Voos Literários

A força da literatura produzida por mulheres

Flávia Cunha
7 de fevereiro de 2021

As mulheres ainda são minoria no mercado editorial brasileiro, seja entre autoras publicadas, editoras e demais profissionais do setor. Sem dúvida, a falta de representatividade feminina na literatura brasileira é um reflexo da sociedade patriarcal na qual vivemos. A partir de uma visão machista, obras escritas por homens são consideradas universais, enquanto títulos de autoria de mulheres são colocados em um nicho. Neste raciocínio equivocado, livros  de autores homens seriam destinados a todas as pessoas. Já as obras produzidas por mulheres, atingiriam apenas o público feminino. 

 Mulherio das Letras

Buscando ampliar a participação no mercado editorial, muitas mulheres têm se organizado em coletivos que tem como  objetivo o fortalecimento e projeção da literatura de autoria feminina. Um deste grupos é o Mulherio das Letras, criado em 2017, e que atualmente conta com mais de 7 mil seguidores no Facebook. Ao longo dos anos, foram sendo criados grupos regionais em diversos estados brasileiros e também no Exterior, mostrando a potência da articulação feminina e feminista.

A principal meta do grupo Mulherio das Letras nas redes sociais é fomentar a divulgação de obras escritas por mulheres. E foi lá que tive o contato inicial com a poeta paraibana Anna Apolinário. Anna, que também é produtora cultural e organizadora do sarau Selváticas, me enviou informações sobre seu livro mais recente, A chave selvagem do sonho

Anna Apolinário

Ao terminar a leitura da obra, me vieram à mente os adjetivos forte e visceral. Pois são poemas que demonstram a coragem do desnudar-se, do inebriar-se por sonhos e vontades, em uma demonstração libertária que sabemos ter sido sistematicamente negada às mulheres.  Do livro, destaco trechos do texto Carta à Sylvia Plath, que homenageia a escritora norte-americana, considerada uma referência na poesia confessional e que morreu tragicamente, ao suicidar-se, em 1963. 

“Carta a Sylvia Plath
Estamos em 2018, Sylvia, o céu desaba sob minhas pupilas, pelo quarto ecoa o gemido da guitarra de PJ Harvey, no viço de meus trinta anos, me perfumo com feromônios ofídicos e continuo pensando em ti, por isso te escrevo. […] O mundo hoje é ainda um emaranhado terrível, Sylvia, gosto de me fechar dentro de teu poema, beber tua voz, um vinho hipnótico e obscuro, sentir a tremenda embriaguez dos sentidos, teu canto hediondo de sereia.”

Para saber mais informações sobre A chave selvagem do sonho, clique aqui.

Homenagem à Marielle Franco

Além de lançar obras individuais, Anna Apolinário também costuma participar de antologias coletivas, como Um girassol nos teus cabelos – poemas para Marielle FrancoO livro reuniu 50 poetas em uma iniciativa do grupo Mulherio das Letras publicada pela Quintal Edições. 

Encerro este texto com o poema de Anna Apolinário em homenagem à vereadora assassinada em março de 2018, em um crime que precisa ser urgentemente esclarecido.

Mulher, 

Aniquilam-te o corpo

Derramam teu sangue

Covardemente

Mas em teu nome

Nenhum talho

Tua luta, tua ideia, tua voz

Pulsam

Incessantes

Dentro e além deste poema

A morte não conduz ao silêncio

Mas engendra e fortalece o grito:

Marielle, presente!

Agora, sempre.

 

Imagem de capa:  Sergey Zolkin/Unsplash

Do seu gênero

Mulheres também sabem, sabia?

Évelin Argenta
11 de janeiro de 2019

Como as mulheres estão presentes na mídia? Foi para ter uma resposta para essa pergunta que comecei uma pesquisa em busca de trabalhos que retratem como a mulher aparece na imprensa. Trabalho com produção diária de notícias há quase 10 anos (eita!) e foi somente nos últimos dois que comecei a questionar a presença de mulheres como FONTE de informação.

