Voos Literários

Dia dos Namorados: prova de amor ou consumismo?

Flávia Cunha
12 de junho de 2021

O Dia dos Namorados como data comercial é uma criação publicitária de grande sucesso, desde 1949. Naquele ano, o pai do governador de São Paulo, João Dória, foi o responsável pelo lançamento de uma campanha para aumentar as vendas em junho. Então, produziu o slogan  “Não é só com beijos que se prova o amor”. Pelo jeito, era um publicitário que entendia mesmo de estratégias de consumo, já que até hoje, em pleno 2021 da pandemia, a comemoração segue firme e forte.

Agora, sejamos justos. Não há nada de errado em termos um dia especial para celebrar todas as formas de amar. Particularmente, acho louvável quando as marcas fazem campanhas que buscam combater preconceitos, mostrando, por exemplo, casais LGBTs. negros  e interraciais.

Dia dos Namorados é um problema?

Porém, a lógica capitalista embutida por trás da celebração nem sempre é conscientemente percebida pelo público. Afinal, somos bombardeados, por todos os lados, com anúncios que visam incentivar o consumo acima de tudo. Além disso, às vezes a falta de um presente considerado adequado pode gerar brigas. Provavelmente, porque a publicidade massiva contribui para uma expectativa grande em relação à demonstração de amor. Ganhou um anel de brilhantes? Amor eterno. O parceiro não lembrou nem da data? Relacionamento falido.

Mentes consumistas

No entanto, a verdade é que relações amorosas são muito mais complexas do que uma mera troca de presentes. Por isso, é perverso vincular amor a consumo, mas esta é a essência da sociedade capitalista na qual vivemos.  Quem tiver interesse em buscar uma visão mais crítica sobre o assunto, sugiro a leitura da obra Mentes Consumistas, escrito pela psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva.  A autora destaca a dualidade entre ser e ter: 

“Na sociedade consumista, o modo ser de existir é desestimulado de todas as maneiras, pois ser não demanda consumo nem a obtenção de lucro. Uma pessoa satisfeita com sua aparência, com seu ofício, com seus afetos e seus valores éticos não necessita consumir (de forma abusiva e/ou compulsiva) cosméticos, cirurgias plásticas, […]  Numa sociedade como a nossa, aprendemos, desde muito cedo, a paixão pelo ter; a competitividade que faz do colega um inimigo em potencial; o egoísmo que leva ao querer ter de forma exclusivista; a não partilhar; a não se importar… Enfim, a ser quase nada, mas com uma “embalagem” de ser humano amável, equilibrado, sorridente e muito produtivo. Viver essa dualidade constante entre o ser e o ter, mesmo que de forma inconsciente, contraria o próprio código genético da espécie humana, pois, como seres sociais, somos totalmente dependentes das nossas relações interpessoais para nos desenvolvermos como indivíduos e como espécie.”
Partilhar momentos e afetos

Sendo assim, considero que o mais importante é celebrar o Dia dos Namorados (e todos os outros dias do ano) partilhando afeto e momentos especiais com a parceria de vida. Além disso, não é necessário ser especialista em finanças para dizer que, caso o orçamento doméstico esteja apertado, não há necessidade de endividar-se para impressionar ou agradar o cônjuge. No entanto, se tem um dinheiro disponível para isso, pense onde comprar. Optar pelo comércio local e por pequenos empreendedores é uma forma consciente de consumo, hoje e sempre. Além disso, se puder distribuir afeto para mais gente, existem diversas iniciativas ajudando a quem precisa nesse triste momento de crise econômica e sanitária no país.  Até porque,  como garante Ana Beatriz Barbosa Silva, a solidariedade é inerente aos seres humanos, basta nos desprendermos dos valores capitalistas (e consumistas):

“[…] a cultura do ter, dominante em nossa sociedade consumista, influencia de maneira intensa e persuasiva nossa inteligência para que sejamos capazes de “tapear” a nossa natureza solidária, a fim de nos tornarmos peças eficientes em manter o sistema econômico vigente em pleno funcionamento. Com nossa inteligência “entorpecida”, vamos quase que roboticamente nos tornando consumidores contumazes, insaciáveis e com sentimento constante de ansiedade e insatisfação.”

