Voos Literários

Chegamos a 150 voos literários

Flávia Cunha
3 de janeiro de 2020

Essa coluna completa hoje 150 textos publicados semanalmente. Os leitores que têm o hábito da escrita podem imaginar como é difícil manter a disciplina. É um desafio. E é impressionante como o processo de criação varia de acordo com o tema escolhido.

Às vezes, as palavras fluem imediatamente do documento em branco no computador, resultando em um post praticamente pronto, merecendo uma mera revisão. Em outras ocasiões, é preciso parar, refletir. Fazer pesquisas. Dar um tempo. E esperar que as ideias se acomodem internamente até resultarem no texto final. Mas acho que venho conseguindo cumprir a promessa que fiz à editora-chefe do Vós, Geórgia Santos: conectar a Literatura com a atualidade e provocar reflexões. E também incentivar a ideia que a leitura é libertadora e democrática. Um hábito que pode ser prazeroso, estimulante e, dependendo da obra escolhida, se transformar em um ato revolucionário, ainda que de revolução interna. Mas deixando a “egotrip” de lado e estimulada pela reflexão a respeito do exercício de escrita, resolvi abordar o processo criativo de dois escritores famosos e diferentes entre si: Clarice Lispector e Stephen King. .

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STEPHEN KING

O mestre do suspense, reconhecido por romances de grande fôlego, também é exímio na arte de surpreender com histórias curtas. No livro O Bazar dos Sonhos Ruins, o norte-americano brinda os leitores com enredos que flertam com o fantástico e o inesperado. Antes de cada conto, um presente para os mais curiosos: o autor revela como surgiu a ideia que resultou nos textos.  Já na introdução podemos observar o caráter confessional dessa obra de Stephen King:

“Você ficaria surpreso (ao menos, acho que ficaria) com a quantidade de pessoas que me perguntam por que eu ainda escrevo contos. […] Sou romancista por natureza, isso eu admito, e tenho um gosto particular por histórias longas que criam uma experiência de imersão tanto para o autor quanto para o leitor, onde a ficção tem a chance de se tornar um mundo quase real. […] Mas há algo especial nas experiências mais curtas e mais intensas. Podem ser revigorantes, às vezes até chocantes, como uma valsa com um estranho que você nunca mais vai encontrar, ou um beijo no escuro, ou uma bela raridade à venda sobre um lençol barato em um bazar. E, sim, quando minhas histórias estão reunidas, sempre me sinto como um vendedor ambulante, um que só vende à meia-noite. Exibo minha mercadoria e convido o leitor (você) a escolher o que quiser.”

Meu conto predileto entre os 20 publicados nesse livro é Garotinho Malvado, que tem uma singela explicação por parte de King para sua criação. O resultado é um enredo simples mas com doses de suspense e terror bem ao gosto de fãs do gênero :

“Em algum momento, decidi que queria escrever uma história sobre um garotinho malvado que se mudava para um novo bairro. Não um garoto que fosse literalmente o filho do diabo, não um garoto possuído pelo demônio no estilo O exorcista, mas só malvado por ser malvado, malvado até o último fio de cabelo, a apoteose de todos os garotinhos malvados que já existiram. Eu o via de short e com um boné com hélice no alto da cabeça. Eu o via sempre criando confusão e nunca se comportando.”

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CLARICE LISPECTOR

Já Clarice escolhe falar de seu processo criativo de forma mais indireta. A escritora cria em Um Sopro de Vida o alter ego de um autor, que escreve sobre uma personagem chamada Ângela Pralini. Em uma espécie de prefácio sem maiores explicações, o enredo começa a abordar os desafios da escrita, por parte desse autor-narrador-personagem: “Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida.”

Mais adiante, Clarice prossegue em sua divagação-confissão:

“Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto – e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente. Mas é um vazio terrivelmente perigoso: dele arranco sangue. Sou um escritor que tem medo da cilada das palavras: as palavras que digo escondem outras – quais? talvez as diga. Escrever é uma pedra lançada no poço fundo.”