A prevalência masculina nas agendas jornalísticas nem precisa de pesquisa para ser comprovada. Você, amigo jornalista, faça um teste. Pense em uma fonte para falar sobre o discurso do presidente Jair Bolsonaro nas relações internacionais do governo, por exemplo. Se o primeiro nome que veio a sua mente foi um nome feminino, parabéns! É de gente como você que a difusão de conhecimento precisa.

As mulheres são maioria em todos os níveis de ensino e nas bolsas de iniciação científica e mestrado do CNPq. Olhando os dados do próprio CNPq e do Inep percebi que as mulheres representam 57% do público nos cursos de graduação, 55% dos cursos de iniciação científica, 52% dos programas de mestrado e 50% no doutorado. A curva começa a inverter quando o caminho traçado é a docência.

Apesar de serem minoria durante todo o caminho acadêmico, os homens chegam à docência universitária e têm o reconhecimento à pesquisa em menos tempo. Eles lideram 53% dos grupos de pesquisa. Cinquenta e quatro por cento dos professores universitários são homens e 64% das bolsas de produtividade em pesquisa são destinadas aos homens.

Em 2018 eles chegaram ao topo da vida acadêmica aos 50 anos. Elas, aos 55. E a maternidade é apontada como uma das causas do “atraso”. Há uns dois anos, produzindo uma reportagem para retratar o número cada vez maior de mulheres que não queriam ter filhos no Brasil, conversei com a presidente da ONG Artemis, Raquel Marques. Se quiser ouvir a reportagem, ela está aqui 

Depois de uma longa conversa sobre os fatores que levam as mulheres e quererem menos filhos, ela me fez refletir sobre algo que, apesar de óbvio, ainda não tinha aparecido no meu raciocínio. Raquel disse que, normalmente, o ápice profissional das mulheres coincide com o limite biológico para gerar filhos. É que muitas de nós, aos 40 anos, estamos com a seguinte pergunta em mente: “ser a teta das galáxias na minha área ou desacelerar e ter um filho?”

Se a resposta for a primeira, você vai ser julgada como insensível e irresponsável. A Previdência precisa de seus úteros, meninas! Se você escolher a segunda opção, prepare-se. Quando você voltar ao trabalho, precisará concorrer com o seu colega que, na mesma idade que você, não terá que “deixar o trabalho” eventualmente para cuidar da cria. Ah, sim…mesmo que ele seja pai.

É por esse motivo que muitas mulheres são “esquecidas” em suas áreas de trabalho. A ideia de conhecimento foi social e culturalmente ligada ao gênero masculino.  É por isso que as agendas jornalísticas (onde estão as fontes para qualquer assunto) são predominantemente masculinas. Tem dúvida? Então olha só esse estudo feito pelo Global Media Monitoring Project (GMMP), em 2015. O Grupo de Monitoramento Global da Mídia (ufa!) analisou 22.136 relatos transmitidos jornalistas de 2.030 veículos de comunicação em 114 países. É o estudo mundial desse tipo mais recente. O resultado:

  • somente 24% das matérias de rádio, TV ou jornal de 2015 contaram com mulheres como fontes;
  • quando o assunto foi política ou economia, as mulheres representaram apenas 16% das fontes;
  • apenas 35% das notas informativas ou programas diários de televisão retrataram mulheres em 2015;
  • a seleção das fontes para o jornalismo em 2015 se concentrou nos homens. O estudo mostra que a escolha é inclinada à masculinidade ao selecionar personagens e fontes para opinião “especializada” e “testemunhos comuns”;
  • as mulheres mostram suas opiniões em três casos: como mães/donas de casa (13%), quando são apenas moradoras de uma localidade (22%) ou quando são descritas como estudantes (17%);
  • somente 4% das matérias produzidas em 2015 questionaram os estereótipos de gênero;
  • a proporção de mulheres noticiando fatos ficou muito abaixo da paridade nas editorias de política e economia. Somente 31% das notícias que abordam política e 39% das que falam de economia foram produzidas por mulheres;
  • nos noticiários de televisão, as mulheres predominam quando jovens e, conforme a idade aumenta, elas são substituídas por homens. Na faixa dos 65 anos, as mulheres desaparecem totalmente da ancoragem e da reportagem. Os homens continuam.

