Samir Oliveira

O candidato anti-LGBT perdeu na Costa Rica, mas suas ideias cresceram

Samir Oliveira
5 de abril de 2018
Foto: Fabricio Alvarado | Arquivo Pessoal

A Costa Rica acaba de sair do segundo turno de suas eleições presidenciais com um resultado que, por um lado, representa um alívio a todos os defensores dos direitos humanos, mas por outro acende um sinal vermelho de alerta permanente.

O candidato reacionário e anti-LGBT Fabricio Alvarado foi derrotado, mas suas ideias ganharam peso.

No pleito do dia 1 de abril o cantor evangélico e apresentador de TV Fabricio Alvarado ficou com 39,2% dos votos, sendo derrotado pelo jornalista e escritor Carlos Alvarado, que obteve 60,8% de apoio popular. A virada surpreendeu o país, invertendo o resultado do primeiro turno e contrariando a previsão das pesquisas de opinião, que demonstravam um cenário extremamente polarizado.

A Costa Rica é reconhecida como a democracia mais sólida da América Central. Talvez seja mais conhecida ainda por ser um dos poucos países do mundo sem Forças Armadas. Mas estas eleições trouxeram à tona outra faceta do país: o conservadorismo brutal de sua sociedade em temas como sexualidade e direitos humanos.

Estas duas questões transformaram-se no eixo do debate eleitoral. Apenas um mês antes do primeiro turno, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) determinou que a Costa Rica legalizasse o casamento civil igualitário. A decisão posicionou o assunto no centro de todas as campanhas. Enquanto o governista Carlos Alvarado, de centro-esquerda, celebrou a sentença, o oposicionista de direita afirmou que um eventual governo seu não respeitaria o julgamento e ainda retiraria o país deste importante organismo multilateral.

Fabricio Alvarado mobilizou os piores sentimentos do país com sua candidatura. Sob o pretexto de defender uma suposta “família natural”, foi totalmente contrário a qualquer concessão de direitos à população LGBT. Garantiu que sua primeira medida no governo seria a revogação de um decreto que protege servidores federais e usuários dos serviços públicos contra a discriminação.

Os pronunciamentos do presidenciável da direita beiraram as raias do crime ao defender a chamada “cura gay”, uma invenção reacionária do fanatismo neopentecostal.

“Estou de acordo em que as pessoas que queiram sair da homossexualidade devam ter um espaço onde sejam atendidas e restauradas”, declarou. Isso mesmo, o termo exato que ele utilizou foi este: restauração.

Fabricio Alvarado é uma espécie de Marco Feliciano costarriquenho. Ele chegou a dizer que a homossexualidade é uma invenção do Diabo. E o pior é que muita gente foi seduzida por sua retórica preconceituosa. “Quando o inimigo (o Diabo) consegue confundir sexualmente uma pessoa e desviar sua identidade sexual, o que está fazendo é destruir sua identidade em Deus”, declarou.

Felizmente o jogo virou no segundo turno e Carlos Alvarado viu sua votação aumentar de 21,7% para 60,8%. O candidato do governista Partido Ação Cidadã (PAC) representa a continuidade de um projeto de centro-esquerda desgastado e envolvido em denúncias de corrupção. Não faço aqui uma defesa de sua plataforma, que não empolga e definitivamente não representa qualquer novidade. Mas é preciso dizer que sua vitória foi uma vitória contra a homofobia e o preconceito. A derrota de Fabricio Alvarado simbolizou um levante da Costa Rica contra o crescimento da intolerância, tanto é que o índice de eleitores que compareceram às urnas aumentou do primeiro para o segundo turno.

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Mas o alerta que faço no título não é em vão

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Apesar de ter sido derrotado, Fabricio Alvarado garantiu uma sólida base social no país. Entrou na eleição como o único deputado de um partido pequeno, o Partido da Restauração Nacional (PRN), e saiu do pleito como o líder da segunda maior bancada no Congresso, com 14 parlamentares -à frente inclusive da bancada governista, que elegeu 10 deputados.

A vitória da homofobia e do preconceito no primeiro turno acendeu o sinal de alerta e a sociedade costarriquenha soube reagir à altura. Mas o crescimento estrondoso do PRN demonstra que o fundamentalismo religioso está a poucos passos do poder. E eles não vão desistir, por isso nós devemos seguir resistindo.

Samir Oliveira

Não é qualquer crime, é crime de ódio – e ele só aumenta no Brasil

Samir Oliveira
25 de janeiro de 2018

Todos os anos o Grupo Gay da Bahia (GGB) monitora o assassinato de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais no Brasil. É o mais próximo que existe de uma estatística oficial, ainda assim é algo bastante precário e totalmente subnotificado, pois o levantamento se baseia em notícias nos meios de comunicação. Ainda assim, os dados são assustadores: 2017 registrou um aumento de 30% nos homicídios de LGBTs em relação a 2016. Foram 445 mortes no ano passado e 343 no ano retrasado.

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A cada 19 horas um LGBT é assassinado ou se suicida no Brasil. A impunidade é a regra nestes casos, pois menos de 10% das ocorrências geraram abertura de processo e punição dos assassinos

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Estes dados já são assombrosos por si só. Tão devastadora quanto a realidade é a reação das pessoas com ela. Contrariando todas as indicações de cuidado com minha saúde mental e meu bem estar emocional, eu perdi um tempo considerável lendo caixas de comentários de notícias e postagens que repercutiram o levantamento do Grupo Gay da Bahia. A constatação principal que faço me surpreendeu, talvez porque eu esteja acostumado ao conforto da minha própria bolha: a maioria das pessoas não sabe o que é um crime de ódio.

