Voos Literários

O Brasil é Macondo, fora do tempo e sem memória?

Flávia Cunha
28 de maio de 2019

O Brasil muitas vezes me parece imerso no realismo mágico, um movimento literário que tem como principal característica a alternância entre a lucidez e a loucura. Há meses penso se comparar o monumental Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, com o atual momento político brasileiro não seria um desrespeito à memória e ao legado do genial escritor colombiano.

Porém, ao começar a pesquisa para escrever esse texto, deparei com diversas análises de especialistas em literatura que consideram o enredo Cem Anos de Solidão uma grande alegoria à história da América Latina. A repetição e a circularidade temporal seriam então metáforas para a realidade latinoamericana. Mais tranquila, prossegui na escrita dessa coluna.

Para quem ainda não leu esse clássico, a obra mostra a trajetória de sete gerações dos Buendía, com repetições de nome tão frequentes que é preciso estar atento para não se atrapalhar na leitura.  Na comparação que me permitirei fazer aqui sobre a obra de García Márquez e o Brasil, vou ressaltar uma característica dos Buendía: o vício de construir para destruir.

Aureliano Segundo foi um dos que mais fizeram para não se deixar vencer pela ociosidade. […] Para não se chatear, entregou-se à tarefa de consertar as numerosas imperfeições da casa. Apertou dobradiças, lubrificou fechaduras, parafusou aldrabas e nivelou ferrolhos. […] Vendo-o colocar os trincos e desmontar os relógios, Fernanda se perguntou se não estaria também caindo no vício de fazer para desfazer, como o Coronel Aureliano Buendía com os peixinhos de ouro, Amaranta com os botões e a mortalha, José Arcadio Segundo com os pergaminhos e Úrsula com as lembranças.”

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Assim como os Buendia, os políticos brasileiros parecem ter o vício de construir, para destruir e para construir novamente em seguida. Vamos tomar como exemplo as reforma trabalhista e previdenciária

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Alguém duvida que daqui a um tempo surja algum novo governante sugerindo recriar o que hoje está sendo eliminado? E talvez esse político do futuro seja visto como um visionário, alguém que finalmente pensou no futuro dos trabalhadores.

Falando em direitos trabalhistas, um episódio da história real colombiana que foi inserido no enredo é o Massacre das Bananeiras, ocorrido em 1928, quando um número desconhecido de trabalhadores foi morto pela polícia. O motivo, a participação em uma grande greve de funcionários de uma multinacional norte-americana, a United Fruits. Os grevistas foram considerados subversivos e comunistas e, por isso, foram assassinados.

Na versão ficcional, o massacre é esquecido pelos sobreviventes do povoado de Macondo:

A versão oficial, mil vezes repetida e repisada em todo o país por quanto meio de divulgação o Governo encontrou ao seu alcance, terminou por se impor: não houve mortos, os trabalhadores satisfeitos tinham voltado para o seio das suas famílias, e a companhia bananeira suspendia as suas atividades até passar a chuva. A lei marcial. continuava, prevendo que fosse necessário aplicar medidas de emergência para a calamidade pública do aguaceiro interminável, mas a tropa estava aquartelada. Durante o dia, os militares andavam pelas torrentes das ruas, com as calças enroladas na metade da perna, brincando de naufrágio com as crianças. De noite, depois do toque de recolher, derrubavam as portas a coronhadas, arrancavam os suspeitos das camas e os levavam para uma viagem sem regresso. Era ainda a busca e o extermínio dos malfeitores, assassinos, incendiários e revoltosos do Decreto Número Quatro, mas os militares o negavam aos próprios parentes das suas vítimas, que atulhavam os escritórios dos comandantes em busca de notícias. ‘Claro que foi um sonho’, insistiam os oficiais. ‘Em Macondo não aconteceu nada, nem está acontecendo nem acontecerá nunca. É um povoado feliz.’ Assim consumaram o extermínio dos líderes sindicais.”

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Assim como na Macondo de García Márquez, o Brasil atual insiste em ignorar fatos históricos e tentar reescrever a História brasileira.

Não houve ditadura. Não houve tortura. Não houve censura. (Só pra quem mereceu…). Quantas gerações de Buendia brasileiros serão necessárias até o Brasil acordar desse realismo mágico, entre a lucidez e a loucura?