Em determinados trechos, o recurso da metalinguagem fica explícito:

“Este é um livro silencioso. E fala, fala baixo. Este é um livro fresco – recém-saído do nada. […] Este livro é um pombo-correio. Eu escrevo para nada e para ninguém. Se alguém me ler será por conta própria e autorrisco. Eu não faço literatura: eu apenas vivo ao correr do tempo. O resultado fatal de eu viver é o ato de escrever. […] Cada novo livro é uma viagem. Só que é uma viagem de olhos vendados em mares nunca dantes revelados – a mordaça nos olhos, o terror da escuridão é total. Quando sinto uma inspiração, morro de medo porque sei que de novo vou viajar e sozinho num mundo que me repele. Mas meus personagens não têm culpa disso e eu os trato o melhor possível. Eles vêm de lugar nenhum. São a inspiração. Inspiração não é loucura. É Deus. Meu problema é o medo de ficar louco. Tenho que me controlar. […] Este ao que suponho será um livro feito aparentemente por destroços de livro. Mas na verdade trata-se de retratar rápidos vislumbres meus e rápidos vislumbres de meu personagem Ângela. Eu poderia pegar cada vislumbre e dissertar durante páginas sobre ele. Mas acontece que no vislumbre é às vezes que está a essência da coisa. Cada anotação tanto no meu diário como no diário que eu fiz Ângela escrever, levo um pequeno susto.”

Caio Fernando Abreu, um fã confesso de Clarice Lispector, também sentia essa necessidade incessante da escrita, como uma forma de manter-se vivo. Em Pequenas Epifanias, o escritor coloca uma epígrafe de sua própria autoria:

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“Continuo a pensar que quando tudo parece sem saída, sempre se pode cantar.

Por essa razão escrevo”

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Que encontremos soluções positivas e criativas para os becos sem saída desse momento sociopolítico brasileiro: escrever, pintar, dançar, cantar, encenar…. Modestamente, prossigo por aqui escrevendo, pois é meu instrumento de resistência. Desejo um feliz e potente 2020 aos leitores do Vós e da coluna Voos Literários. Sigamos!

Imagens: Reprodução/ Internet

PodCasts

Sobre Nós #13 A fuga

Geórgia Santos
14 de dezembro de 2018

No Sobre Nós, Raquel Grabauska e Angelo Primon fazem uma homenagem à Clarice Lispector com o conto “A Fuga”.  Ela faria 98 anos no dia 10 de dezembro de 2018. O trabalho é também uma provocação a algumas das ideias ventiladas no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos.

Voos Literários

No Dia dos Namorados, o amor na visão de grandes escritores

Flávia Cunha
12 de junho de 2018

Tenho uma certa implicância com o aspecto comercial do Dia dos Namorados, mas é bonito de ver o amor ser exaltado mais do que o ódio nas redes sociais, pelo menos uma vez no ano.  Em homenagem à data, selecionei alguns trechos de grandes escritores falando sobre esse sentimento poderoso, incontrolável e, por vezes, incoerente.

Para começo de conversa, um pouco de Caio Fernando Abreu aos que vislumbram os primeiros sintomas do amor (e da paixão):

“Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.

Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro.”

Em Pequenas Epifanias

Indico Clarice Lispector para os que amam e, por algum motivo, sofrem por esse amor:

“Mas há a espera. A espera é sentir-me voraz em relação ao futuro. Um dia disseste que me amavas. Finjo acreditar e vivo, de ontem pra hoje, em amor alegre. Mas lembrar-se com saudade é como se despedir de novo”.

Em Água viva

Aconselho aos portadores perpétuos de paixões desmedidas, ler Gabriel García Márquez sem moderação:

“Ele ainda era demasiado jovem para saber que a memória do coração elimina as coisas más e amplia as coisas boas, e que graças a esse artifício conseguimos suportar o peso do passado.”

Em O amor nos tempos do cólera

Esse poema de Mario Quintana é fundamental aos que temem ser exaustivos na expressão de seus sentimentos:

Fere de leve a frase… E esquece… Nada

Convém que se repita…

Só em linguagem amorosa agrada

A mesma coisa cem mil vezes dita.”

Em Espelho Mágico

E, por fim, recomendo Shakespeare aos céticos à entrega amorosa genuína:

É um amor pobre aquele que se pode medir.”

Em Antônio e Cleópatra

 

 

Voos Literários

Conceição Evaristo ganhou um prêmio literário. E isso é simplesmente maravilhoso

Flávia Cunha
3 de abril de 2018

Recentemente, a escritora mineira Conceição Evaristo foi eleita na categoria Destaque do prêmio Bravo de literatura. Porque o fato chama a atenção? Além da qualidade indiscutível do seu trabalho na área literária, ela é militante do movimento negro e a gente sabe que se já é difícil para mulheres em geral terem o respeito no meio literário, imagine ainda ter de enfrentar o racismo estrutural existente no Brasil. No discurso durante a premiação, Conceição Evaristo destacou que aquele prêmio era importante não apenas para ela, mas para todas as mulheres, especialmente as negras.