Para quem busca opções de consumo consciente e com viés antifascista ainda para o Dia dos Namorados e em outras datas, uma boa sugestão é a página Esquerda Compra da Esquerda. Surgido em 2020, o grupo privado de vendas no Facebook já conta com mais de 164 mil membros. 

Imagem: Wichai Bopatay/Pixabay

Voos Literários

A atualidade de Fragmentos de Um Discurso Amoroso

Flávia Cunha
12 de junho de 2019
  • Amar em tempos de ódio é revolucionário. Mas o que é mais comum, nessa era de relações descartáveis, é o medo de expor sentimentos. 

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Enviar “nudes” é cool, desnudar emoções é brega  

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Mas essa dificuldade de expressar está longe de ser um sintoma da pós-modernidade. Em 1977, no livro Fragmentos de Um Discurso Amoroso, o crítico literário e filósofo Roland Barthes, escrevia o seguinte prefácio:

A necessidade deste livro funda-se na consideração seguinte: o discurso amoroso é hoje de uma extrema solidão. Tal discurso talvez seja falado por milhares de sujeitos (quem pode saber?), mas não é sustentado por ninguém; é completamente relegado pelas linguagens existentes, ou ignorado, ou depreciado ou zombado por elas, cortado não apenas do poder, mas também de seus mecanismos (ciência, saberes, artes). Quando um discurso é assim lançado por sua própria força na deriva do inatual, deportado para fora de toda gregariedade, nada mais lhe resta além de ser o lugar, por exíguo que seja, de uma afirmação.”

O livro, uma espécie de enciclopédia da linguagem amorosa, traz separadas por verbetes as situações típicas da vida de qualquer apaixonado. Os clichês amorosos são seguidos por citações de clássicos literários e análises do próprio autor. Escolhi para analisar aqui o verbete A Carta de Amor, apesar do desuso da troca de correspondências entre apaixonados. Porém é só substituir “carta” por  “e-mail” ou mensagem em aplicativos como “whatsapp” e o resultado será o mesmo. Em um texto amoroso, o que precisamos é de aceitação e acolhimento, independente do suporte escolhido para levar a mensagem.

Optei por fazer um recorte do capítulo, um fragmento do fragmento, bem ao estilo do século 21. Barthes me perdoaria (espero).

CARTA. A figura visa a dialética particular da carta de amor, ao mesmo tempo vazia (codificada) e expressiva (cheia de vontade de significar o desejo). […]

  1. Como desejo, a carta de amor espera sua resposta ; ela impõe implicitamente ao outro de responder, sem o que a imagem dele se altera, se toma outra. É o que explica com autoridade o jovem Freud à sua noiva: “Não quero porém que minhas cartas fiquem sempre sem resposta, e não te escreverei mais se você não me responder. Eternos monólogos sobre um ser amado, que não são nem ratificados nem alimentados pelo ser amado, acabam em ideias falsas sobre as relações mútuas, e nos tomarão estranhos um ao outro quando nos encontrarmos novamente, e acharmos então as coisas diferentes do que, por não termos nos certificado delas, se imaginava.”

A coluna Voos Literários deseja a seus leitores que o Dia dos Namorados, mesmo sendo uma data comercial, sirva de incentivo para expressar o amor de todas as formas. Não apenas na linguagem, tão importante nesse momento em que a interpretação de texto é uma habilidade de poucos, mas também em atos concretos. E se o amor for daqueles que extravasam o coração, quem sabe a data também não seja um incentivo para expressar o afeto para além das nossas bolhas familiares e de afeto.

Há sempre tempo de deixar um livro de presente para um desconhecido em um lugar público ou doar uma roupa quentinha para alguém que passa frio nas ruas enquanto sofremos por não ter uma resposta “daquela” pessoa no whatsapp.

