PodCasts

OUÇA Bendita Sois Vós #42 Retrospectiva 2019

Geórgia Santos
23 de dezembro de 2019

Não foi nada fácil fazer uma retrospectiva de 2019. De todo modo, todos nós, do Vós, concordamos que o ano foi marcado pelo desgoverno de Jair Bolsonaro. Então selecionamos alguns temas em que esse desgoverno se destacou. Começamos com as questões ambientais, em especial os incêndios na amazônia e vazamento de óleo – sem esquecermos, é claro, das declarações estapafúrdias do presidente.

Outro tema em destaque é a corrupção. Porque apesar de o ministro Sérgio Moroafirmar que não houve corrupção em 2019, encerramos o ano com mais notícias das rachadinhas do clã  Bolsonaro –  sem falar no escândalo da Vazajato.

Não podemos esquecer que 2019 também foi o ano em que a educação foi acossada, universidades federais atacadas e Paulo Freire, sim, Paulo Freire, demonizado. A desigualdade aumentou e o ministro da economia, Paulo Guedes, não parece se incomodar com isso. Sem contar os constantes ataques às minorias, que foram normalizados – senão institucionalizados.

Para acompanhar as discussões dos jornalistas Geórgia Santos, Tércio Saccol e Igor Natusch, selecionamos algumas das entrevistas que fizemos ao longo de 2019 para o Bendita Sois Vós. Você também pode ouvir o episódio no SpotifyItunes e Castbox.

Samir Oliveira

Um ano depois: LGBTs vão do medo à luta para enfrentar Bolsonaro

Samir Oliveira
20 de novembro de 2019

Os dias que se seguiram à vitória de Jair Bolsonaro no segundo turno das eleições de 2018 foram marcados por um sentimento de medo profundo entre a comunidade LGBT. Era como se, de repente, nossas vidas estivessem ainda mais em risco. Como se passássemos a viver sob o fio de uma espada, pronta para decepar nossos sonhos, nossas conquistas e nossas possibilidades de ser e amar.

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Como pode uma política que agride nossa existência receber o voto entusiasmado de quem diz nos amar?

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Um ano já se passou desde então. Eu senti esse medo. Meus amigos sentiram este medo. Foi impossível não se deixar tomar por este sentimento. Ainda mais quando muitos de nós percebemos, como foi o meu caso, que este projeto violento de Brasil foi eleito com o apoio de nossos familiares, amigos e conhecidos. Como pode uma política que agride nossa existência receber o voto entusiasmado de quem diz nos amar? O Brasil ainda ficará devendo esta resposta a milhões de LGBTs por um bom tempo.

O sentimento imediato era de que os 57 milhões de brasileiros que votaram em Bolsonaro não toleravam nossa existência. Como viver em um país que está disposto a patrocinar nosso extermínio? Conheço gente que não conseguiu suportar. Pessoas que partiram antes das eleições e não pretendem mais voltar. E pessoas que ainda estão pensando em se mandar de vez.

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Assim como percebi medo e horror, também vi brotar um sentimento de resistência muito grande entre LGBTs
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Mais do que nunca, nossa estética virou uma forma de afrontar o sistema. As cores do arco-íris, que tanta repulsa causam à base de apoio mais dura do bolsonarismo, ostentam nosso orgulho. As paradas LGBTs continuam levando multidões às ruas, demonstrando ao mundo que não iremos voltar ao armário. A criminalização da LGBTfobia pelo STF foi uma conquista civilizatória em tempos de Bolsonaro. A decisão do Supremo de equiparar LGBTfobia ao crime de racismo é um espinho na garganta do bolsonarismo. Não é pouca coisa que ela tenha ocorrido justamente durante o reinado de ódio que se instalou no país.

