Voos Literários

A culpa é do capitalismo

Flávia Cunha
18 de dezembro de 2023
Imagem: Marcello Casal / Agência Brasil

A culpa é do capitalismo a gente ficar exausto de tanto trabalhar e, ainda assim, faltar dinheiro para sobreviver. A culpa é do capitalismo aceitar condições precárias de trabalho, chefes abusivos e baixos salários.

Por outro lado, a culpa também é do capitalismo quando a gente resolve virar empreendedor para deixar de ter chefe e… fica exausto de tanto trabalhar, sem o suficiente para sobreviver, aceitando condições precárias de trabalho. No lugar de chefes, surgem clientes querendo ditar regras e impor suas vontades, como se fossem donos das nossas decisões e de todo o nosso tempo. 

Os dilemas mencionados são puro suco de capitalismo apesar de, muitas vezes, não serem perceptíveis como algo coletivo. Afinal, o objetivo é justamente esse: fazer com que nossas angústias financeiras e profissionais pareçam individuais, fruto da nossa própria incompetência na gestão da vida.

Maldito capitalismo

Há alguns meses, comentei com uma amiga sobre a dificuldade de ter tempo livre para determinada atividade e disparei: – Maldito capitalismo! Para minha surpresa, ela perguntou o que o sistema econômico onde estamos compulsoriamente inseridos tinha a ver com a questão mencionada. Na hora, confesso ter ficado com preguiça de explicar algo que parece tão explícito para mim – a ponto de ter virado bordão com algumas pessoas próximas.

Afinal, o capitalismo está por tudo. Nas relações profissionais. No excesso de trabalho ou no desespero pela falta de um emprego. No esfacelamento dos direitos trabalhistas, que levam à terceirização, informalidade e precarização em geral. 

No cenário brasileiro, o capitalismo (maldito!!) também está presente quando o empresário espertinho resolve não ter mais funcionários e sugere que todos da equipe se tornem microempreendedores individuais. Porém, com horário específico a cumprir e indo presencialmente trabalhar. E o MEI, que deveria ter autonomia, acaba – por falta de alternativa – muitas vezes se submetendo a ser empregado, sem benefícios como férias e décimo-terceiro salário. 

Mas quem é o responsável por essa situação? O trabalhador que aceitou ou o empresário que teve essa ideia “brilhante”? Nada disso, amiguinhos:  a culpa é do capitalismo!

Capitalismo cognitivo

Trabalho por conta própria desde 2018 na área cultural e de comunicação. E me tornei uma das piores chefes que tive, me cobrando produtividade, insights sensacionais diários e sem me conceder a margem saudável para erros de percurso. Em caso de falhas nas medidas (auto) impostas, sinto que sou uma fraude, um fracasso, uma perdedora.

Ao trocar o emprego com carteira assinada pelo empreendedorismo me tornei uma vítima do capitalismo de uma forma muito mais sutil. Ele está dentro de mim. 

Me dei conta disso ao assistir a um vídeo do professor de filosofia Renato Judz com uma crítica ao capitalismo cognitivo, que nos introjeta o desejo de querermos ser produtivos 24 horas, ao não nos considerarmos dignos de descanso. 

Consumismo afetivo?

Além do capitalismo cognitivo, outro motor fundamental do sistema econômico vigente é o consumismo, que leva as próprias relações a serem utilitárias. Nesse sentido, considero bastante subversivo o cultivo de amizades. Já que, por essência, relacionamentos fraternos genuínos vão na contramão do capitalismo, ao romper com a lógica de associação direta ao consumo. Casais, famílias e namorados têm gastos em comum. Amigos, em geral, têm outra dinâmica nas interações.

Não é à toa que, há alguns anos, o comércio criou o Dia do Amigo, uma forma de monetizar esse tipo de afetividade. Na época de final de ano em que estamos agora, é quase obrigatório em empresas a troca de presentes com a tradição do amigo secreto (ou oculto). Mais uma vez, é o capitalismo se impondo nas relações do dia a dia. 

Consumo do bem

Para dar algum sentido ao consumismo compulsório natalino, sugiro presentear quem a gente ama com livros que possam provocar reflexões. E, assim, tirar as pessoas do torpor provocado pelo excesso de trabalho, por exemplo. 

Dicas de leitura

Como considero que os laços fraternos podem ser revolucionários, escolhi a temática amizade para as sugestões de leitura abaixo.