Nascida em uma favela em Belo Horizonte, conciliou os estudos com o trabalho de empregada doméstica. Depois, se mudou para o Rio de Janeiro, onde se formou em Letras, com mestrado e doutorado na área de Literatura. Na década de 1990, teve suas primeiras obras publicadas.

Para homenagear essa baita escritora, escolhi um texto em que ela faz referência a outras duas autoras: Clarice Lispector e Carolina Maria de Jesus, que escreveu o livro Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada.

Clarice no quarto de despejo

No meio do dia

Clarice entreabre o quarto de despejo

pela fresta percebe uma mulher.

Onde estiveste à noite, Carolina?

Macabeando minhas agonias, Clarice.

Um amargor pra além da fome e do frio,

Da bica e da boca em sua secura.

De mim, escrevo não só a penúria do pão,

cravo no lixo da vida, o desespero,

uma gastura de não caber no peito,

e nem no papel.

Mas, ninguém me lê, Clarice,

Para além do resto.

Ninguém decifra em mim

a única escassez da qual não padeço,

– a solidão –

 

E ajustando o seu par de luvas claríssimas

Clarice futuca um imaginário lixo

e pensa para Carolina:

– a casa poderia ser ao menos de alvenaria –

E anseia ser Bitita inventando um diário:

páginas de jejum e de saciedade sobejam,

a fome nem em pedaços

alimenta a escrita clariciana.

 

Clarice no quarto de despejo

lê a outra, lê Carolina,

a que na cópia das palavras,

faz de si a própria inventiva.

Clarice lê :

– despejo e desejos

Conceição Evaristo também será homenageada em Porto Alegre, durante a FestiPoa Literária. O objetivo é chamar a atenção para a produção literária das mulheres, em especial das mulheres negras. A abertura vai ser dia 2 de maio, no Salão de Atos da UFRGS, com entrada franca. Mais detalhes aqui.

 

Voos Literários

Clarice Lispector: repórter por mais de um dia

Flávia Cunha
29 de agosto de 2017

Eu já falei por aqui de escritores brasileiros que precisam trabalhar na imprensa para pagar as contas. Participando desse grupo movido pela urgência financeira, está a figura ilustre de Clarice Lispector. Em diversos momentos de sua vida, teve que recorrer a empregos em jornais e revistas, mesmo sendo uma autora de livros prestigiados pela crítica.

Um registro expressivo da escritora como repórter pode ser conferido em Clarice Lispector: Entrevistas. A obra é uma compilação de textos publicados na revista Manchete, nos anos de 1968 e 1969, e também na revista Fatos e Fotos: Gente, em 1976, um pouco antes de falecer.  Entre os entrevistados, grande nomes como Nelson Rodrigues, Emerson Fittipaldi e Ferreira Gullar.

Minha entrevista favorita é com Vinicius de Moraes. Selecionei alguns trechos desse bate-papo entre essas duas personalidades importantes da literatura brasileira, com personalidades distintas porém igualmente marcantes.

A conversa começa já bem descontraída:

– Vinícius, acho que vamos conversar sobre mulheres, poesia e música. Sobre mulheres porque corre a fama de que você é um grande amante. Sobre poesia porque você é um dos nossos grandes poetas. Sobre música,  porque  você é o nosso menestrel.

Em determinado momento, Clarice decide saber sobre a porção músico do poetinha:

– Fale-me sobre sua música.

– Não falo de mim como músico, mas como poeta. Não separo a poesia que está nos livros da que está nas canções.

Depois, a conversa flui para a porção escritor de Vinicius:

– Você sabe que admiro muitos seus poemas, e, mas do que gostar, eu os  amo. O que á a poesia para você?

– Não sei, eu nunca  escrevo poemas abstratos , talvez   seja o modo de tornar a realidade mágica  aos meus próprios olhos.  De envolvê-la com esse tecido que dá uma dimensão  mais profunda e consequente mais bela.

Clarice como repórter deixa transparecer seus sentimentos e relata inclusive os instantes de silêncio entre os dois:

Fizemos uma pausa. Ele continuou:

– Tenho tanta ternura pela sua mão queimada…..

( Emocionei-me e entendi que este homem envolve uma mulher de carinho.)

O comentário de Vinicius refere-se à sequela de um incêndio que a escritora escapou, em 1966. O fogo começou devido a um cigarro esquecido por ela, que destruiu todo o seu quarto e atingiu sua mão direita, que por pouco não foi amputada.

Para fechar esse texto, mais uma reflexão do poeta da paixão.