Também causa indigestão a esta gente o fato de que um casal gay se encontra no epicentro da oposição ao governo. O jornalista Glenn Greenwald e o deputado federal David Miranda (PSOL-RJ) viram suas vidas serem reviradas do avesso pela segunda vez. A primeira aconteceu quando revelaram ao mundo a rede suja de espionagem dos Estados Unidos. Agora Glenn, com a coragem característica dos bons jornalistas, desnudou a tragédia farsesca de um juiz-acusador e de um procurador apaixonado por si mesmo. E com isso atraiu para si a fúria do bolsonarismo e os insultos dignos de quinta série associados à sua sexualidade e à sua família. A disputa chegou ao esgoto quando até mesmo sua mãe, com câncer em estágio terminal, e seus filhos foram atacados.

A conjuntura política é grave. Não podemos contar apenas com nosso voluntarismo diante da corrosão democrática que o país vive. O melhor que temos a fazer é nos organizarmos para enfrentar este período histórico. Nossa resistência individual precisa encontrar na luta coletiva um elo que dê sentido à revolta e à mobilização por transformações estruturais no Brasil. 

Bolsonaro nada mais é do que a face mais desumana de um sistema podre que recorreu ao medo para rebaixar ainda mais as condições de vida da classe trabalhadora. O recrudescimento da opressão contra a população LGBT está inserido neste projeto nefasto de país, em que interessa ao capitalismo que nós sejamos considerados cidadãos de segunda categoria, para que possamos ser mais facilmente explorados. Por isso, nossa resistência precisa andar lado a lado de uma luta que também seja antissistêmica, encontrando sentido nas trincheiras ao lado das mulheres, da negritude, do sindicalismo, dos ambientalistas, dos estudantes, e de todas e todos que estejam dispostos a apontar um novo rumo para o país.

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O medo experimentado após o resultado eleitoral vem, ao longo deste ano que insiste em não terminar, cedendo lugar à certeza de que não estamos sozinhos
Mas apenas nossos aliados de sempre não bastam
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Precisamos conduzir um esforço de diálogo com setores da base bolsonarista que não compactuam com ideias fascistas – base essa que vem sendo corroída desde a posse do presidente. Bolsonaro não seguirá seu mandato agarrado ao que existe de mais alucinado, radical e intransigente em sua base de apoio – e a criação de seu novo partido indica essa tentativa de organizar com mais solidez este setor. Suas declarações absurdas e as palhaçadas cotidianas servem para manter um núcleo fiel energizado, mas afastam franjas importantes do bolsonarismo que não estão dispostas a ir para o vale tudo em nome de uma cruzada ideológica e antidemocrática da extrema-direita.

Essas pessoas precisam estar do nosso lado na luta pelos direitos sociais, contra o autoritarismo e em defesa das chamadas “minorias”. Muitas pesquisas já demonstram evidências fartas de que nem todo mundo que votou em Bolsonaro é racista, misógino e LGBTfóbico. Não podemos desprezar este dado, pois não iremos virar este jogo apenas com nossas próprias forças. Temos que energizar nossas bases e falar para os nossos também, mas precisamos ir além, encontrando em nossa organização coletiva um canal para ampliarmos nossas vozes e furarmos as bolhas.

Foto capa: Mídia Ninja

Igor Natusch

De vez em quando, os fascistas não vão passar

Igor Natusch
12 de setembro de 2019

Na dura luta conta a escalada reacionária e fascista que ameaça transformar o Brasil em escombros, todas as vitórias devem ser comemoradas.

No último dia 7 de setembro, tivemos um triunfo significativo nesse sentido. Diante da censura homofóbica promovida pelo prefeito Marcelo Crivella contra a Bienal do Livro no Rio, uma reação (disparada, até certo ponto, pelo super-trunfo midiático Felipe Neto) forçou a ofensiva obscurantista a recuar, em uma sequência de acontecimentos que incluiu recordes de vendas, manifestações ruidosas e uma capa história da Folha de S. Paulo. A insensatez preconceituosa de Crivella (e do desembargador Cláudio de Mello Tavares, do TJ-RJ, que temporariamente autorizou o absurdo recolhimento de livros com temática LGBT) foi enfrentada e, no fim das contas, não triunfou.