O estudo, como podem imaginar, é bem mais complexo e proporciona uma série de outros cruzamentos. Se você ficou curioso pode clicar nesse link e ver o levantamento na íntegra. O original é em inglês, mas existe uma versão em espanhol também.

Para contribuir com a discussão, deixo aqui um site que tenho usado muito como referência quando estou buscando uma fonte para falar de determinado assunto. É uma lista organizada por cientistas sociais, comunicadoras, historiadoras e filósofas para mostrar que #MulheresTambémSabem. O banco de dados é super acessível e colaborativo. Ele contém o nome  de professoras, pesquisadoras e profissionais especialistas em uma variedade de áreas das Ciências Sociais, Sociais Aplicadas e Humanidades.

Mulheres Também Sabem: https://www.mulherestambemsabem.com

 

Voos Literários

Conceição Evaristo ganhou um prêmio literário. E isso é simplesmente maravilhoso

Flávia Cunha
3 de abril de 2018

Recentemente, a escritora mineira Conceição Evaristo foi eleita na categoria Destaque do prêmio Bravo de literatura. Porque o fato chama a atenção? Além da qualidade indiscutível do seu trabalho na área literária, ela é militante do movimento negro e a gente sabe que se já é difícil para mulheres em geral terem o respeito no meio literário, imagine ainda ter de enfrentar o racismo estrutural existente no Brasil. No discurso durante a premiação, Conceição Evaristo destacou que aquele prêmio era importante não apenas para ela, mas para todas as mulheres, especialmente as negras.

Nascida em uma favela em Belo Horizonte, conciliou os estudos com o trabalho de empregada doméstica. Depois, se mudou para o Rio de Janeiro, onde se formou em Letras, com mestrado e doutorado na área de Literatura. Na década de 1990, teve suas primeiras obras publicadas.

Para homenagear essa baita escritora, escolhi um texto em que ela faz referência a outras duas autoras: Clarice Lispector e Carolina Maria de Jesus, que escreveu o livro Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada.

Clarice no quarto de despejo

No meio do dia

Clarice entreabre o quarto de despejo

pela fresta percebe uma mulher.

Onde estiveste à noite, Carolina?

Macabeando minhas agonias, Clarice.

Um amargor pra além da fome e do frio,

Da bica e da boca em sua secura.

De mim, escrevo não só a penúria do pão,

cravo no lixo da vida, o desespero,

uma gastura de não caber no peito,

e nem no papel.

Mas, ninguém me lê, Clarice,

Para além do resto.

Ninguém decifra em mim

a única escassez da qual não padeço,

– a solidão –

 

E ajustando o seu par de luvas claríssimas

Clarice futuca um imaginário lixo

e pensa para Carolina:

– a casa poderia ser ao menos de alvenaria –

E anseia ser Bitita inventando um diário:

páginas de jejum e de saciedade sobejam,

a fome nem em pedaços

alimenta a escrita clariciana.

 

Clarice no quarto de despejo

lê a outra, lê Carolina,

a que na cópia das palavras,

faz de si a própria inventiva.

Clarice lê :

– despejo e desejos

Conceição Evaristo também será homenageada em Porto Alegre, durante a FestiPoa Literária. O objetivo é chamar a atenção para a produção literária das mulheres, em especial das mulheres negras. A abertura vai ser dia 2 de maio, no Salão de Atos da UFRGS, com entrada franca. Mais detalhes aqui.