Ou não sabem, ou não querem mesmo entender. O que observei foi uma reação emocional de pessoas cisgêneras e heterossexuais baseada na sensação de insegurança que vivenciam todos os dias. Este sentimento deu voz a uma resposta bastante absurda diante das informações reveladas pelo GGB. Algo como: “Milhares de pessoas morrem todos os dias” ou “Não importa se é gay ou não, muita gente é assassinada e nem por isso tem a visibilidade que os gays tem”. As versões mais canalhas simplesmente questionam: “E os heterossexuais assassinados?”.

Há uma confusão, intencional ou não, a respeito do conceito de crime de ódio. Como se os dados trazidos pelo Grupo Gay da Bahia se referissem a qualquer pessoa LGBT morta no país, e não somente àquelas que foram vítimas de homofobia, transfobia ou bifobia. É evidente que a violência no Brasil chega a níveis dramáticos e atinge todo mundo. Mas pessoas heterossexuais não são assassinadas por serem heterossexuais. Não sofrem preconceito devido à sua orientação sexual. Assim como quem é cisgênero não é vítima de transfobia. As mortes destas pessoas ocorrem pelos mais diversos motivos, que não envolvem ódio contra sua orientação sexual ou identidade de gênero. Motivos estes que também vitimam a população LGBT, aliás: latrocínios, mortes relacionadas ao tráfico de drogas etc.

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Os assassinatos de LGBTs monitorados pelo GGB não demonstram crimes comuns, mas crimes de ódio – e eles só vêm aumentando no Brasil

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Sensibilizar-se em relação a esta realidade não vai retirar de ninguém o direito à segurança. É preciso reconhecer que alguns grupos estão vulneráveis a tipos de violência que não atingem a maioria da população. Isso não significa, como incrivelmente muita gente pensa, que será criada uma casta privilegiada de cidadãos LGBTs, com direitos extraordinários ou acesso à segurança pública em detrimento dos pobres heterossexuais e cisgêneros entregues à própria sorte.

O que se reivindica são políticas públicas para uma realidade concreta: o combate ao preconceito contra LGBTs. Não é algo abstrato. O preconceito mata cada vez mais, como demonstra o relatório do Grupo Gay da Bahia. O enfrentamento a ele não se faz apenas com medidas de segurança pública ou com a criminalização de condutas ofensivas, mas especialmente com um trabalho preventivo nas escolas. Por isso é tão importante que se fale em gênero e sexualidade nestes ambientes, consolidando uma cultura de acolhimento e compreensão sobre a diversidade entre crianças e adolescentes. Para que o aluno que chama o coleguinha de viado hoje não se torne o assassino de amanhã.

Samir Oliveira

Por que as críticas a Pabllo Vittar são tão duras?

Samir Oliveira
4 de janeiro de 2018
Foto: Mídia Ninja

É bem possível que nenhum artista contemporâneo seja tão criticado no Brasil como Pabllo Vittar. Suas apresentações são minuciosamente analisadas. Qualquer deslize vocal torna-se imperdoável. O prazer em desqualificar seu trabalho revela a compulsão obsessiva de seus haters. A caixa de comentários – sempre ela – em qualquer post sobre a artista nas redes sociais e em portais de notícia comprova o que estou dizendo.

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Estou há algum tempo tentando entender esse fenômeno. Não encontrei respostas definitivas, mas tenho algumas hipóteses.

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Primeiramente, busquei no próprio sucesso de Pabllo Vittar a explicação para as críticas. Afinal parece natural que qualquer artista com uma grande base de fãs tenha, também, uma grande base de haters. Mas isso não é totalmente verdade. Caetano Veloso, Chico Buarque, Paul McCartney… Tento pensar em outros artistas com projeção multitudinária e não me recordo de ver nenhum deles gerar uma forte carga negativa de comentários em publicações a seu respeito.

Descartada esta hipótese, passo a focar na técnica vocal de Pabllo Vittar. Não entendo absolutamente nada de música e canto, tecnicamente falando. É claro que consigo identificar quando alguém desafina, quando algo está errado ou um pouco estranho. Mas é só. E Pabllo nunca me soou desconfortável de ouvir. Qual grande artista nunca desafinou, nunca falhou ao tentar atingir determinada nota ou alcançar um tom? Surpreendentemente, todos os haters de Pabllo Vittar tornaram-se críticos musicais de uma hora para outra, especialistas na mais fina análise de técnicas vocais.

https://youtu.be/EmxPMJ7UZ88

O mais recente campo de batalha neste sentido foi provocado por Ed Motta. Com mais de 400 mil seguidores no Facebook e um público cativo, o cantor postou um vídeo de Pabllo interpretando o clássico I Have Nothing, da Whitney Houston, no programa Altas Horas. Ed Motta não economizou elogios: “Eu chorei de verdade vendo porque não imaginava essa musicalidade, timbre lindo nas notas graves e quando atingiu as notas altas foi com propriedade. Depois conferi pelo YouTube que faz tempo que o talento dela é verdadeiro e genuíno”.

