Voos Literários

Quem tem medo do feminismo negro?

Flávia Cunha
24 de julho de 2018

Vinte e cinco de julho é o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, mais uma das necessárias lutas dos movimentos negro e feminista. Sempre é preciso ter cuidado e respeito para falarmos sobre temas que não fazem parte da nossa própria realidade. Como mulher branca de classe média, apenas pelo exercício da alteridade e da sororidade posso tentar imaginar o que é ser negra em nosso país. Nesse Brasil da suposta democracia racial, em que o preconceito é velado e acaba sendo relativizado o tempo todo, até por feministas brancas. Dia desses, uma amiga negra escreveu um texto contundente, em que denunciava o racismo em determinados comportamentos masculinos. Qual não foi minha surpresa ao perceber apartes de mulheres brancas, apontando que era “apenas” machismo e tentando dizer que tinham passado por situações até piores. Me deu vergonha por essas minas do feminismo, brancas como eu, que não enxergam as dores das nossas manas negras.

Por essas e por outras situações ainda piores presentes no nosso cotidiano, recomendo a leitura de um livro corajoso e autêntico, chamado Quem tem medo do feminismo negro?, de Djamila Ribeiro, lançado em 2018. A obra conta com um relato autobiográfico e também com uma seleção de artigos publicados em seu blog da revista Carta Capital, entre 2014 e 2017.

Já na introdução, a filósofa e militante demonstra a força de sua história:

 

O feminismo negro não é uma luta meramente identitária, até porque branquitude e masculinidade também são identidades. Pensar feminismos negros é pensar projetos democráticos. Hoje afirmo isso com muita tranquilidade, mas minha experiência de vida foi marcada pelo incômodo de uma incompreensão fundamental. Não que eu buscasse respostas para tudo. Na maior parte da minha infância e adolescência, não tinha consciência de mim. Não sabia por que sentia vergonha de levantar a mão quando a professora fazia uma pergunta já supondo que eu não saberia a resposta. Por que eu ficava isolada na hora do recreio. Por que os meninos diziam na minha cara que não queriam formar par com a “neguinha” na festa junina. Eu me sentia estranha e inadequada, e, na maioria das vezes, fazia as coisas no automático, me esforçando para não ser notada.”

Djamila Ribeiro é uma das participantes da Festa Literária Internacional de Paraty, que começa nesta quarta-feira, com uma programação que tem mais mulheres do que homens.  A homenagem deste ano é para uma mulher, Hilda Hilst, uma poeta talentosa e mas que, em vida, teve pouco reconhecimento do público e da crítica.  É o segundo ano consecutivo que a Flip dá mais espaço para a presença feminina e negra. O fato é mérito da curadoria do evento, feita pela jornalista Joselia Aguiar.  Algo a ser comemorado em um panorama sociopolítico por vezes sombrio para quem é a favor dos direitos humanos e da igualdade de gênero e racial.

Foto: Cássia Tabatini

Voos Literários

Uma Longa Vida Dedicada à Literatura

Flávia Cunha
16 de maio de 2017

Morreu, recentemente, aos 98 anos, Antonio Candido, um dos mais reconhecidos estudiosos da Literatura Brasileira. Ao ver no Facebook a publicação de um conhecido da área de Letras comentando o fato, imaginei que o fato não teria grande repercussão na grande mídia. Felizmente, me enganei e houve justas homenagens a esse crítico literário e professor universitário da USP. Destaco especialmente os artigos do Estado de São Paulo, em que há uma boa análise da sua trajetória, e da Folha de São Paulo, no qual ele é comparado a grandes teóricos como Gilberto Freyre (Casa Grande & Senzala) e Sérgio Buarque de Hollanda (Raízes do Brasil).

A comparação é feita principalmente devido ao trabalho mais grandioso desse carioca radicado em São Paulo: Formação da Literatura Brasileira: Momentos Decisivos. Lançado na década de 1950, a obra ainda está disponível para venda e é uma referência no meio acadêmico. Candido optou por estudar o Arcadismo e o Romantismo, considerados por ele decisivos para a formação do que ele chama de sistema literário, de forma a estabelecer uma tradição.

O interessante é que a criação desse sistema literário não era considerado por Antonio Candido o essencial de sua obra, mas foi o mais chamou a atenção da crítica. Rebatendo seus críticos da época, ele escreveu o seguinte comentário no prefácio da segunda edição da obra (ainda na década de 1950):

“Este livro foi recebido normalmente com louvores e censuras. Mas tanto num quanto noutro caso, o que parece haver interessado realmente aos críticos e noticiaristas foi a “Introdução”, pois quase apenas ela foi comentada, favorável ou desfavoravelmente. Esse interesse pelo método talvez seja um sistema de estarmos, no Brasil, preferindo falar sobre a maneira de fazer crítica, ou traçar panoramas esquemáticos, a fazer efetivamente crítica, revolvendo a intimidade das obras e as circunstâncias que a rodeiam.”

Ele também enfrentou artigos contrários na imprensa da época pelo fato de não ter incluído em seu o livro um estudo sobre o Barroco. Sobre essa fato, Candido argumentou nunca ter negado a existência da literatura barroca e que a censura à sua decisão de utilizar o século 18 como o momento em que o sistema literário se configura se deve “a uma vontade por parte da crítica de compreender que a literatura pode ser estudada de várias formas”.

E a gente aqui achando que os haters são uma novidade da pós-modernidade…

Ainda sobre Antonio Candido, outro fato que sempre me chamou a atenção sobre ele foi sua amizade com Oswald de Andrade, o modernista mais transgressor da Semana de 1922. Curiosamente, foi devido a uma crítica literária negativa que a amizade entre os dois começou.

“Ele zangou e escreveu um artigo muito violento sobre mim. Mas depois nos encontramos em uma livraria e ele disse: ‘ataquei você com violência e você respondeu com serenidade. Proponho que nos tornemos amigos’.”

A revelação de Antonio Candido ocorreu durante evento promovido pela Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), em 2011.

Quem dera que as críticas (sejam elas literárias, ou não) sempre acabassem assim: em harmonia e com a descoberta de uma verdadeira amizade.