Vinicius disse, tomando um gole de uísque:

– […] Eu só sei criar na dor e na tristeza, mesmo que as coisas que resultem sejam alegres. Não me considero uma pessoa negativa, quer dizer, eu não deprimo o ser humano. É por isso que acho que estou vivendo num movimento de equilíbrio infecundo do qual estou tentando me libertar. O paradigma máximo para mim seria: a calma no seio da paixão. Mas realmente não sei se é um ideal humanamente atingível.

A entrevista completa está nesse site.

Para saber mais:

https://claricelispectorims.com.br/

http://www.viniciusdemoraes.com.br/

 

Voos Literários

Diretas Já, feminismo e literatura

Flávia Cunha
13 de junho de 2017

No último final de semana, aconteceram manifestações pelas Diretas Já em diversas cidades brasileiras. Em São Paulo, o protesto realizado nesse domingo teve um enfoque diferente: colocar em pauta os direitos das mulheres. A ideia partiu da escritora Clara Averbuck, sobre quem já escrevi aqui.

Eu respeito o trabalho literário da Clara e também sua coragem em se posicionar politicamente em um período de tanto ódio nas redes sociais e fora delas. A trajetória pessoal de escritores e outras personalidades nem sempre é admirável. Mas existem muitas mulheres que fizeram a diferença e servem de exemplos para todos com suas histórias de vida.

Em homenagem ao ato feminista pelas Diretas Já, selecionei cinco biografias de mulheres poderosas de diferentes áreas. Inspirem-se!!

 Carmen Miranda – A trajetória da pequena notável é contada com maestria por Ruy Castro em Carmen, Uma Biografia.

Clarice Lispector – A obra Clarice, é uma referência para os amantes da literatura, mostrando a vida e obra da escritora pela visão do norte-americano Benjamin Moser.

Frida Kahlo – O livro mostra a intimidade da pintora que transformou sua vida em arte. Frida – A Biografia foi escrita por Hayden Herrera.

Janis Joplin – A roqueira transgressora pela visão da irmã na obra Com Amor, Janis Joplin, de Laura Joplin.

Elis Regina – A cantora Elis Regina têm mais de uma obra dedicada à sua trajetória. Indico Elis, Uma Biografia Musical, escrita pelo gaúcho Arthur de Faria.

Voos Literários

Mulheres Que Escrevem Sobre Mulheres

Flávia Cunha
18 de abril de 2017

Quantos livros escritos por mulheres você já leu ao longo da vida? Na escola. Para o vestibular. Na faculdade. Na vida. O tema de um curso me despertou essa inquietante questão. Logo eu, feminista. Logo eu, que me preocupo com as questões de gênero. Mas a verdade é que o próprio sistema de ensino favorece o acesso a obras criadas por homens. Tomando como exemplo a lista de leituras obrigatórias do processo seletivo da UFRGS para 2018 traz apenas duas escritoras: Carolina Maria de Jesus, com Quarto de Despejo (uma novidade nessa seleção) e Clarice Lispector, com A Hora da Estrela, que já integrava a lista.

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Por isso me interessei muito pelo tema proposto no curso Mulheres que escrevem sobre mulheres, que aborda escritoras e pesquisadoras que estudam ou escrevem sobre outras autoras

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A ministrante é a jornalista e escritora Priscila Pasko. Ela também é idealizadora, editora e repórter do blog Veredas , espaço que discute e divulga a literatura produzida por mulheres, que pertence ao site Nonada. Priscila também integra o Grupo de Pesquisa Permanente em Literatura de Autoria feminina de Porto Alegre. Também escreve no Tumblr Parece a vida mas é real.

Priscila afirma não cansar de citar a premiada escritora espanhola Antonina Rodrigo: “si no hablamos nosotras de nosotras, quién lo va a hacer?”. Antonina é considerada um ícone da literatura feminista. Escreveu diversos ensaios sobre mulheres, além de estudos históricos e biográficos.

O curso vai abordar genealogia, linhagem e ancestralidade presentes na literatura de autoria feminina, a partir de conceitos criados pela professora e pesquisadora Lélia Almeida, uma das estudiosas abordadas durante a atividade. Também serão analisadas as obras de Virginia Woolf,  Zahidè Muzart, Anna Faedrich, Camila Doval, Nubia Hanciau e Lúcia Maia, entre outras.

Eu fiquei super curiosa para saber quais outras autoras serão debatidas ao longo das três horas de atividade, que vai ser promovida no dia 13 de maio, em Porto Alegre. O curso sera realizado no Clube de Leitores, um novo espaço cultural de Porto Alegre. Para quem se interessou, a inscrição pode ser feita aqui.