Voos Literários

A atualidade da poesia política de Hilda Hilst

Flávia Cunha
24 de abril de 2020

Uma das maiores escritoras brasileiras de todos os tempos completaria 90 anos nessa semana, se entre nós estivesse. Hilda Hilst partiu desse plano em 2004 mas sua obra permanece com frescor nos dias atuais, cinzentos por tantos motivos, da pandemia do coronavírus aos desmandos de um governo insano e incompetente. O legado de Hilda ficou marcado por ela tratar de temas eróticos, sendo criticada pelos mais conservadores por atrever-se a escrever textos pornográficos, a partir da década de 1990.

SEM MEDO

O preconceito pela temática sexual em suas obras deriva, certamente, do fato de ser uma mulher fazendo isso. Outros grandes autores usaram de recursos como o erotismo e palavrões sem serem tão cerceados em sua escrita. (Entre eles, Rubem Fonseca, falecido recentemente, e que merecerá em breve uma coluna para reverenciar sua memória e legado.)

Voltando a Hilda, a escritora era uma mulher que parecia não se acovardar para nada. Em 1974, em plena época da ditadura militar brasileira, a poeta dedica um capítulo à resistência e engajamento político, em um livro que aparentemente seria para falar apenas de amor e erotismo. 

POESIA POLÍTICA

A obra a que me refiro é Júbilo, memória, noviciado da paixão, relançado pela Companhia das Letras, e que tive o prazer de revisitar durante essa quarentena, depois de ganhá-lo de presente de aniversário, em 2018. O capítulo em questão é “Poemas aos homens de nossos tempos”, no qual Hilda se dirige aos leitores e também aos homens políticos, que naquele momento – assim como agora – eram militares pouco preocupados com o bem-estar dos brasileiros.

III

Sobre o vosso jazigo

– Homem político –

Nem compaixão, nem flores.

Apenas o escuro grito

Dos homens.

Sobre os vossos filhos

– Homem político –

A desventura

Do vosso nome.

E enquanto estiverdes

À frente da Pátria

Sobre nós, a mordaça.

E sobre as vossas vidas

– Homem político –

Inexoravelmente, nossa morte.

A ARTE SALVA

Mas Hilda também aponta que o caminho para a nossa salvação – ao menos metafórica – é a arte: 

VI

Tudo vive em mim. Tudo se entranha

Na minha tumultuada vida. E por isso

Não te enganas, homem, meu irmão,

Quando dizes na noite, que só a mim me vejo.

Vendo-me a mim, a ti. E a esses que passam

Nas manhãs, carregados de medo, de pobreza,

O olhar aguado, todos eles em mim,

Porque o poeta é irmão do escondido das gentes

Descobre além da aparência, é antes de tudo

livre, e porisso conhece. Quando o poeta fala

Fala do seu quarto, não fala do palanque,

Não está no comício, não deseja riqueza

Não barganha, sabe que o ouro é sangue

Tem os olhos no espírito do homem

No possível infinito. Sabe de cada um

A própria fome. E porque é assim, eu te peço:

Escuta-me. Olha-me. Enquanto vive um poeta

O homem está vivo.

 

VAI PASSAR

Nesse momento de pandemia, é difícil para nós, sonhadores e idealistas, termos um governante com tão pouco tato e sensibilidade para lidar com o luto de inúmeras famílias. Para além da inabilidade política de coordenar um grave problema de saúde pública, Jair Bolsonaro não tem uma postura digna do cargo que ocupa.

Entre a vida e a morte, entre a miséria e o arriscar a existência para sobreviver, seguem os brasileiros, aguardando por dias melhores. Precisamos de resiliência e equilíbrio emocional para aguentar tudo que ainda virá, da proliferação de uma doença ainda sem vacina até os desmandos de um capitão grosseiro e despreparado.

#vaipassar #forabolsonaro

Imagem: Fanpage Instituto Hilda Hilst/Reprodução

Voos Literários

Quem tem medo do feminismo negro?

Flávia Cunha
24 de julho de 2018

Vinte e cinco de julho é o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, mais uma das necessárias lutas dos movimentos negro e feminista. Sempre é preciso ter cuidado e respeito para falarmos sobre temas que não fazem parte da nossa própria realidade. Como mulher branca de classe média, apenas pelo exercício da alteridade e da sororidade posso tentar imaginar o que é ser negra em nosso país. Nesse Brasil da suposta democracia racial, em que o preconceito é velado e acaba sendo relativizado o tempo todo, até por feministas brancas. Dia desses, uma amiga negra escreveu um texto contundente, em que denunciava o racismo em determinados comportamentos masculinos. Qual não foi minha surpresa ao perceber apartes de mulheres brancas, apontando que era “apenas” machismo e tentando dizer que tinham passado por situações até piores. Me deu vergonha por essas minas do feminismo, brancas como eu, que não enxergam as dores das nossas manas negras.