Gênero: infantojuvenil

“Um amigo para sempre” – Sinopse: Uma das obras-primas de Marina Colasanti, que estreou na literatura com uma linguagem poética e simbólica, num momento em que predominava a crítica social e política por mio da paródia dos contos de fada. Aqui, não se trata de um conto de encantamento, mas o encantamento – ou transcendência – está presente pelo modo de narrar um episódio da vida do escritor angolano Luandino Vieira: na prisão, em Cabo Verde, pacientemente, ele conquista a confiança e amizade de um pássaro.

Gênero: poesia lírica

“Platero e Eu” – Sinopse: Magnífico poema em prosa, em que Juan Ramón Jiménez (Prémio Nobel de Literatura, em 1956) descreve o ambiente e a vida da gente simples da sua pequena aldeia andaluza, e também a afeição que o une ao burrito Platero, que umas vezes lhe serve de confidente, e outras é o verdadeiro sujeito da ação. 

(Indicação de editor do site Literatura RS Vitor Diel)

Gênero: romance 

“A Amiga Genial” – Sinopse: A Série Napolitana, formada por quatro romances, conta a história de duas amigas ao longo de suas vidas. O primeiro, A amiga genial, é narrado por Elena Greco e cobre da infância aos 16 anos. As meninas se conhecem em uma vizinhança pobre de Nápoles, na década de 1950. Elena, a menina mais inteligente da turma, tem sua vida transformada quando a família do sapateiro Cerullo chega ao bairro e Raffaella, uma criança magra, mal comportada e selvagem, se torna o centro das atenções. Essa menina, tão diferente de Elena, exerce uma atração irresistível sobre ela. As duas se unem, competem, brigam, fazem planos. 

(Indicação da jornalista Tatiane de Sousa)

PS: A ideia desta publicação surgiu a partir da minha escassez de tempo para me dedicar a textos nesta coluna em 2023. O motivo, vocês já podem imaginar. Maldito capitalismo! 

Voos Literários

Existe consumismo em se tratando de literatura?

Flávia Cunha
14 de fevereiro de 2017

Primeiro, vamos deixar claro o conceito básico de consumismo: a compulsão para a compra de bens, mercadorias ou serviços considerados supérfluos. Ou seja, itens desnecessários. Como fervorosa defensora de livros, tenho dificuldade em aceitar que esses possam ser considerados de alguma forma dispensáveis. Porém, vamos encarar a realidade: conheço muita gente boa que adquire livros mesmo sabendo que não terá tempo para lê-los. Existe outro tipo de pessoa que vai às compras literárias porque quer ter diversos exemplares vistosos nas prateleiras de casa, com o objetivo de parecer culto e nem tem a intenção de ler aquelas obras.

Em comum nas duas categorias acima, está o dinheiro extra na conta bancária. Livros podem mesmo ser um símbolo de status e prestígio. Já li reportagens sobre sebos especializados na venda de obras por metro para decoradores contratados por clientes interessados em dar pinta de intelectual. A vontade de parecer um admirador de literatura chega mesmo ao extremo do uso de livros cenográficos.

“Muito se discute sobre as obras literárias serem caras demais no Brasil, mas e se formos comparar com o preço dos ingressos de cinema em shoppings?”

No outro extremo, está a grande parcela dos apaixonados por livros. Muita vontade de ter uma biblioteca particular imensa e pouca grana no bolso. Muito se discute sobre as obras literárias serem caras demais no Brasil, mas se formos comparar com o preço dos ingressos de cinema em shoppings, de itens de vestuário e de show internacionais, por exemplo, os livros estão longe de serem inacessíveis, ao menos para a classe média.

Se a crise realmente bateu à sua porta, ainda assim isso não é desculpa para não ler. Existem sebos, inclusive virtuais, com livros vendidos a preços variados, basta pesquisar. Existem, ainda, sites com obras disponibilizadas online para download (alguns são perseguidos pela Polícia Federal por causa dos direitos autorais dos livros oferecidos de graça, mas isso é papo para outro texto).

E as bibliotecas?

O paraíso dos leitores sem dinheiro no bolso. Em Porto Alegre, recomendo a do Centro Municipal de Cultura. Sou frequentadora desde adolescente e tem muita coisa boa por lá. Foi lá que li grande parte da obra de Erico Verissimo, descobri quase todos os livros escritos por García Márquez e tive acesso ao maravilhoso Travessuras da Meniná Má, de Mario Vargas Llosa. Também foi graças a esse templo da cultura que li praticamente todos os livros do Caio Fernando Abreu (e depois fui comprando devagarinho para ter em casa). Outra preciosidade garimpada entre as prateleiras da biblioteca Josué Guimarães está Scar Tissue, autobiografia do Anthony Kiedis, vocalista do Red Hot Chili Peppers. Como vocês podem ver, um acervo variado e que vale mesmo a pena conferir.

Para ir além: