Samir Oliveira

Não gay o bastante: o drama de refugiados homossexuais

Samir Oliveira
6 de julho de 2017
Foto: Nathan Rupert/Flickr

A situação dramática de refugiados ganha contornos de catástrofe humanitária em muitos países. A Síria é a expressão mais cristalina deste problema. Acossada por uma disputa infame entre um regime assassino e uma organização terrorista, a população síria vê no exílio a única alternativa. Mas existe uma outra faceta pouco explorada deste problema.

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As pessoas que precisam deixar seus países devido à perseguição motivada por preconceito e discriminação. Não existe um dado preciso e confiável, mas não é difícil imaginar que centenas de milhares de LGBTs encontrem-se nessa situação no mundo inteiro

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É evidente que este não é o único motivo para uma pessoa homossexual ou trans deixar seu país. A comunidade LGBT também sofre as consequências de guerras e catástrofes humanitárias – momento em que estão ainda mais vulneráveis que outros setores da população.

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Exilados mesmo no exílio

Muitos LGBTs acabam buscando asilo na Holanda, um país tido como liberal nos costumes. Foi a primeira nação a legalizar o casamento gay. E recentemente o governo lançou um aplicativo – o Rainbow Refugees NL – que fornece informações a refugiados LGBTs sobre direitos, saúde e segurança. Através da ferramenta é possível verificar os trâmites do procedimento de solicitação de asilo e encontrar associações da sociedade civil que prestam auxílio a refugiados. O aplicativo está disponível em árabe, persa, francês e inglês.

O problema é que muitos refugiados LGBTs acabam enfrentando situações de violência nos próprios abrigos, que dividem com compatriotas e moradores de outros países. Com frequência, têm suas roupas queimadas e as camas vandalizadas com excrementos.

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Reportagens da imprensa e relatório de ONGs apontam que homossexuais são xingados, espancados e até mesmo violentados sexualmente nestes abrigos

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Mesmo diante de tantos abusos, resistem em ir à polícia, com receio de que o envolvimento das autoridades possa atrapalhar a concessão de asilo. Na Alemanha, a Federação Lésbica e Gay informa que ocorreram 106 casos de violência contra homossexuais e transexuais refugiados em Berlim, entre agosto de 2015 e janeiro de 2016. Na Holanda, a prefeitura de Amsterdã precisou viabilizar casas de abrigo exclusiva para refugiados LGBTs. É comum também que cidadãos holandeses se disponham a receber as vítimas em suas casas.

Mas não é apenas contra o preconceito que os refugiados LGBTs precisam lutar na Holanda. É também contra o próprio sistema que, em tese, os acolhe. Para que seja concedido asilo, é preciso que um assistente social do governo seja “convencido” de que o(a) solicitante é mesmo homossexual. Como se refugiados que já tomaram a decisão mais dura de suas existências – abandonar seu próprio país e deixar para trás os vínculos de toda uma vida – fossem forjar uma orientação sexual falsa. Ainda mais sabendo que isso tornaria suas relações mais conturbadas com suas comunidades de origem.

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Suficientemente gay (?)

O caso do iraquiano Sahir, de 29 anos, é emblemático. Mesmo com um namorado, ele não foi considerado “gay o bastante” pelo sistema de acolhimento do governo holandês. Sahir teve que expor sua intimidade de forma completamente invasiva. Precisou relatar às autoridades que dorme junto com seu companheiro e que mantém relações sexuais frequentes com ele. De nada adiantou.

O governo também não aceita fotografias em paradas LGBTs ou depoimento de amigos, colegas ou familiares como “prova” de que o solicitante de asilo seja mesmo homossexual. O impasse absurdo gerado pelo caso de Sahir deslanchou uma onda de solidariedade com a campanha “Not Gay Enough”, que exige mudanças no sistema de acolhimento holandês.

Dentre as mudanças, o movimento quer que o procedimento de concessão de asilo a homossexuais passe pela deliberação de uma comissão formada por profissionais da psicologia e integrantes de ONGs especializadas em prestar auxílio a refugiados. Para que nenhum LGBT seja deportado a um lugar onde não se sente seguro.

Foto: Foto: Nathan Rupert/Flickr

Samir Oliveira

O otimismo como um direito

Samir Oliveira
9 de fevereiro de 2017
Foto: Fernanda Piccolo

O ano de 2017 começou de forma tenebrosa para a população LGBT. Tivemos a morte a facadas do jovem Itaberli Lozano, da cidade de Cravinhos, no interior de São Paulo. Com apenas 17 anos e uma vida inteira pela frente, foi assassinado pela mãe e pelo padrasto por ser gay. O enfermeiro Marcelo Correia foi atingido na cabeça com uma barra de concreto na cidade de Prado, na Bahia. O vendedor Divino Aparecido foi espancado em Uberlândia. Está no hospital, em coma induzido. Um grupo de drag queens foi barrado na entrada de um shopping na Zona Leste de São Paulo. O casal Júnior Santos e Maycon Aguiar recebeu uma carta com insultos homofóbicos e racistas de vizinhos no condomínio onde moram, no Rio de Janeiro.

Esses são apenas alguns casos. São apenas os que saem no noticiário. Certamente existem muitos outros. Neste momento, uma menina lésbica está sendo expulsa de casa. Uma travesti está apanhando nas ruas. Um homem transexual está sendo desrespeitado no sistema de saúde. As estatísticas são muito generosas com a população LGBT porque a subnotificação das agressões que sofremos todos os dias é a regra geral. A realidade é muito pior.

Mas nós viemos de muito longe. Viemos da rebelião de Stonewall, onde enfrentamos o autoritarismo da polícia com nossos corpos. Ao longo de muitas décadas, conseguimos sair da marginalidade para o orgulho. Sem nunca perder a rebeldia necessária a todas e todos que estão acostumados a observar a vida pelas beiradas. Viemos de uma longa tradição de resistência individual e coletiva. E não vamos abaixar a cabeça, ainda que este ano comece com tantas notícias ruins. Com tantas vidas golpeadas pelo preconceito.

Maria Bethânia diz em uma canção: “Não mexe comigo, que eu não ando só”. Nós não andamos sós. As multidões que saem às ruas nas paradas LGBTs de todo o país e do mundo inteiro comprovam isso. A juventude e as novas gerações são a prova viva de que a discriminação está condenada ao ostracismo. Nossas vidas, linguagens e afetos constroem verdadeiras fissuras em um sistema marcado pela opressão. De fenda em fenda, abrimos um rombo. Quando aqueles que propagam o ódio menos perceberem, estarão em um abismo.

No tempo em que vivemos, qualquer manifestação de otimismo pode ser facilmente confundida como um ato de loucura. Como uma demonstração de ingenuidade. O poeta uruguaio Mario Benedetti certa vez escreveu que precisamos defender a alegria como um direito. Acredito que também devemos ter direito ao otimismo. Podem dizer que vivo fora da realidade. Esfreguem todas as piores notícias na minha cara. Falem-me de conjuntura, me xinguem de imaturo. Não importa. Eu ainda acordo todos os dias pensando na frase da escritora indiana Arundhati Roy: “Um outro mundo não apenas é possível, como ela [sim, é uma outra munda] está a caminho. Em um dia tranquilo, eu consigo ouvir sua respiração”.

Crédito da foto: Fernanda Piccolo.