Pela primeira vez em um tempo considerável, os fascistas não passaram.

Ainda assim, não foram poucos os que se mostraram, no mínimo, reticentes em comemorar. Afinal, argumentou-se, a ala mais radicalizada à direita estaria achando o máximo o posicionamento do prefeito carioca – e a reação estaria, na verdade, fidelizando e dando coesão às forças obscurantistas ao invés de enfraquecê-las. Ao falar do assunto, servimos à narrativa deles. Se continuarmos agindo assim, eles vão se reeleger, vão seguir no poder indefinidamente e nunca poderão ser derrotados etc e por aí vai.

Olha, sinceramente: está na hora de desapegar desse medo.

Não há qualquer sentido em disputar a mente dos apoiadores mais empedernidos de Bolsonaro, Crivella e de tudo que eles representam. Eles investiram muito de si nessa história, enormes quantidades de recalques e angústias, e simplesmente não vão saltar fora do barco ao primeiro sacolejo do mar revolto. Talvez desistam, em algum momento, desta trilha de destruição – mas dificilmente agora, e certamente não pelas palavras de ordem de um bando de petralhas esquerdopatas.

E, se converter os convertidos não está no horizonte, que sentido há em ficar temeroso pelo que eles pensam?

Quem propôs a briga foram Crivella e os seus. A reação veio porque, no caso, não tinha como não vir. Silenciar era inconcebível.

Ou permitir que os livros fossem recolhidos era, quem sabe, uma posição tática aceitável? Talvez, para evitar reforçar os reacionários, devamos aceitar que eles façam o que der na telha, sem qualquer tipo de contestação? Torcer para que, se ficarmos bem quietinhos, eles simplesmente desistam de nos importunar?

É possível acalmar a besta fingindo que não se escuta o que ela diz, que não se vê o que ela faz?

A fandom reacionária está, por assim dizer, perdida. Não temos que lutar por eles, mas sim enfrentar quem os usa como manobra. Agir de forma que, ao espectador ainda não posicionado, o lado do atraso, da destruição e do ódio a tudo que não seja espelho pareça tão inaceitável quanto de fato é. E, acima de tudo, temos que lutar pela nossa própria força. Temos que ser capazes não apenas de resistir, mas de confrontar. Se é preciso aprender a não dar fôlego a essa corrente-para-trás que nos consome, é igualmente importante tirar lições de nossas vitórias. Ser capaz de encontrar força, inspiração e estratégia em tudo que nos tira, mesmo que por poucos momentos, da defensiva.

Os fascistas não passaram, ao menos desta vez. E, se não passaram, é porque alguma coisa de certo a gente fez.

Foto: Ana Paula Rocha / Reprodução / Twitter

PodCasts

OUÇA Bendita Sois Vós #24 Criminalização da homofobia e transfobia

Geórgia Santos
22 de junho de 2019

No segundo episódio da segunda temporada do Bendita Sois Vós, o tema é a criminalização da homofobia e da transfobia pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Afinal, nem só de Vazajato vive o Brasil – embora novas revelações sejam publicadas pelo The Intercept Brasil a cada semana. 

Por oito votos a três, os ministros do STF  consideraram que atos preconceituosos contra homossexuais e transexuais devem ser enquadrados no crime de racismo. A pauta vinha sendo debatida desde fevereiro deste ano, quando o relator, Ministro Celso de Mello, deu parecer favorável à causa. Os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol discutem os méritos e controvérsias  da questão que, inclusive, não foi bem recebida por Jair Bolsonaro. O presidente do Brasil acredita que é preciso um ministro evangélico na corte. 

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Além do debate, um teste do Buzzfeed para medir o nosso conhecimento sobre novo entendimento da lei

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No quadro Sobre Nós, Raquel Grabauska traz uma adaptação do texto Garopaba Mon Amour, de Caio Fernando Abreu. Um retrato da violência decorrente do pensamento torpe e moralizador que insiste em perseguir homossexuais no Brasil e no mundo. 

Voos Literários

Lorca e a homofobia do passado (e do presente)

Flávia Cunha
18 de junho de 2019

Muitos intelectuais do século 19 e 20 viveram no armário. Alguns do século 21 ainda vivem, com receio de expor sua sexualidade em uma sociedade em parte conservadora, apesar dos inegáveis avanços da pauta LGBT, como a decisão do STF que criminaliza a homofobia e a transfobia.

Ainda existem vozes contrárias, como a de líderes religiosos que evocam a “liberdade de expressão” para continuar pregando que a homossexualidade é pecado. Isso seguirá liberado, apesar da decisão do Supremo. O que está proibido é incitar a violência contra a comunidade LGBT, pelo simples fato de existirem.

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Lamentavelmente, os crimes de ódio contra gays ocorrem há muito tempo e uma dessas possíveis vítimas é o escritor espanhol Federico García Lorca

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Digo possível porque sua execução durante a Guerra Civil espanhola é cercada de controvérsias. Investigações mais recentes apontam que talvez não tenham sido os fascistas os responsáveis pela morte de Lorca, mas que poderia se tratar de uma briga familiar em torno de terras. De qualquer forma, seja lá quem foram seus executores, o que pairou no ar na época de sua morte (1936) e segue como um dos pontos de convergência das teorias sobre os motivos de seu assassinato é a sua homossexualidade, acima do fato de sua visão política de esquerda e antifascista.

Lorca, apesar de nunca ter assumido publicamente sua orientação sexual, não teve um casamento de fachada com uma mulher, como era costume na época. O fato de circular pela sociedade espanhola sempre acompanhado de homens também provocava desconforto. Mesmo perante partidários de esquerda, Lorca enfrentava dificuldades em relação à sua sexualidade. Relatos apontam que Luis Buñuel (diretor do antológico Cão Andaluz) preferiu afastar Salvador Dalí da influência “negativa” de Lorca,  já que os dois tinham uma relação muito próxima.  

Salvador Dalí e Federico García Lorca, 1927 / Reprodução: Internet

Mas antes de Buñuel “roubar” Dalí da convivência de Lorca, houve pelo menos um registro de um trabalho artístico envolvendo o escritor e o pintor. Em 1927, Dalí foi o responsável pela concepção cênica e figurinos da primeira montagem do espetáculo teatral Mariana Pineda, um dos poucos trabalhos declaradamente políticos de Lorca. A peça teatral é baseada na vida de Mariana de Pineda Muñoz, figura lendária da região de Granada. É até hoje, na região, um símbolo de liberdade e resistência à opressão. No texto do dramaturgo, a história da heroína é romantizada, ao mostrar o amor frustrado da protagonista por um revolucionário foragido e a justificativa para ordenar sua execução é por ter guardado uma bandeira:

 

(Exaltada e protestando ferozmente). Não pode ser! Covardes!  Quem ordena tais vilanias na Espanha? Que crime cometi? Porque me matar? Onde está a razão da justiça? Na bandeira da liberdade bordei o maior amor da minha vida. E eu tenho que ficar aqui encerrada? Queria ter asas cristalinas para voar em busca de você.”

Conforme análise de especialistas, a peça teatral aborda a opressão sofrida pela mulher e a luta contra o patriarcado, o autoritarismo e a moral religiosa. E talvez, ouso dizer, tenha sido a saída encontrada pelo escritor e dramaturgo para abordar também a opressão vivida por gays, em uma época em que a pauta LGBT ainda estava longe de ser consolidada. Menos de 10 anos depois da primeira montagem desse espetáculo teatral, em que a protagonista é executada, Lorca enfrenta o mesmo destino.