Imagem: Reprodução do quadro A Persistência da Memória, de Salvador Dali

Voos Literários

No Dia dos Namorados, o amor na visão de grandes escritores

Flávia Cunha
12 de junho de 2018

Tenho uma certa implicância com o aspecto comercial do Dia dos Namorados, mas é bonito de ver o amor ser exaltado mais do que o ódio nas redes sociais, pelo menos uma vez no ano.  Em homenagem à data, selecionei alguns trechos de grandes escritores falando sobre esse sentimento poderoso, incontrolável e, por vezes, incoerente.

Para começo de conversa, um pouco de Caio Fernando Abreu aos que vislumbram os primeiros sintomas do amor (e da paixão):

“Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.

Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro.”

Em Pequenas Epifanias

Indico Clarice Lispector para os que amam e, por algum motivo, sofrem por esse amor:

“Mas há a espera. A espera é sentir-me voraz em relação ao futuro. Um dia disseste que me amavas. Finjo acreditar e vivo, de ontem pra hoje, em amor alegre. Mas lembrar-se com saudade é como se despedir de novo”.

Em Água viva

Aconselho aos portadores perpétuos de paixões desmedidas, ler Gabriel García Márquez sem moderação:

“Ele ainda era demasiado jovem para saber que a memória do coração elimina as coisas más e amplia as coisas boas, e que graças a esse artifício conseguimos suportar o peso do passado.”

Em O amor nos tempos do cólera

Esse poema de Mario Quintana é fundamental aos que temem ser exaustivos na expressão de seus sentimentos:

Fere de leve a frase… E esquece… Nada

Convém que se repita…

Só em linguagem amorosa agrada

A mesma coisa cem mil vezes dita.”

Em Espelho Mágico

E, por fim, recomendo Shakespeare aos céticos à entrega amorosa genuína:

É um amor pobre aquele que se pode medir.”

Em Antônio e Cleópatra

 

 

Voos Literários

Os livros da vergonha (Ou parem de julgar a leitura alheia)

Flávia Cunha
11 de abril de 2017

Cinquenta Tons de Cinza. Sabrina. Júlia. Bianca. Percy Jackson. Chick Lit em geral, termo criado para denominar livros “mulherzinha”: O Diabo Veste Prada, O Diário de Bridget Jones e afins. Best-sellers à la Dan Brown e seus Códigos da Vinci da vida. Atire a primeira pedra quem nunca leu um livro de enredo raso, com conteúdo zero, por puro entretenimento.

Tem quem esconda. Tem que nem se dê conta da possibilidade de críticas por essas escolhas. E tem a pior espécie, na minha opinião: quem se incomoda com a leitura alheia. Seres que se julgam no direito de palpitar nos livros que os outros escolhem para suas horas de lazer. Me parecem estar na mesma categoria dos críticos do pensamento político alheio sem pedido de opinião, nos que querem interferir na orientação sexual de quem mal conhecem ou que desejam incutir sua fé religiosa nas pessoas goela abaixo.

Para ilustrar esse comportamento inadequado, vou contar uma história real que aconteceu comigo durante um encontro de amigos. Ao receber elogios por gostar de ler, sou interceptada pelo comentário de uma outra amiga: “Garanto que eu leio mais do que a Flávia.” Minha resposta inicial foi só dar risada, achando que era uma piada. Mas não era. Passei por um questionário sobre meus hábitos de leitura. Número de livros lido por ano e quais obras eram. Quando eu respondi que estava numa onda de ler romances policiais (como eu já expliquei aqui nesse post), a reação da minha interlocutora foi um ar de desprezo e a tentativa de dizer o quanto seu gosto literário era mais elevado. Eu, ainda surpreendida pela cena, apenas elogiei sua inteligência, disse que jamais encararia a literatura como uma competição e encerrei o assunto.

Claro que eu podia ter sido arrogante também, lembrando a essa amiga que a mestre em Literatura era eu, enquanto ela ainda não havia nem sido selecionada em uma pós-graduação. Que já havia lido quase todos os livros escritos por José Saramago e Gabriel García Márquez, por exemplo. Que havia estudado academicamente Decameron, Dom Quixote e outros clássicos literários. Que tive o privilégio de pesquisar detalhes sobre a obra de Caio Fernando Abreu para a minha dissertação, indo muito além do que é exposto sobre o escritor nas redes sociais.

Porém, preferi calar e evitar conflitos. Afinal, a vida online já é recheada de agressões e julgamentos. No modo offline, o melhor é não bater boca. E, como eu escrevi nesse texto, não acho que os clássicos sejam o único caminho para aumentar o número de leitores no Brasil. E como um ser humano que realmente não se leva muito a sério, não me sinto intimidada pelo julgamento alheio. Seja na literatura ou na vida…