Voos Literários

Vinicius, as feias (e as bonitas) não te perdoam

Flávia Cunha
30 de outubro de 2019

Recentemente, umas das páginas de humor e deboche que eu mais gosto, Ajudar o Povo de Humanas a Fazer Miçanga, postou esse meme sobre Vinicius de Moraes.    

A frase, infeliz, sobre a beleza ser fundamental é do poema Receita de Mulher, publicado pelo poetinha em 1957. Para minha surpresa, vi comentários, inclusive femininos, defendendo Vinicius, dizendo que a frase estava fora de contexto, uma das maiores desculpas para justificar erros do presente e do passado. Mas vamos lá, em que contexto Vinicius de Moraes falou esse verso pavoroso? Pois foi justamente na abertura do poema: 

“As muito feias que me perdoem //  Mas beleza é fundamental // É preciso //  Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso // Qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture // Em tudo isso”.

Vamos pensar junto com o poeta lá no fim da década de 1950. Ele defende que a mulher precisa ser bela, ter qualquer coisa de flor e de dança. Então, além de bonita, a mulher ideal da poética de Vinicius precisa ser delicada e graciosa. Tudo bem, Vinicius, a liberação sexual feminina ainda não era uma realidade e o feminismo engatinhava no mundo. O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, tinha sido lançado em 1949. Porém, a obra no Brasil ainda tinha pouca repercussão na época em que Vinicius ficava tentando ensinar às mulheres como ser ou se comportar.

Na Internet do século 21, algumas pessoas afirmaram que o poema em questão falava em “beleza interior”. Pois sou obrigada a discordar, não por implicância, mas porque os versos em si são bastante claros ao apontar apenas aspectos físicos femininos, como no trecho a seguir:

“Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos, então  // Nem se fala, que olhem com certa maldade inocente. Uma boca // Fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência. // É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos // Despontem, sobretudo a rótula no cruzar as pernas, e as pontas pélvicas // No enlaçar de uma cintura semovente. // Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteiras // É como um rio sem pontes. Indispensável // Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida // A mulher se alteia em cálice, e que seus seios // Sejam uma expressão greco-romana, mais que gótica ou barroca.”

Como um todo, o poema é mesmo uma receita, com instruções para as mulheres. Porém, é uma receita bastante cruel, já que as feias que perdoem o poeta, mas beleza seria fundamental. Mesmo com a ressalva de tantas décadas que nos separam da publicação desse texto, sabemos que a ditadura da beleza segue firme e forte. O Brasil continua campeão no ranking de cirurgias plásticas e a obsessão feminina pelo corpo perfeito ainda permanece bem maior do que a masculina. 

Claro que a discussão começa com uma brincadeira virtual. Porém, julgo necessário ressaltar. Mesmo que Vinicius de Moraes estivesse lindo em qualquer foto, ele não teria o direito de julgar a aparência alheia. Mas, na década de 1950, não havia essa visão. Tanto que um dos poetas mais consagrados do país escreveu, publicou e ficou famoso e respeitado mesmo com letras de música e poemas bastante questionáveis para a nossa visão contemporânea. Sigo admirando o poetinha, ele deixou um legado inegável para a poesia e a música brasileira. Mas não dá para passar pano para esse verso. 

“Vinicius que me perdoe,

Mas respeitar a aparência de todas as mulheres é que é fundamental.”

O poema completo está disponível no site oficial do escritor.

 

 

Voos Literários

Clarice Lispector: repórter por mais de um dia

Flávia Cunha
29 de agosto de 2017

Eu já falei por aqui de escritores brasileiros que precisam trabalhar na imprensa para pagar as contas. Participando desse grupo movido pela urgência financeira, está a figura ilustre de Clarice Lispector. Em diversos momentos de sua vida, teve que recorrer a empregos em jornais e revistas, mesmo sendo uma autora de livros prestigiados pela crítica.

Um registro expressivo da escritora como repórter pode ser conferido em Clarice Lispector: Entrevistas. A obra é uma compilação de textos publicados na revista Manchete, nos anos de 1968 e 1969, e também na revista Fatos e Fotos: Gente, em 1976, um pouco antes de falecer.  Entre os entrevistados, grande nomes como Nelson Rodrigues, Emerson Fittipaldi e Ferreira Gullar.

Minha entrevista favorita é com Vinicius de Moraes. Selecionei alguns trechos desse bate-papo entre essas duas personalidades importantes da literatura brasileira, com personalidades distintas porém igualmente marcantes.

A conversa começa já bem descontraída:

– Vinícius, acho que vamos conversar sobre mulheres, poesia e música. Sobre mulheres porque corre a fama de que você é um grande amante. Sobre poesia porque você é um dos nossos grandes poetas. Sobre música,  porque  você é o nosso menestrel.

Em determinado momento, Clarice decide saber sobre a porção músico do poetinha:

– Fale-me sobre sua música.

– Não falo de mim como músico, mas como poeta. Não separo a poesia que está nos livros da que está nas canções.

Depois, a conversa flui para a porção escritor de Vinicius:

– Você sabe que admiro muitos seus poemas, e, mas do que gostar, eu os  amo. O que á a poesia para você?

– Não sei, eu nunca  escrevo poemas abstratos , talvez   seja o modo de tornar a realidade mágica  aos meus próprios olhos.  De envolvê-la com esse tecido que dá uma dimensão  mais profunda e consequente mais bela.

Clarice como repórter deixa transparecer seus sentimentos e relata inclusive os instantes de silêncio entre os dois:

Fizemos uma pausa. Ele continuou:

– Tenho tanta ternura pela sua mão queimada…..

( Emocionei-me e entendi que este homem envolve uma mulher de carinho.)

O comentário de Vinicius refere-se à sequela de um incêndio que a escritora escapou, em 1966. O fogo começou devido a um cigarro esquecido por ela, que destruiu todo o seu quarto e atingiu sua mão direita, que por pouco não foi amputada.

Para fechar esse texto, mais uma reflexão do poeta da paixão.

Vinicius disse, tomando um gole de uísque:

– […] Eu só sei criar na dor e na tristeza, mesmo que as coisas que resultem sejam alegres. Não me considero uma pessoa negativa, quer dizer, eu não deprimo o ser humano. É por isso que acho que estou vivendo num movimento de equilíbrio infecundo do qual estou tentando me libertar. O paradigma máximo para mim seria: a calma no seio da paixão. Mas realmente não sei se é um ideal humanamente atingível.

A entrevista completa está nesse site.

Para saber mais:

https://claricelispectorims.com.br/

http://www.viniciusdemoraes.com.br/