O comentário de Ed Motta enfureceu seus fãs, que se viram realmente perplexos e incapazes de entender como o ídolo poderia gostar de Pabllo Vittar. Cumpriram a própria expectativa do cantor, que, mesmo sem conhecer profundamente o trabalho da drag queen, já havia percebido que ela é alvo de críticas desproporcionais: “Muita gente denominada/inventada pelo mercado como ‘artista’ com grandes vendagens, premiações simuladas, não tem um terço da capacidade vocal de Pablo Vittar. Pablo faz um sucesso imenso, mas tem um exército de ódio yang que se incomoda profundamente com o que isso representa na sociedade obediente e engessada”.

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Só me restou uma última hipótese: a do preconceito. Relutei em aceitá-la, de tão óbvia e simples que aparenta ser. Mas é a única explicação plausível

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Veja bem, não estou aqui dizendo que quem não gosta de Pabllo Vittar é preconceituoso e homofóbico. Estou dizendo que preconceituoso e homofóbico é quem se orgulha de não gostar de Pabllo Vittar. Quem gosta de odiar seu trabalho, quem se incomoda com sua projeção e sente uma necessidade incontrolável de demonstrar a todo mundo o quão desconfortável se sente com a existência da artista.

O pior é quando utilizam outros ícones da arte LGBT para camuflar o preconceito. Como se gostar de Renato Russo, Freddie Mercury e Cazuza isentasse qualquer um de ser homofóbico. É o velho e bom “não tenho nada contra, inclusive tenho amigos que são”.

Discussões a respeito da qualidade técnica e artística de produções e agentes culturais são sempre perigosas. Primeiro, porque são extremamente subjetivas. Segundo, porque podem facilmente cair na vala comum do elitismo, que se expressa em todas as ideologias. Enquanto os conservadores de direita opõem uma certa noção elevada de cultura ao que se costuma classificar inferiormente como “cultura popular”, uma esquerda mais ortodoxa não cansa de responsabilizar as superestruturas da indústria cultural pela massificação de produções com suposta baixa qualidade. Um debate deste tipo está condenado a terminar pior do que quando começou.

O que importa é que uma drag queen de fora do circuito Rio-São Paulo, de origem humilde e vinda dos grotões do Brasil, esteja atingindo projeção internacional em sua carreira. No país que mais mata LGBTs no mundo, não é pouca coisa.

Foto: Mídia Ninja

Samir Oliveira

Não em nosso nome!

Colaborador Vós
16 de novembro de 2017
Foto: Beto Barata/PR

O Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, traz consigo uma série de debates a respeito do racismo no Brasil. A população LGBT negra está entre a mais vulnerável em nossa comunidade. Para refletir sobre essas questões, convidei o jornalista e militante do coletivo Juntos, Fernando de Oliveira Lúcio, a escrever um texto para a coluna Igualmente. Fernando foi coordenador do Projeto Purpurina, em São Paulo, e foi homenageado, em 2016, pela Associação da Parada LGBT de São Paulo, por seu documentário “Princesas Impossíveis”, sobre as vidas de travestis e transexuais.

Samir Oliveira

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Por Fernando de Oliveira Lúcio

A Semana da Consciência Negra se aproxima em um momento bastante oportuno, com discussões acerca de raça e discriminação pautando os veículos midiáticos. Enquanto militante negro e gay, que reivindica a luta do povo trabalhador com a mesma intensidade do combate a todo tipo de preconceito, enxergo agora um momento de importante reflexão para a chamada “esquerda identitária”. Quais serão nossos rumos daqui para frente?

Há pouco mais de uma semana, a ministra dos Direitos Humanos Luislinda Valois vem inflamando ânimos com sua reivindicação por um salário maior que os atuais 33 mil reais. Em sua defesa, define-se como uma “escrava”, oprimida por uma sociedade racista e machista. Não contente com a controvérsia anterior, Luislinda voltou a se comparar ao povo desfavorecido há dois dias, quando declarou ser uma mulher “preta, pobre e periférica”.

São inegáveis os avanços no debate sobre opressão nas últimas décadas. Nossa sociedade já não tolera que âncoras jornalísticos desdenhem das “coisas de preto” sem uma reação negativa em massa, forçando a emissora a suspendê-lo. Tampouco aceitamos que se tente patologizar a homossexualidade ou restringir o direito da mulher ao aborto legal sem ampla mobilização.

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Em um cenário como este, resta uma questão essencial:

Quem está do nosso lado?

Quem merece nossa defesa?

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Luislinda é um personalidade admirável. Primeira juíza negra do país, teve papel importante na defesa da legislação antirracismo. Com muita luta, conquistou seu lugar no alto escalão da política nacional … e escolheu seu lado. Filiada ao PSDB, um dos maiores baluartes do neoliberalismo no país, a autoproclamada representante das classes desfavorecidas acha por bem usar um discurso de combate ao racismo para ampliar seus privilégios. E o faz no exato momento em que auxilia um governo golpista a retirar os parcos direitos conquistados pelos trabalhadores. Há que se lembrar a cor da pele da maioria dos afetados por essas políticas nefastas: negra.

O uso de comparações exdrúxulas, alimentadas por motivações pessoais ou interesses políticos, não é um fenômeno novo. Em 2016, ao sofrer uma condução coercitiva ilegal, o ex-presidente Lula e vários de seus apoiadores apressaram-se a comparar seu mártir ao povo negro vitimado pela arbitrariedade pessoal. Lula, sem dúvida provindo da classe trabalhadora, hoje responde a processo judicial em liberdade, assessorado por advogados pagos a peso de ouro. É necessário apontar as irregularidades no processo a ele dirigido, porém qual o cabimento de compará-lo aos moradores das favelas, as mesmas favelas “pacificadas” em 2010 por ordem dele, a fim de abrir espaço para a realização da Copa do Mundo? E, sobretudo, qual a cor da pele da maioria dos afetados por essa política de segurança truculenta? Negra.