Por essas e por outras situações ainda piores presentes no nosso cotidiano, recomendo a leitura de um livro corajoso e autêntico, chamado Quem tem medo do feminismo negro?, de Djamila Ribeiro, lançado em 2018. A obra conta com um relato autobiográfico e também com uma seleção de artigos publicados em seu blog da revista Carta Capital, entre 2014 e 2017.

Já na introdução, a filósofa e militante demonstra a força de sua história:

 

O feminismo negro não é uma luta meramente identitária, até porque branquitude e masculinidade também são identidades. Pensar feminismos negros é pensar projetos democráticos. Hoje afirmo isso com muita tranquilidade, mas minha experiência de vida foi marcada pelo incômodo de uma incompreensão fundamental. Não que eu buscasse respostas para tudo. Na maior parte da minha infância e adolescência, não tinha consciência de mim. Não sabia por que sentia vergonha de levantar a mão quando a professora fazia uma pergunta já supondo que eu não saberia a resposta. Por que eu ficava isolada na hora do recreio. Por que os meninos diziam na minha cara que não queriam formar par com a “neguinha” na festa junina. Eu me sentia estranha e inadequada, e, na maioria das vezes, fazia as coisas no automático, me esforçando para não ser notada.”

Djamila Ribeiro é uma das participantes da Festa Literária Internacional de Paraty, que começa nesta quarta-feira, com uma programação que tem mais mulheres do que homens.  A homenagem deste ano é para uma mulher, Hilda Hilst, uma poeta talentosa e mas que, em vida, teve pouco reconhecimento do público e da crítica.  É o segundo ano consecutivo que a Flip dá mais espaço para a presença feminina e negra. O fato é mérito da curadoria do evento, feita pela jornalista Joselia Aguiar.  Algo a ser comemorado em um panorama sociopolítico por vezes sombrio para quem é a favor dos direitos humanos e da igualdade de gênero e racial.

Foto: Cássia Tabatini

Voos Literários

Não é fácil ser mulher. Mas a gente segue na luta.

Flávia Cunha
5 de setembro de 2017

Nos últimos dias, um nó na garganta me invade com o debate a respeito da decisão judicial sobre o caso da ejaculação em cima de uma passageira de um ônibus em São Paulo. Não foi constrangimento. Não foi? Nem entro no mérito do direito criminalista, que não domino, mas na sensação de revolta provocada pelo teor da sentença, escrita por um homem.

Évelin Argenta, uma das colaboradoras do blog Reporteando, comentou nesse baita texto sobre como é difícil tratar o assunto como pauta ao conversar com colegas do sexo masculino. Parece que existe uma barreira interna em grande parte dos homens, que faz com que esse tipo de assunto seja considerado apenas uma vitimização da condição de ser mulher, quando o papo é bem mais complexo do que esse.

No caso da literatura brasileira, o machismo não é de hoje. Lá em 1897, uma mulher ajudou a fundar a Academia Brasileira de Letras. Era a carioca Júlia Valentina da Silveira Lopes de Almeida, uma ilustre desconhecida nos dias atuais. Apesar de ser uma escritora talentosa, foi barrada por ser mulher. Essa matéria aqui explica bem a situação, que está longe de ser mimimi. (Aliás, odeio esse termo, usado para tornar pejorativo causas essenciais nos dias atuais. Entre elas, o feminismo).

A aclamada escritora Lygia Fagundes Telles comentou, durante entrevista ao programa Roda Viva, que teve dificuldades de se impor no mundo da literatura por ser jovem e mulher. No início da sua carreira, ela relata que os comentários a seu respeito eram dirigidos à sua aparência e não à sua produção literária:

“Eu queria que me respeitassem e não respeitavam porque vinham com um negócio de beleza, eu ficava uma fúria, tá entendendo? Porque eu dizia: eu estou escrevendo tão bem e vocês não estão falando do meu texto, estão falando da minha cara. Isto me deixava muito infeliz e eu me sentia perseguida.”

Outra que sempre enfrentou barreiras na literatura foi Hilda Hilst. Nascida no interior de São Paulo, filha de pais separados, era extremamente anticonvencional para a época em que viveu. Na sua literatura, fez poesias “sérias” e literatura erótica, tachada por muitos de pura pornografia. Falecida em 2004, aos 74 anos, ela comentou muitas vezes sobre o assunto:

“Existe um grande preconceito contra a mulher escritora. Você não pode ser boa demais, não pode ter uma excelência muito grande. Se você tem essa excelência e ainda por cima é mulher, eles detestam e te cortam.”

O trecho acima de entrevista de Hilda à revista A-Z.

Mas como diz a bela canção interpretada por Maria Bethânia, “Não mexe comigo que eu não ando só”. A mulherada segue na luta, ainda precisando se fazer respeitar em suas áreas de atuação. Entre elas, a literatura, essa forma de arte tão menosprezada no Brasil.