A luta contra o patriarcado, o autoritarismo e a moral religiosa ainda é necessária para integrantes da comunidade LGBT (e também para mulheres) em pleno século 21.   

Até quando?

 

 

Fotos: Reprodução/Internet

 

 

Voos Literários

Quem duvida das ameaças feitas a Jean Wyllys?

Flávia Cunha
29 de janeiro de 2019

Quando saiu a notícia na Folha de São Paulo de que o deputado federal Jean Wyllys, do PSOL, havia desistido de assumir o terceiro mandato e decidido por um auto-exílio em local ignorado no Exterior, meu coração se encheu de tristeza. Minha reação foi de alteridade. Tentar me colocar no lugar de um parlamentar de esquerda, assumidamente gay, que enfrentava há anos hostilidade e ameaças pesadas. Entre meus amigos, multiplicavam-se os comentários de apoio, perplexidade e compaixão.

Mas aí comecei a ver as reações de quem não concorda com Jean. “Não vai fazer falta”. “Já vai tarde.” O escárnio vinha com justificativas ideológicas ou com críticas – sem embasamento – à sua atuação como deputado. Mas sabemos que, em grande parte das vezes, o que existe mesmo é homofobia. Jean afronta os conservadores apenas por existir, como em geral ocorre com a população LGBT no Brasil. Não ser heterossexual  parece ser uma ofensa aos cidadãos de bem, que não se constrangem em sair por aí destilando veneno e ódio supostamente em defesa da família, dos bons costumes e da deturpação de preceitos religiosos.

Pessoalmente, considerei o pior comentário o de que as ameaças relatadas por Jean “deviam ser mentira”, mesmo após a execução da vereadora Marielle Franco, do mesmo partido, em 2018 (Marielle, presente!). Me parece que nada disso importa para quem tem o coração endurecido pelo preconceito.

Recorro ao próprio Jean Wyllys, no livro Tempo Bom, Tempo Ruim, de 2014, para tentar entender as causas desse cenário devastador que enfrentamos atualmente.

No capítulo Oriente-se, Rapaz, o agora ex-deputado relata o momento em que abriu o jogo sobre sua sexualidade com a mãe, aos 15 anos, e a reação dela, de ter medo de que o futuro do filho não fosse feliz:

Ela não estava totalmente enganada: num país preconceituoso como o nosso, há uma dificuldade maior para os homossexuais alcançarem a felicidade; todavia, parece-me mais difícil viver na vergonha, fechado no armário. À medida que nos assumimos gays, colocamos em questão a heteronormatividade vigente. Passamos da vergonha para o orgulho, ainda que não definitivamente: há quem se encontre no início desse processo, há quem esteja mais avançado, mas a verdade é que essa passagem nunca se dá por completo.  Expliquei à minha mãe que eu era um homem honrado e que ainda lhe daria muito orgulho, independentemente de minha orientação sexual. Depois dessa conversa, a confiança que ela me tinha aumentou, a ponto de transferir para mim a responsabilidade que deveria ser de meu pai — a função de ‘homem da família’.”

Cabe destacar que Jean Wyllys, oriundo de uma família pobre, estudou e chegou ao nível da pós-graduação, conquista alcançada por uma parcela ínfima da população brasileira. Se fosse heterossexual, certamente seria um exemplo de vencedor para a tradicional família brasileira. Mas como foge da norma vigente, é visto como uma ameaça e, por isso, enfrenta tantas críticas nas redes sociais.