Mundo afora, a política encontra-se em um processo de reorganização. Mulheres, LGBTs, negros colhem os frutos de décadas de luta e vêem suas pautas debatidas e apoiadas por amplos setores da sociedade, talvez como nunca antes na história da Civilização Ocidental. Ao mesmo tempo, o descontentamento com o neoliberalismo, abraçado inclusive por grande parte dos antigos lutadores sociais, tem criado forte descontentamento entre aqueles que vêm sendo deixados para trás. Quem, como eu, acredita em outro modelo de sociedade, em que todos tenham seus direitos sociais e políticos reconhecidos, em que ninguém seja discriminado em função de raça, gênero ou sexualidade, não deve titubear ao tomar sempre o lado do povo trabalhador.

Defender representantes do neoliberalismo, cúmplices da exploração sofrida pela maioria dos negros, LGBTs e mulheres? Não em meu nome. Não em nosso nome!

 Foto: Beto Barata/PR

Samir Oliveira

Parada Livre de Porto Alegre: um berro contra os retrocessos

Samir Oliveira
2 de novembro de 2017
Foto: Fernanda Piccolo

No dia 26 de novembro Porto Alegre realiza a XXI edição da Parada Livre. Um evento de massas, que reúne pelo menos 35 mil pessoas todos os anos na Redenção em uma verdadeira festa política de luta por direitos e celebração da diversidade.

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O tema deste ano não poderia ser mais adequado:

“Berro contra os retrocessos”

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É com esta combatividade que os LGBTs irão às ruas neste dia. O momento político do país exige uma resposta frontal ao conservadorismo e uma reação afrontosa às tentativas medievais de censurar expressões de sexualidade e identidade.

A Parada Livre representa essa resistência construída democraticamente por uma série de coletivos e organizações. É verdade que é preciso que ela seja cada vez mais política, no sentido de incidir sobre a estrutura política que nega nossos direitos, abafa nossa liberdade e espanca nossos corpos. Esse processo está permanentemente em curso, com as linguagens e estéticas próprias que a população LGBT domina para fazer política. Afinal, a própria existência da Parada é um ato político. É extremamente político que dezenas de milhares de corpos LGBTs saiam às ruas juntos para expressar seus afetos e exercer a plena liberdade de ser quem são.

A Parada Livre deste ano será mais uma etapa de um novo ciclo de lutas que a população LGBT vem travando no Brasil nos últimos meses. Os ataques de setores proto-fascistas da sociedade exigem uma resposta forte e impulsionam uma articulação entre todo o movimento.

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Ataques constantes

A representação maior deste novo ciclo foi a reação ao fechamento da exposição QueerMuseu em Porto Alegre. O episódio fortaleceu grupos de extrema-direita que destilam ódio contra qualquer manifestação de diversidade. Iniciou-se uma cruzada medieval contra a arte e as expressões de sexualidade e gênero no Brasil. O recuo vergonhoso do Santander diante destes grupos violentos catalisou esse sentimento antidiversidade.

A reação do movimento LGBT foi imediata e forte. Mais de duas mil pessoas se reuniram em frente ao Santander em plena quarta-feira para defender a liberdade artística. A vanguarda do movimento se uniu à categoria artística num duro enfrentamento aos grupos de ódio – especialmente ao MBL e seus satélites, que compareceram presencialmente no protesto e provocaram os ativistas.

A decisão da Justiça, em primeira instância, de autorizar a chamada “cura gay” representa um retrocesso de pelo menos 30 anos no que diz respeito ao consenso médico-psiquiátrico, científico e psicológico de que homossexualidade não é uma doença. Também esse episódio gerou uma onda de lutas muito forte. Em Porto Alegre, milhares foram às ruas para lutar contra este absurdo.

A população LGBT carrega consigo a responsabilidade de estar no enfrentamento diário à intolerância e ao fascismo, pois são seus corpos e suas expressões de afeto, identidade e sexualidade que estão sendo atacadas.

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O Brasil é o país que mais mata LGBTs no mundo. Só neste ano foram 169 transexuais assassinados e assassinadas. A população de travestis e transexuais é a mais vulnerável nesse contexto de extermínio

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Fortalecer a Parada Livre é fortalecer essa resistência tão necessária nos dias de hoje. É lutar por vidas humanas que estão em risco por causa do preconceito e da intolerância. Por isso é tão criminoso que a prefeitura de Porto Alegre tenha suspendido o apoio que sempre deu ao evento. O movimento não se intimidou diante da postura autoritária de Nelson Marchezan Júnior e batalha duramente por financiamento, contando com a parceria de casas noturnas e bares LGBTs e com a criatividade militante na venda de bottons, camisetas e canecas – que podem ser compradas através da loja virtual http://www.lojaafirme.com.br.

A Parada Livre deste ano não será menor. Pelo contrário, expressará com muita força o verdadeiro berro contra os retrocessos que a população LGBT dará na Redenção em 26 de novembro. Será fabuloso!