Imagem: Reprodução/Internet

Geórgia Santos

Dia de amor em tempos de cólera

Geórgia Santos
12 de junho de 2018

As caixas de comentários de portais de notícias quaisquer fazem parecer que estamos presos em um romance de realismo fantástico. Exceto a parte do amor e com cólera a sobrar. E definitivamente sem a poesia de García Márquez. Em Baioque, Chico Buarque canta que odeia e adora numa mesma oração. Nós também, eu acho. O problema é que entre a possiblidade de expressão de ira e a devoção, ficamos com a primeira. E abraçamos e acariciamos e protegemos e resguardamos o direito de expressar esse ódio como se nossa alma se alimentasse disso, dependesse disso. Sem que percebamos, as redes sociais tornam-se receptáculos de toda a sorte de fel, sem destinatário e destinado a todos.

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Mas tem um dia em que o amor parece suplantar  o ódio na internet

Hoje

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Tudo indica que os tempos de cólera descansam e o Dueto transforma em amor e paz. Sim, é uma data instituída por um publicitário que queria aquecer o mercado no mês de junho. Azar. Colou. E se há quem se renda ao consumismo, há quem celebre o amor. Aquele amor que consta nos autos, signos e búzios. Aquele amor que está num anúncio, num cartaz ou no espelho. Aquele amor abençoado pelo evangelho e protegido pelos orixás. Aquele amor dos autos, teses, tratados e dados oficiais. Aquele amor de bulas e dogmas. Aquele amor de karma, carne, lábios e novela. Aquele amor que acredita em ciganas, profetas e conselhos. Aquele amor que desafia projetos, mapas e a ciência. Amor seguro, pichado no muro.

Não sei se sei falar de amor, mas Chico Buarque me ajuda. E nessa ajuda ele atualizou o Dueto e, com alento, garante que amor e paz também estão no Google, no Twitter, no WhatsApp, Instagram, Snapchat. No Face. E se o destino insistir em provar o contrário, danem-se minhas palavras e as dele. Hoje é dia de amor e paz.

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Voos Literários

No Dia dos Namorados, o amor na visão de grandes escritores

Flávia Cunha
12 de junho de 2018

Tenho uma certa implicância com o aspecto comercial do Dia dos Namorados, mas é bonito de ver o amor ser exaltado mais do que o ódio nas redes sociais, pelo menos uma vez no ano.  Em homenagem à data, selecionei alguns trechos de grandes escritores falando sobre esse sentimento poderoso, incontrolável e, por vezes, incoerente.

Para começo de conversa, um pouco de Caio Fernando Abreu aos que vislumbram os primeiros sintomas do amor (e da paixão):

“Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.

Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro.”

Em Pequenas Epifanias

Indico Clarice Lispector para os que amam e, por algum motivo, sofrem por esse amor:

“Mas há a espera. A espera é sentir-me voraz em relação ao futuro. Um dia disseste que me amavas. Finjo acreditar e vivo, de ontem pra hoje, em amor alegre. Mas lembrar-se com saudade é como se despedir de novo”.

Em Água viva

Aconselho aos portadores perpétuos de paixões desmedidas, ler Gabriel García Márquez sem moderação:

“Ele ainda era demasiado jovem para saber que a memória do coração elimina as coisas más e amplia as coisas boas, e que graças a esse artifício conseguimos suportar o peso do passado.”

Em O amor nos tempos do cólera

Esse poema de Mario Quintana é fundamental aos que temem ser exaustivos na expressão de seus sentimentos:

Fere de leve a frase… E esquece… Nada

Convém que se repita…

Só em linguagem amorosa agrada

A mesma coisa cem mil vezes dita.”

Em Espelho Mágico

E, por fim, recomendo Shakespeare aos céticos à entrega amorosa genuína:

É um amor pobre aquele que se pode medir.”

Em Antônio e Cleópatra