Reproduzo na íntegra o capítulo Cultural Digital do Ódio, por considerar que esclarece muito o que acontece atualmente com o próprio autor do livro:

É chocante imaginar que por trás de sites, blogs, perfis de redes sociais e comentários que disseminam o ódio, a intolerância e o desrespeito, pode haver homens e mulheres que se apresentam como ‘gente de bem’ no espaço público, mas que escondem seus esqueletos no armário. Entretanto, o espaço virtual é feito por pessoas; é de se esperar que elas levem para lá também o que têm de pior. Sim, pois racismo e homofobia são manifestações daquilo que alguns homens e mulheres têm de pior: a vontade de negar a humanidade do outro, o desejo de exterminar o diferente. É preciso estar atento aos conteúdos veiculados na internet, porque o que parece uma brincadeira inócua pode ser a base ideológica para um ato criminoso, como tantos que temos visto por aí.

A afirmação, por parte dos homofóbicos, de que a ofensa aos LGBT corresponde ao exercício de sua liberdade de expressão, garantida como um direito, é uma falácia das mais perigosas que há. Viver em sociedade significa abrir mão daquela parte da liberdade individual que ameaça o bem-estar coletivo, ou, dito de maneira simples, há um limite para a liberdade individual e para a liberdade de expressão, que é a preservação do social e da convivência livre entre pessoas diferentes. Ofender uma pessoa por conta de sua orientação sexual ou gênero é ofender a dignidade da pessoa humana, cuja preservação está prevista na Declaração Universal dos Direitos Humanos, reconhecida pelo Brasil. Claro que, individualmente e num espaço reservado, uma pessoa pode alimentar seus ódios, se assim desejar; porém, ela não pode expressá-los publicamente, ou, se quiser fazê-lo, terá de pagar um preço por isso.”

Espero que Jean Wyllys tenha forças para seguir adiante, mesmo com tantas ameaças a sua vida e a de sua família. “Se fere qualquer existência, serei resistência”, diz uma frase propagada nas redes sociais. É uma comprovação de que a Internet pode ser usada para disseminar amor e nos proteger do ódio. Certamente, não estou sozinha na luta por uma sociedade com menos violência e discriminação, o que me conforta nesses dias difíceis para quem defende os direitos humanos e a igualdade.

Foto:  Cleia Viana/Câmara dos Deputados

 

 

 

Voos Literários

A necessária criminalização da homofobia

Flávia Cunha
20 de novembro de 2018

Vivemos tempos difíceis no Brasil para os sonhadores e para aqueles que desejam viver de acordo com seus próprios anseios. Em nome de uma suposta liberdade de expressão, cada vez saí mais do armário o preconceito e o ódio contra a comunidade LGBTQ+.

E é por isso que aguardo com grande expectativa o julgamento no STF de duas ações pedindo a criminalização de atos de homofobia. Há quem diga que é “mimimi” (a expressão mais usada por pessoas sem empatia). Há também aqueles que consideram que o assunto é “menor” perante as dificuldades financeiras e sociais enfrentadas pelo povo brasileiro.

Porém, para termos uma sociedade mais humana e menos violenta, é preciso, sim, que homofóbicos entendam que estão errados. Compreendam que não existe “moral e bons costumes” que justifiquem bater em um casal do mesmo sexo que esteja se beijando em público, por exemplo.

Uma pesquisa recente aponta a morte no Brasil, em 2017, de 445 lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais por crimes motivados por homofobia. E isso é muito grave e passa pelo preconceito pelo diferente e o medo de alguém da família “virar” gay.

Um livro muito sensível sobre o assunto é Um Milhão de Finais Felizes, de Vitor Martins. Apesar do gênero ser young-adult (para jovens adultos), a história de Jonas, o pós-adolescente que enfrenta o preconceito da família religiosa e encontra o amparo dos amigos, vai agradar a todos que tiverem alteridade e gostarem de um enredo que mescla momentos tristes com doses de humor.

Nos agradecimentos, o autor dirige-se diretamente aos leitores, no trecho que reproduzo a seguir, na esperança de que cada vez mais pessoas desenvolvam o entendimento sobre quem é diferente:

Eu espero que, de alguma forma, a história de Jonas tenha sido especial para você. Principalmente se você se identificou com a jornada do garoto que, infelizmente, não recebe amor e aceitação dentro da sua própria casa. Se você está passando por isso espero que Um milhão de finais felizes tenha te ajudado a acreditar que, em breve, vai ficar tudo bem. Dias ruins, infelizmente, vão existir, mas você não está sozinho. Nós somos uma família.