Foto: Fernanda Piccolo

Samir Oliveira

Eu poderia ter sido uma vítima da “cura gay”

Samir Oliveira
21 de setembro de 2017

O ano era 2003. Eu ainda não conhecia o termo “cura gay”. Acho que ninguém conhecia. Não era um assunto tratado pela mídia ou com trânsito na esfera política

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Eu tinha apenas 15 anos quando fui arrastado à força para fora do armário. Não pude optar por permanecer dentro dele até me sentir fortalecido o bastante para sair. De cara, fui levado a um médico. Não a um psiquiatra, mas a um neurologista. Sim, gente: um neurologista. É evidente que o plano traçado para mim era o de alguma espécie de “cura”. Lembro até hoje das palavras daquele médico, com um livro da OMS em mãos: “Desde os anos 1990 a homossexualidade não é considerada uma doença”.

Nunca mais vi esse médico. Não lembro seu nome. Mas, nos últimos dias, tenho lembrado constantemente de suas palavras e do que elas significaram para mim naquele momento. Minha vontade é de ligar para ele e agradecer: “Você não sabe, mas me salvou”.

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Imaginem se eu caísse nas mãos de um charlatão? Ou se existisse em 2003 uma liminar judicial abrindo brechas para supostas terapias de “reversão sexual”?

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Tenho pensado muito nisso na última semana. Não apenas no que aconteceu ou poderia ter acontecido comigo. Mas no que pode estar acontecendo neste momento com um menino gay ou uma menina lésbica de 15 anos. Será que eles terão a sorte de ouvir de um profissional da saúde que “homossexualidade não é doença”? Ou será que irão ouvir que a Justiça agora autoriza a “cura gay”?

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O Samir de 2003 pensaria que estamos vivendo em uma distopia

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A aclamada série “The Handmaid’s Tale” nos alerta que os sinais do retrocesso sempre estiveram presentes, mas que nunca demos importância. Fico me perguntando se em 2003 os sinais de que algum tipo de “cura gay” seria possível em 2017 pairavam no ar. Realmente não sei, estava preocupado demais em sobreviver ao inferno naquela época para notar.

Hoje eu sei. Sei que a ação que resultou no precedente para a “cura gay” foi aberta por uma psicóloga lotada no gabinete de um deputado federal evangélico do DEM. Rozangela Alves Justino trabalha com Sóstenes Cavalcante, que além de parlamentar é pastor da Igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo, liderada por Silas Malafaia – ele mesmo.

O deputado Sóstenes, chefe da psicóloga-missionária que reivindica a “cura gay” na Justiça, diz em seu próprio site pessoal falar diretamente com Deus: “Comigo Deus tem tratos específicos de tempos em tempos para cumprir determinadas missões”.

Hoje eu sei que a seita de Silas Malafaia investe na abertura de centros de reabilitação para dependentes químicos. O que o impediria de inaugurar centros de reabilitação para homossexuais? Se tais tratamentos passarem a ser considerados legais, nada.

O perfil @nadanovonofront no Twitter faz um alerta interessante. Estes centros de reabilitação que pipocam em todo o país possuem convênios com os governos. Ou seja, recebem recursos públicos para tratar de dependentes químicos – já que não há vagas para todos na rede hospitalar ou nos Centros de Atendimento Psicossocial (CAPS).

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Imaginem o mercado lucrativo que a “cura gay” pode representar para os rentistas da fé. Nada mais pragmático para setores que aprenderam a ganhar dinheiro a partir do sofrimento

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Um relatório do Conselho Federal de Psicologia aponta as condições degradantes em que os pacientes são tratados nestes centros. O órgão avaliou 68 comunidades terapêuticas em 25 estados e constatou violações graves: “Interceptação e violação de correspondência, violência física, castigos, tortura, exposição a situações de humilhação, imposição de credo, exigência prévia de exames clínicos como teste de HIV, intimidações, desrespeito à orientação sexual, revista vexatória de familiares, violação de privacidade, entre outras, são ocorrências encontradas em todos os lugares visitados”, disse Cláudio Garcia Capitão, que representava o CFP no Conselho Nacional de Saúde em 2015, quando apresentou o estudo.

Aqueles que desejam a “cura gay” já perderam diversas vezes no Congresso. Não conseguiram fazer avançar seus projetos, mesmo em um Congresso absolutamente conservador como o nosso – o que revela o nível de regressão medieval da medida. Por isso apelam à Justiça, onde em algum momento acabariam encontrando um juiz conservador que lhes desse razão.

Eu acredito que podemos mudar essa história. A disputa segue na Justiça e no Congresso, mas a saída não virá das instituições. Virá da nossa organização coletiva e da força da nossa luta. Só assim poderemos deixar de viver neste presente distópico.

Samir Oliveira

Não gay o bastante: o drama de refugiados homossexuais

Samir Oliveira
6 de julho de 2017
Foto: Nathan Rupert/Flickr

A situação dramática de refugiados ganha contornos de catástrofe humanitária em muitos países. A Síria é a expressão mais cristalina deste problema. Acossada por uma disputa infame entre um regime assassino e uma organização terrorista, a população síria vê no exílio a única alternativa. Mas existe uma outra faceta pouco explorada deste problema.

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As pessoas que precisam deixar seus países devido à perseguição motivada por preconceito e discriminação. Não existe um dado preciso e confiável, mas não é difícil imaginar que centenas de milhares de LGBTs encontrem-se nessa situação no mundo inteiro

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É evidente que este não é o único motivo para uma pessoa homossexual ou trans deixar seu país. A comunidade LGBT também sofre as consequências de guerras e catástrofes humanitárias – momento em que estão ainda mais vulneráveis que outros setores da população.

