Voos Literários

Conceição Evaristo ganhou um prêmio literário. E isso é simplesmente maravilhoso

Flávia Cunha
3 de abril de 2018

Recentemente, a escritora mineira Conceição Evaristo foi eleita na categoria Destaque do prêmio Bravo de literatura. Porque o fato chama a atenção? Além da qualidade indiscutível do seu trabalho na área literária, ela é militante do movimento negro e a gente sabe que se já é difícil para mulheres em geral terem o respeito no meio literário, imagine ainda ter de enfrentar o racismo estrutural existente no Brasil. No discurso durante a premiação, Conceição Evaristo destacou que aquele prêmio era importante não apenas para ela, mas para todas as mulheres, especialmente as negras.

Nascida em uma favela em Belo Horizonte, conciliou os estudos com o trabalho de empregada doméstica. Depois, se mudou para o Rio de Janeiro, onde se formou em Letras, com mestrado e doutorado na área de Literatura. Na década de 1990, teve suas primeiras obras publicadas.

Para homenagear essa baita escritora, escolhi um texto em que ela faz referência a outras duas autoras: Clarice Lispector e Carolina Maria de Jesus, que escreveu o livro Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada.

Clarice no quarto de despejo

No meio do dia

Clarice entreabre o quarto de despejo

pela fresta percebe uma mulher.

Onde estiveste à noite, Carolina?

Macabeando minhas agonias, Clarice.

Um amargor pra além da fome e do frio,

Da bica e da boca em sua secura.

De mim, escrevo não só a penúria do pão,

cravo no lixo da vida, o desespero,

uma gastura de não caber no peito,

e nem no papel.

Mas, ninguém me lê, Clarice,

Para além do resto.

Ninguém decifra em mim

a única escassez da qual não padeço,

– a solidão –

 

E ajustando o seu par de luvas claríssimas

Clarice futuca um imaginário lixo

e pensa para Carolina:

– a casa poderia ser ao menos de alvenaria –

E anseia ser Bitita inventando um diário:

páginas de jejum e de saciedade sobejam,

a fome nem em pedaços

alimenta a escrita clariciana.

 

Clarice no quarto de despejo

lê a outra, lê Carolina,

a que na cópia das palavras,

faz de si a própria inventiva.

Clarice lê :

– despejo e desejos

Conceição Evaristo também será homenageada em Porto Alegre, durante a FestiPoa Literária. O objetivo é chamar a atenção para a produção literária das mulheres, em especial das mulheres negras. A abertura vai ser dia 2 de maio, no Salão de Atos da UFRGS, com entrada franca. Mais detalhes aqui.

 

Voos Literários

Raduan Nassar e o prêmio literário que virou manchete

Flávia Cunha
21 de fevereiro de 2017

Mesmo quem não gosta especialmente de literatura, deve ter ficado sabendo sobre a polêmica envolvendo a cerimônia de entrega do Prêmio Camões a Raduan Nassar. Muito já foi noticiado sobre o discurso do escritor, que transformou-se em uma manifestação política contra o governo de Michel Temer e a reação do ministro da Cultura, Roberto Freire, que criticou Nassar e acabou batendo boca com a plateia.

Não é de espantar que Raduan Nassar tenha se posicionado politicamente durante a cerimônia de entrega do prêmio literário, já que na época do impeachment ele manifestou-se publicamente e por diversas vezes contra a saída de Dilma Rousseff da presidência da República. O que é lamentável no episódio é que a literatura, que deveria ser a protagonista do evento, tornou-se mera coadjuvante.

“Os internautas contrários à atitude do escritor dispararam críticas a seus livros, sem nem saberem direito quem era aquele senhor”

As redes sociais, como costuma acontecer nesse tipo de episódio, transformou-se em uma grande arena de batalha entre coxinhas e mortadelas, petralhas e golpistas, ou como vocês aí que me lêem preferirem chamar os antagonistas do atual panorama político brasileiro. Os internautas contrários à atitude do escritor dispararam críticas a seus livros, sem nem saberem direito quem era aquele senhor de 82 anos agraciado com um dos maiores prêmios literários concedidos a escritores da Língua Portuguesa.

Então, vou colocar alguns pingos nos “is” que julgo necessários.

Quem é Raduan Nassar

Raduan Nassar é considerado (ao menos por grande parte dos especialistas em literatura) um dos maiores escritores brasileiros vivos. Sua obra não é extensa, é formada basicamente pelo romance Lavoura Arcaica, pela novela Um Copo de Cólera e pelo livro de contos Menina a Caminho. Desses três, eu li Lavoura Arcaica e realmente não me chamou a atenção, pura questão de gosto. Porém, ao pesquisar a respeito da obra, soube que é premiadíssima, tendo ganho o prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, entre outras distinções.

Para concluir a polêmica da escolha de Raduan Nassar com o Prêmio Camões, cabe destacar: a escolha foi feita ainda durante o governo Dilma, em maio de 2016. Dizem que a entrega foi adiada ao máximo pelo governo atual, porém não passam de especulações. É bom destacar que o prêmio foi criado em 1988 pelos governos de Brasil e Portugal e já foi concedido a grandes nomes da literatura: José Saramago, Jorge Amado, Mia Couto, Lygia Fagundes Telles etc. Nesses muitos anos de premiações para quem escreve em língua portuguesa, a reclamação é de que poucos autores africanos foram contemplados. Mas isso é discussão para outro texto do Voos Literários: a pouca visibilidade no Brasil e em Portugal da produção literária dos países africanos de língua portuguesa. Essa polêmica acho difícil vocês assistirem no Jornal Nacional.

Para ir além

  • Trailer oficial de Um Copo de Coléra, filme baseado no livro de Nassar

  • Trailer oficial de Lavoura Arcaica, outra adaptação cinematográfica da obra de Nassar