E se você nunca passou por nada parecido, mas quer ajudar, busque casas de acolhimento LGBTQ+ no seu estado e doe como puder. Doe dinheiro, tempo ou compartilhe informações nas redes sociais. O Brasil é um país cruel demais com quem nasceu diferente, mas, juntos, nós temos muita força.

E os finais felizes que a gente tanto quer são apenas o começo.”

O primeiro livro de Vitor Martins, Quinze Dias, também trata sobre aceitação e sexualidade. Um assunto que pode ser incômodo para os mais conservadores, mas que o autor aborda com leveza e lirismo.

  • Esse texto é uma homenagem à Parada Livre de Porto Alegre (RS), realizada no dia 18 de novembro, sem apoio do poder público e com forte teor político.

Foto de capa:  Dani Montano

Fotos da Parada Livre POA: Dani Montano e Instagram do evento

Samir Oliveira

As paradas LGBTs ecoarão resistência

Samir Oliveira
1 de novembro de 2018

Um sentimento muito forte de medo tomou conta de boa parte da população LGBT após a vitória de Jair Bolsonaro. Não é para menos. Os ódios mobilizados pelo presidente eleito fizeram desaguar o esgoto da internet. Não foram poucos os comentários celebrando a abertura de uma temporada de caça a homossexuais, pregando a morte de bichas ou até mesmo a criação de grupos de extermínio.

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Eu estou com medo. Meus amigos estão com medo. Especialmente aqueles que, assim como eu, integram a sopa de letras da comunidade LGBT

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As horas seguintes ao resultado das urnas foram de pavor. Os foguetes nas ruas pareciam comemorar o nosso fim. Em muitos lugares se ouviu barulho de tiros. Abriram a Caixa de Pandora e agora as manifestações de ódio correm soltas à luz do dia.
É impossível não ficar com medo. Mais do que impossível, é imprudente. O medo é um instinto natural de preservação. Não temos que lutar contra o medo. Temos que lutar apesar do medo. Ainda estamos elaborando o luto de uma eleição devastadora, em que o autoritarismo toma de assalto a democracia pela porta da frente, sem derrubar um prego.

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Precisamos entender como foi que chegamos até aqui. Este é o primeiro passo.

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Em seguida precisamos construir redes de acolhimento e espaços seguros para reuniões, encontros e diálogos. A organização da resistência passa também pela organização de cada um de nós, seja em partidos, em entidades da sociedade civil, em associações, em coletivos movidos por causas específicas. Cada espaço conta. Cada pessoa conta.

Ninguém pode ficar para trás. Este é o segundo passo. O terceiro passo é a nossa ação nas ruas. É lá que se dará o enfrentamento mais duro à política de Bolsonaro. É nas ruas que combateremos o ódio. E a comunidade LGBT tem seus próprios métodos para isso, sendo as paradas do orgulho a principal demonstração de força, de amor, de combatividade e de resistência diante daqueles que desejam a nossa volta ao armário.

O Rio Grande do Sul vai ter uma agenda intensa de paradas LGBTs neste final de 2018. A principal delas sem dúvida é a 22ª Parada Livre de Porto Alegre, que ocorre no dia 18 de novembro, na Redenção. Tradicionalmente o evento leva pelo menos 30 mil pessoas todos os anos para as ruas. O lema desta edição não poderia ser mais crucial: Resistir para não morrer.