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Exilados mesmo no exílio

Muitos LGBTs acabam buscando asilo na Holanda, um país tido como liberal nos costumes. Foi a primeira nação a legalizar o casamento gay. E recentemente o governo lançou um aplicativo – o Rainbow Refugees NL – que fornece informações a refugiados LGBTs sobre direitos, saúde e segurança. Através da ferramenta é possível verificar os trâmites do procedimento de solicitação de asilo e encontrar associações da sociedade civil que prestam auxílio a refugiados. O aplicativo está disponível em árabe, persa, francês e inglês.

O problema é que muitos refugiados LGBTs acabam enfrentando situações de violência nos próprios abrigos, que dividem com compatriotas e moradores de outros países. Com frequência, têm suas roupas queimadas e as camas vandalizadas com excrementos.

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Reportagens da imprensa e relatório de ONGs apontam que homossexuais são xingados, espancados e até mesmo violentados sexualmente nestes abrigos

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Mesmo diante de tantos abusos, resistem em ir à polícia, com receio de que o envolvimento das autoridades possa atrapalhar a concessão de asilo. Na Alemanha, a Federação Lésbica e Gay informa que ocorreram 106 casos de violência contra homossexuais e transexuais refugiados em Berlim, entre agosto de 2015 e janeiro de 2016. Na Holanda, a prefeitura de Amsterdã precisou viabilizar casas de abrigo exclusiva para refugiados LGBTs. É comum também que cidadãos holandeses se disponham a receber as vítimas em suas casas.

Mas não é apenas contra o preconceito que os refugiados LGBTs precisam lutar na Holanda. É também contra o próprio sistema que, em tese, os acolhe. Para que seja concedido asilo, é preciso que um assistente social do governo seja “convencido” de que o(a) solicitante é mesmo homossexual. Como se refugiados que já tomaram a decisão mais dura de suas existências – abandonar seu próprio país e deixar para trás os vínculos de toda uma vida – fossem forjar uma orientação sexual falsa. Ainda mais sabendo que isso tornaria suas relações mais conturbadas com suas comunidades de origem.

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Suficientemente gay (?)

O caso do iraquiano Sahir, de 29 anos, é emblemático. Mesmo com um namorado, ele não foi considerado “gay o bastante” pelo sistema de acolhimento do governo holandês. Sahir teve que expor sua intimidade de forma completamente invasiva. Precisou relatar às autoridades que dorme junto com seu companheiro e que mantém relações sexuais frequentes com ele. De nada adiantou.

O governo também não aceita fotografias em paradas LGBTs ou depoimento de amigos, colegas ou familiares como “prova” de que o solicitante de asilo seja mesmo homossexual. O impasse absurdo gerado pelo caso de Sahir deslanchou uma onda de solidariedade com a campanha “Not Gay Enough”, que exige mudanças no sistema de acolhimento holandês.

Dentre as mudanças, o movimento quer que o procedimento de concessão de asilo a homossexuais passe pela deliberação de uma comissão formada por profissionais da psicologia e integrantes de ONGs especializadas em prestar auxílio a refugiados. Para que nenhum LGBT seja deportado a um lugar onde não se sente seguro.

Foto: Foto: Nathan Rupert/Flickr

Samir Oliveira

Um campo de concentração para gays na Chechênia: onde fomos parar?

Samir Oliveira
13 de abril de 2017
Foto: Divulgação/Presidência da Rússia

O mundo foi assombrado esta semana por uma informação que nem os piores portais de fake news conseguiriam elaborar: a de que autoridades na Chechênia estariam levando homossexuais para um campo de concentração. Na era da pós-verdade e das notícias falsas, confesso que custei a acreditar. Até que garimpei em diversos sites confiáveis e verifiquei, para meu espanto, que a notícia era verdadeira.

Contudo, a dificuldade de acesso a informações no local, devido ao bloqueio proporcionado pelo poder público na Chechênia, borra ainda mais as fronteiras entre o que é real e o que são especulações.

Por exemplo: até o momento nenhum informe soube precisar onde ficaria este campo de concentração. Mas todos são unânimes em relatar que homossexuais estão sendo perseguidos e assassinados. A maior parte das informações vem de organizações em defesa dos direitos humanos. Tudo começou quando um movimento LGBT da Rússia passou a exigir das autoridades permissão para realização de paradas do orgulho LGBT em diversas cidades do país. A “ousadia” despertou a revolta de comunidades que já são extremamente preconceituosas, deslanchando uma caça às bruxas devastadora para a população LGBT na região – a imensa maioria, aliás, ainda dentro do armário, por motivos óbvios.

?Mas o que a Rússia tem a ver com isso?

Todas as notícias sobre o assunto falham em explicar exatamente o que é a Chechênia. É uma República, mas não é exatamente um país independente. Acontece que na Federação Russa existem vários níveis de autonomia concedidos a seus territórios. Existem 83 divisões territoriais na Rússia: 46 províncias, 21 repúblicas, 9 territórios, 4 regiões autônomas, 2 cidades federais e uma província autônoma.

As repúblicas gozam de uma ampla autonomia em relação ao Kremlin. Têm seus próprios presidentes e parlamentos. Mas isso não justifica a omissão de Vladmir Putin em relação ao que ocorre na República da Chechênia.

Os últimos anos já nos deram provas o suficiente de que a Rússia, como um todo, é uma sociedade bastante conservadora no que diz respeito à população LGBT. Não causa surpresa o fato de o governo central se omitir sobre a perseguição escrachada aos gays em seus territórios.

