Voos Literários

A morte anunciada da Cultura e as cinzas do esquecimento

Flávia Cunha
4 de setembro de 2018

A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento.”
Milan Kundera

O incêndio no Museu Nacional do Rio de Janeiro parece escancarar o que há de pior na atualidade do país.

A falta de investimento na área cultural, que foi sendo reduzida gradualmente mas que sofreu uma queda mais drástica nos últimos anos. Alguém lembra que uma das primeiras medidas do governo Temer pós-impeachment foi tentar acabar com o Ministério da Cultura?

As redes sociais ensandecidas. Cheguei a ver pessoas defendendo, seriamente, que o fogo havia sido provocado pela esquerda, que quer acabar com a História do nosso Brasil varonil);

E o empurra-empurra das autoridades sobre quem tem responsabilidade sobre o fogo que atingiu um acervo irrecuperável, considerado o maior da área de história natural na América Latina. O Igor Natusch escreveu um texto contundente e necessário de análise do viés político do incêndio;

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Do ponto de vista cultural, não é de hoje todo o setor que sofre com o descaso das autoridades

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A Cultura e a Educação são vistos por grande parte dos políticos como um gasto, não um investimento. E são aplaudidos por uma parcela da população privilegiada economicamente, porém desprovida de visão a longo prazo de onde seremos levados por esses cortes nas duas áreas. Mas o que esperar de uma sociedade em que muitos “cidadãos de bem” acham que visita a museu só vale a pena quando estiverem na Europa? Que peça de teatro boa é apenas aquela com os atores da novela e não com os artistas de sua cidade? Que livros são itens muito caros no orçamento mensal, mas não dispensam trocar de Iphone a cada novo modelo que aparece? Prioridades, meus amigos. Prioridades.

A Cultura e a Educação são o Santiago Nasar, da Crônica de Uma Morte Anunciada, clássico do García Márquez. Todo mundo sabe que estão em risco, mas ninguém com poder se articula de verdade em prol de atitudes concretas pare reverter a situação. É bom lembrar que o incêndio do Museu Nacional não é um caso isolado. Nos últimos 10 anos, situações semelhantes ocorreram em 8 prédios do patrimônio histórico e cultural do país.

Voltando a Milan Kundera, que citei no início desse texto, encerro com mais uma frase que casa tristemente com esse episódio simbólico:

Para liquidar os povos, começa-se por lhes tirar a memória. Destroem-se seus livros, sua cultura, sua história. E uma outra pessoa lhes escreve outros livros, lhes dá outra cultura e lhes inventa uma outra História.”

Milan Kundera – O Livro do Riso e do Esquecimento

Imagem: Reprodução/TV Globo

Geórgia Santos

Dia de amor em tempos de cólera

Geórgia Santos
12 de junho de 2018

As caixas de comentários de portais de notícias quaisquer fazem parecer que estamos presos em um romance de realismo fantástico. Exceto a parte do amor e com cólera a sobrar. E definitivamente sem a poesia de García Márquez. Em Baioque, Chico Buarque canta que odeia e adora numa mesma oração. Nós também, eu acho. O problema é que entre a possiblidade de expressão de ira e a devoção, ficamos com a primeira. E abraçamos e acariciamos e protegemos e resguardamos o direito de expressar esse ódio como se nossa alma se alimentasse disso, dependesse disso. Sem que percebamos, as redes sociais tornam-se receptáculos de toda a sorte de fel, sem destinatário e destinado a todos.

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Mas tem um dia em que o amor parece suplantar  o ódio na internet

Hoje

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Tudo indica que os tempos de cólera descansam e o Dueto transforma em amor e paz. Sim, é uma data instituída por um publicitário que queria aquecer o mercado no mês de junho. Azar. Colou. E se há quem se renda ao consumismo, há quem celebre o amor. Aquele amor que consta nos autos, signos e búzios. Aquele amor que está num anúncio, num cartaz ou no espelho. Aquele amor abençoado pelo evangelho e protegido pelos orixás. Aquele amor dos autos, teses, tratados e dados oficiais. Aquele amor de bulas e dogmas. Aquele amor de karma, carne, lábios e novela. Aquele amor que acredita em ciganas, profetas e conselhos. Aquele amor que desafia projetos, mapas e a ciência. Amor seguro, pichado no muro.

Não sei se sei falar de amor, mas Chico Buarque me ajuda. E nessa ajuda ele atualizou o Dueto e, com alento, garante que amor e paz também estão no Google, no Twitter, no WhatsApp, Instagram, Snapchat. No Face. E se o destino insistir em provar o contrário, danem-se minhas palavras e as dele. Hoje é dia de amor e paz.

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Voos Literários

Existe consumismo em se tratando de literatura?

Flávia Cunha
14 de fevereiro de 2017

Primeiro, vamos deixar claro o conceito básico de consumismo: a compulsão para a compra de bens, mercadorias ou serviços considerados supérfluos. Ou seja, itens desnecessários. Como fervorosa defensora de livros, tenho dificuldade em aceitar que esses possam ser considerados de alguma forma dispensáveis. Porém, vamos encarar a realidade: conheço muita gente boa que adquire livros mesmo sabendo que não terá tempo para lê-los. Existe outro tipo de pessoa que vai às compras literárias porque quer ter diversos exemplares vistosos nas prateleiras de casa, com o objetivo de parecer culto e nem tem a intenção de ler aquelas obras.

Em comum nas duas categorias acima, está o dinheiro extra na conta bancária. Livros podem mesmo ser um símbolo de status e prestígio. Já li reportagens sobre sebos especializados na venda de obras por metro para decoradores contratados por clientes interessados em dar pinta de intelectual. A vontade de parecer um admirador de literatura chega mesmo ao extremo do uso de livros cenográficos.

“Muito se discute sobre as obras literárias serem caras demais no Brasil, mas e se formos comparar com o preço dos ingressos de cinema em shoppings?”

No outro extremo, está a grande parcela dos apaixonados por livros. Muita vontade de ter uma biblioteca particular imensa e pouca grana no bolso. Muito se discute sobre as obras literárias serem caras demais no Brasil, mas se formos comparar com o preço dos ingressos de cinema em shoppings, de itens de vestuário e de show internacionais, por exemplo, os livros estão longe de serem inacessíveis, ao menos para a classe média.

Se a crise realmente bateu à sua porta, ainda assim isso não é desculpa para não ler. Existem sebos, inclusive virtuais, com livros vendidos a preços variados, basta pesquisar. Existem, ainda, sites com obras disponibilizadas online para download (alguns são perseguidos pela Polícia Federal por causa dos direitos autorais dos livros oferecidos de graça, mas isso é papo para outro texto).

E as bibliotecas?

O paraíso dos leitores sem dinheiro no bolso. Em Porto Alegre, recomendo a do Centro Municipal de Cultura. Sou frequentadora desde adolescente e tem muita coisa boa por lá. Foi lá que li grande parte da obra de Erico Verissimo, descobri quase todos os livros escritos por García Márquez e tive acesso ao maravilhoso Travessuras da Meniná Má, de Mario Vargas Llosa. Também foi graças a esse templo da cultura que li praticamente todos os livros do Caio Fernando Abreu (e depois fui comprando devagarinho para ter em casa). Outra preciosidade garimpada entre as prateleiras da biblioteca Josué Guimarães está Scar Tissue, autobiografia do Anthony Kiedis, vocalista do Red Hot Chili Peppers. Como vocês podem ver, um acervo variado e que vale mesmo a pena conferir.

Para ir além: