qualquer coisa. Porque nós podemos.
Respeita As Minas (Na Literatura e Em Qualquer Lugar)
Flávia Cunha
7 de março de 2017
Se tem um termo que incomoda grande parte das escritoras é ter sua obra denominada como literatura feminina. O rótulo particularmente me remete a uma moça muito comportada, vestida com babados e frufrus, escrevendo sobre corações partidos, fragilidades e futilidades. No outro extremo, caso fosse usual a classificação literatura masculina, acabaria parecendo inaceitável que houvesse sensibilidade nos textos literários escritos por homens.
Em pleno século 21, o feminismo ainda é uma das bandeiras que precisam estar em evidência, para evitar a desigualdade entre homens e mulheres, em um mundo que já abriu espaço para orientações sexuais diversas e debates de temas considerados polêmicos por muitos, como aborto, por exemplo. Nesse contexto, a literatura dita feminista é um instrumento fundamental para o empoderamento feminino, um conceito que muitas vezes desperta antipatia por parte das pessoas mais conservadoras.
Uma das escritoras mais representativas dessa vertente é a gaúcha radicada em São Paulo Clara Averbuck. Na época do surgimento dos blogs, Clara apresentou aos internautas seus textos densos e diretos, abordando temas como sexo, bebidas e drogas na perspectiva de uma mulher forte e sem frescuras. Em 2002, a escritora lançou sua primeira obra Máquina de Pinball, em que aparece sua personagem mais famosa, Camila. A protagonista desse livro acabou indo parar no cinema, em uma adaptação que não agradou a escritora.
Com o passar dos anos, Clara consolidou sua luta feminista, presente no site Lugar de Mulher, no qual é uma das editoras. Também tem uma presença constante nas redes sociais, com posicionamentos políticos e relatos sinceros sobre o cotidiano de uma escritora sem grana no Brasil: viver de frilas para pagar o aluguel, como criar uma filha adolescente sozinha e sua angústia ao receber diariamente relatos de abusos sofridos por outras mulheres, sentindo-se muitas vezes impotente para dar uma real ajuda a essas manas.
Seu livro mais recente, Toureando o Diabo, traz o retorno da personagem Camila, mais amadurecida e com ideais declaradamente feministas. Não é à toa que a obra é dedicada “às minas – todas elas”. Publicado de forma independente, por meio de financiamento coletivo, o livro tem coautoria da ilustradora Eva Uviedo e pode ser comprado aqui.
Do fim dos anos 40, quando Simone de Beauvoir chocou a sociedade com seu ensaio filosófico O Segundo Sexo (que eu recomendo fortemente a leitura), até os dias atuais, o lugar da mulher é mesmo aonde ela quiser. Inclusive fora de rótulos reducionistas como literatura feminina.
(PS: Certamente falaremos sobre mulheres na literatura em muitos outros posts do blog Voos Literários. Mas o dia 8 de março é marcado por lutas extremamente significativas das mulheres e não como um dia de comemorações. Esse texto é uma singela homenagem a todas as mulheres que enfrentam qualquer tipo de discriminação ou opressão em suas vidas.)
Não é fácil ser mulher no jornalismo, por mais que a gente queira acreditar que não há diferenças de tratamento, de salários e coisa e tal. Especialmente quando se chega ao assunto do assédio a que somos submetidas constantemente.
Qual de nós, repórteres, nunca ouviu uma daquelas piadas infames na redação?
“Que espetáculo, hein fulaninha”
Quem nunca teve que conviver com a preferência da fonte pela jornalista mulher?
“Se é pra ela, eu conto tudo”
Quem nunca levou cantada de entrevistado e teve que sair de uma saia justa?
“Da próxima vez, em vez de um café te levo para tomar um vinho”
Falemos um pouco, verdadeiramente, sobre como é ser mulher em mais um universo machista e masculino. E aí não me refiro só ao ambiente jornalístico, a redação em si, mas a todos por onde a profissão transita, com destaque para o político e policial.
“Tua missão passa a ser não somente acompanhar os flagrantes, entrevistar e gravar, mas também tentar ser invisível”
Não existe coisa mais constrangedora do que repórter chegando em operação policial ou delegacia. Tua missão passa a ser não somente acompanhar os flagrantes, entrevistar e gravar, mas também tentar ser invisível. Sério, a gente se sente das duas uma: um ET ou um bife daqueles bem suculentos. Não é nem um pouco confortável. E olha que cobrir operação, perseguição, pode ser bastante interessante, principalmente para quem está em início de carreira.
Mulheres e o poder
Mas vamos, neste dia da mulher, à situação “mais mais” dentre as constrangedoras: ser repórter em Brasília. Político em Brasília se acha Deus – ou melhor, tem certeza que é. E nesta condição, a maioria daqueles homens, com todo aquele poder, pensa que pode olhar ou falar o que quiser e da maneira que quiser para as repórteres que circulam pelos corredores do poder. Não é raro ministros, senadores e deputados convidarem jornalistas para sair. Não é raro agirem como quem tem a resposta que tu queres e, por isso, acreditam que podem pedir o que quiserem em troca.
Só sei que em tempos de empoderamento feminino vale sempre lembrar que podemos, sim, responder e dizer não.
E aproveitando o gancho, neste dia 8 de março vai rolar um tuitaço de um grupo muito legal de jornalistas que luta contra essas “gracinhas” ridículas da profissão. Procura lá #jornalistascontraoassedio que tu vai encontrar reflexões bem interessantes.
Na minha modesta opinião, o problema não é receber flores nesta data, mas elas não serem entregues diariamente.