A República da Chechênia é governada por Ramzan Kadyrov, aliado de Putin e muçulmano sunita, assim como a maioria dos habitantes da região. Não que eu ache que a culpa pelo preconceito seja da religião, muitos países possuem maioria muçulmana, seja ela sunita ou xiita, e não constroem campos de concentração para LGBTs. O Brasil é um país de maioria católica e é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Ou seja, a questão é muito mais profunda e complexa. Infelizmente visões ocidentalistas e mal intencionadas acabam manipulando os fatos para construir um discurso islamofóbico que sirva aos interesses das grandes potências ocidentais.

A própria resposta do governo local da Chechênia às acusações de que estaria perseguindo homossexuais é uma prova cabal de que algo muito obscuro ocorre na região: “Não podemos perseguir quem não existe”.

O autoritarismo de Kadyrov é notório – e não é de hoje. Em 2006, a jornalista russa Anna Politkovskaya foi assassinada em frente ao seu prédio em Moscou semanas após dar uma entrevista a uma rádio qualificando o governante chechênio como “um covarde escondido atrás de um exército”.

Resposta internacional

A comunidade internacional precisa se insurgir contra este absurdo. A construção de campos de concentração para homossexuais nos leva aos períodos mais sombrios da história da humanidade. Há relatos de que as autoridades policiais da Chechênia estariam usando o Facebook para “descobrir” quem é homossexual na região, marcando encontros com homens gays para então prendê-los.

Seria ingenuidade minha pensar que a ONU ou qualquer potência internacional adotariam medidas drásticas contra a Rússia, ela própria uma potência com assento no Conselho de Segurança. Mas é preciso, no mínimo, dar acesso aos grupos em defesa dos direitos humanos para que possam ingressar na Chechênia com plena liberdade para salvar as vidas ameaçadas pela intolerância. Para que possam oferecer aos homossexuais da região uma porta de saída daquele horror.

Foto: Presidente russo, Vladimir Putin, reunido com o presidente da Chechênia, Ramzan Kadyrov.
Crédito da Foto: Presidência da Rússia/Divulgação.

Samir Oliveira

Precisamos repetir o óbvio: ser gay não te impede de ser machista

Samir Oliveira
9 de março de 2017
Foto: Adria Meira

Nesta semana marcada pelo Dia Internacional da Mulher, o assunto desta coluna não poderia ser outro que não o machismo perpetuado por homens gays. Trata-se de algo tão intrínseco em nossa própria sociabilidade que pode ser difícil para alguns identificar determinados comportamentos e discursos como integrantes de uma cultura machista. Façamos, então, um esforço radical de compreensão.

Eu aprendi muito com minhas amigas. Especialmente com minhas amigas lésbicas. À medida em que passei a conviver mais com as outras letras da população LGBT, fui percebendo o quanto o segmento “G”, ao qual pertenço, está na vanguarda do atraso quando olhamos para o conjunto de nossa comunidade. Não me refiro apenas ao movimento gay enquanto um corpo político – justamente apontado como centralizador de toda causa LGBT, valendo-se de privilégios que lésbicas, bissexuais e transexuais não possuem. Refiro-me aos indivíduos gays enquanto sujeitos, suas dinâmicas internas de convivência e linguagem.

Ao deixar de me relacionar apenas com amigos heterossexuais passei a me libertar de diversas formas ao estabelecer vínculos com outros sujeitos como eu. Outros homens gays. Mas hoje percebo que, no que diz respeito ao machismo, apenas transitei do convívio com comportamentos machistas heterossexuais para o convívio com comportamentos machistas vindos de homossexuais.

Ainda é muito comum, em círculos de amizade formados por homens gays, ouvir absurdos misóginos

Ouvir expressões que humilham mulheres, que expressam a ideia de que homens gays possuem nojo da genitália feminina. Também não são raras as vezes em que homens gays se apropriam de elementos socialmente tidos como “femininos” como forma de rebaixamento, ecoando a noção de que tudo que é associado a uma ideia de “feminino” é inferior. Esses comportamentos, muitas vezes, não são reproduzidos de maneira a constituir conscientemente uma ação machista. Mas oprimem da mesma forma. Não me custa nada entender por que minhas amigas lésbicas preferem sair com meninas lésbicas, interagir com outras mulheres. Elas se sentem mais seguras e acolhidas, a salvo de comentários de seus amigos gays que, mesmo de forma inconsciente, reproduzem machismo e até mesmo lesbofobia.

Isso para não falar das mulheres transexuais e travestis. Estas estão sujeitas a toda forma duvidosa e opressora de humor por parte de homens gays. O tempo inteiro.

Ainda hoje é preciso repetir o óbvio: que ser gay não significa portar um passe livre para a reprodução de outras opressões. Que ser gay não te impede de ser machista. A força da luta das mulheres despertou em mim um alerta permanente a este tipo de conduta. Eu preciso do feminismo para ser viado. Porque homofobia e machismo andam de mãos dadas, massacrando juntas tudo que é associado a conceitos socialmente construídos de “feminilidade”. Porque durante toda a minha infância eu fui ensinado a entender que ser “mulherzinha” era ser inferior. Que não havia “xingamento” pior para um menino do que ser chamado de menina. Que eu não podia usar canetas coloridas na escola, porque isso “era coisa de bichinha”. Que eu não podia lavar louça em casa, porque “isso é coisa de mulher”. Que se eu não “andasse como um homem” poderia ser insultado nas ruas. A maioria dos ataques e insultos homofóbicos tem suas raízes cravadas no ódio a qualquer ideia socialmente associada ao feminino. É inaceitável que homens gays, vítimas desses mecanismos perversos de opressão sistêmica, também reproduzam a lógica das engrenagens que os sufocam.

Foto: Adria Meira

Samir Oliveira

Especular sobre a sexualidade alheia é uma forma de violência

Samir Oliveira
2 de março de 2017
Foto: Ludovic Bertron/Flickr

No movimento LGBT muito se debate sobre a necessidade de termos orgulho de ser quem somos. De sairmos da vergonha, da reclusão, do espaço convencionalmente chamado de “armário” para o orgulho. É um processo difícil e extremamente subjetivo. Cada pessoa sabe a forma de conduzi-lo de acordo com sua realidade, com sua situação afetiva e familiar.

“A exposição de LGBTs ocorre diariamente em comunidades, bairros e círculos sociais, ampliada pela potência das redes sociais”

Mas muitas pessoas não têm essa escolha. Acabam sendo expostas. Acabam sendo alvo de especulações, até mesmo de acusações. A exposição de LGBTs ocorre diariamente em comunidades, bairros e círculos sociais, ampliada pela potência das redes sociais. Há um fenômeno igualmente perverso que atinge escalas ainda maiores: a exposição de LGBTs famosos. Personalidades que, por qualquer que seja o motivo, optaram por não fazer uma transição pública do armário para o orgulho. E tudo bem, ninguém é obrigado a isso, ainda mais quando se é uma pessoa pública. Sabemos que a atenção da mídia e a reação das pessoas nem sempre acontece da maneira mais agradável.

Muita gente pode argumentar que pessoas públicas têm poder de influência e, portanto, enquanto LGBTs, deveriam utilizá-lo para lutar contra o preconceito. É verdade, concordo com isso. Mas não podemos empurrar ninguém para essa situação. Precisamos respeitar o tempo e a disposição de cada um. Estrutura emocional e fortalecimento afetivo não brotam do dia para a noite.

Privacidade

Isso não quer dizer que estas pessoas sejam mal resolvidas, infelizes e vivam uma vida de mentira. O ator Leonardo Vieira, exposto em uma foto beijando outro homem, nunca escondeu sua homossexualidade de seus amigos, de sua família e das pessoas que compõem seu círculo social. Ainda assim, o preconceito caiu sobre suas costas de forma brutal quando sites de fofocas transformaram seu gesto de carinho em um escândalo.

No mundo da ficção, vimos na série Sense8 o personagem do ator Lito, um galã mexicano de filmes de ação, ser confrontado com este dilema, com a decisão de “sair do armário” publicamente – ainda que em sua vida pessoal nunca tenha se escondido para a família e os amigos. Esta trajetória não foi fácil para Lito, a própria indústria cinematográfica que o cerca foi contra a decisão. Mas após muita reflexão o personagem demonstrou que estava disposto a enfrentar o preconceito. Claro que o mundo da ficção por vezes mascara a crueza da realidade, mas Lito, assim como muita gente na mesma situação, só conseguiu transitar para o orgulho porque estava fortalecido em seu círculo afetivo e familiar.

A polêmica envolvendo Daniel

Recentemente uma nova falsa polêmica atingiu as redes sociais e revelou como a lógica da exposição forçada pode ser cruel e se retroalimenta inclusive dentro da própria população LGBT. Em pleno Carnaval, a foto de um homem jovem e bonito sem camisa no perfil do cantor Daniel no Twitter gerou as mais diversas especulações a respeito de sua sexualidade. Piadas e insinuações sobre o episódio pipocaram por todos os lados, quando na verdade tudo não passava de um equívoco cometido por quem gerencia as redes sociais de Daniel e do cantor Delluka Vieira, o homem que aparecia na foto do tuíte. O mesmo tuíte havia sido postado nas duas contas, em um evidente erro de social media.

Em 2014, Daniel lançou sua autobiografia em um livro chamado “Minha estrada”. Nele, o cantor comenta que no início de sua carreira eram fartos os boatos sobre sua sexualidade. “Quando comecei a ficar conhecido, a imprensa queria saber com quem eu estava namorando. Como sempre fui muito caseiro, se algum jornalista perguntava se eu estava solteiro, eu dizia que sim, mesmo se estivesse namorando. Por conta disso, começaram a espalhar por aí que eu era gay. Nunca tive nenhum tipo de preconceito contra os homossexuais, mas, em determinados momentos, essa história ganhou uma dimensão que começou a me incomodar. Inventaram um monte de histórias, algumas circulavam com força na internet”, disse.

As especulações ganharam força após Daniel aceitar fazer parte de uma campanha publicitária para uma marca de cuecas, com fotos suas em peças íntimas circulando por cartazes e outdoors. São exemplos de como a cultura da exposição forçada – seja ela sobre pessoas famosas ou não – é uma expressão da homofobia que precisamos combater. É também um ato de violência que atinge inclusive pessoas que não são LGBTs. Ninguém tem o direito de tirar uma pessoa à força do armário, sem que ela esteja fortalecida afetivamente para lidar com tudo que isso representa. Sair do armário é um ato de empoderamento, mas só se você quiser e estiver pronto ou pronta para isso.

Foto: Ludovic Bertron/Flickr