Teremos pelo menos mais oito paradas até o final do ano. A maioria delas já possui data definida: Cachoeirinha (04/11), Sapucaia (11/11), Santa Maria (18/11), Porto Alegre (18/11), Caxias do Sul (25/11), Esteio (02/12), Pelotas e Rio Grande. A comunidade LGBT tem estado, junto com as mulheres, na linha de frente da resistência. Para nós, é uma questão de sobrevivência. Cada uma destas paradas deve ser um grito potente contra o projeto autoritário e intolerante de Bolsonaro. Estamos apenas começando. Onde querem armário, demonstraremos orgulho!

Samir Oliveira

Um agradecimento aos intolerantes

Samir Oliveira
13 de setembro de 2018

É isso mesmo, vocês não estão lendo errado. Hoje, nesta coluna, eu quero agradecer a todos os intolerantes de plantão, especialmente ao candidato à presidência Jair Messias Bolsonaro, do PSL. Graças a ele a Companhia das Letras vai reeditar um livro que há anos estava esgotado no Brasil. Trata-se de Aparelho sexual e cia. O ataque que o candidato recebeu é inaceitável, porque coloca a disputa política no nível mais primitivo de enfrentamento. Bolsonaro e seus apoiadores estão aprendendo da pior maneira possível que adotar a violência como forma de fazer política é uma via de mão dupla. Este episódio, que rebaixa ainda mais a política brasileira – quando pensamos que isso não seria possível -, não muda a forma como o candidato do PSL vê o mundo, o que diz ou pensa. Pelo contrário: mesmo após ter sito vítima de violência, Bolsonaro segue incentivando o ódio, posando para fotos no leito do hospital fazendo referência a armamentos e tiros.

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Bolsonaro é um mentiroso contumaz
Mente sem sentir
Mente sem corar
Mente em rede nacional a quem quiser ouvir

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E o desespero de um Brasil em pedaços leva muita a gente a lhe dar ouvidos. Uma mentira recente foi dita em entrevista ao Jornal Nacional, quando apresentou o livro Aparelho sexual e cia como parte do suposto “kit gay” que seria distribuído nas escolas durante o governo de Dilma Rousseff. Esta mentira tem tantos lados que não sei nem por onde começar a desmentí-la.

O fato é que a menção ao livro resgatou sua popularidade, colocou a autora nos holofotes e fez com que a Companhia das Letras decidisse reeditá-lo. Por isso eu digo: obrigado, Bolsonaro. Desta vez, suas mentiras ao menos tiveram alguma utilidade.

O livro foi escrito pela francesa Helene Bruller e lançado em 2007 no Brasil. É uma obra publicada em mais de dez idiomas e com mais de 1,5 milhão de exemplares vendidos no mundo inteiro. A própria autora já declarou, em entrevista à Folha de São Paulo, que o pequeno Jair teria adorado o livro em sua juventudeMas o jovem Jair não leu este livro. E o adulto Bolsonaro deu um tiro no próprio pé ao espalhar mentiras a respeito da obra.

O  Ministério da Educação vem reafirmando, desde 2013, que nunca colocou este livro nas escolas. Aliás, o projeto de combate à homofobia nunca esteve voltado a crianças de seis anos de idade, como mente Bolsonaro. E, lamentavelmente, não saiu do papel porque Dilma Rousseff cedeu às pressões da bancada fundamentalista no Congresso. Em uma declaração profundamente infeliz, a presidente disse, à época,  que não cabe ao governo fazer “propaganda de opção sexual”.

Enquanto a velha esquerda se acanha e a nova direita avança, seguimos sem uma política nacional de combate à LGBTfobia nas escolas. Seguimos sendo o país que mais mata LGBTs no mundo. Seguimos expulsando jovens trans das salas de aula e empurrando essa população para as esquinas da noite. Seguimos apostando em muros ao invés de erguer pontes. Menos mal que, agora, os pais verdadeiramente preocupados com a educação sexual de seus filhos poderão comprar Aparelho sexual e cia na livraria mais próxima. Algo me diz que será um campeão de vendas. Um recado silencioso e potente de um Brasil que ainda resiste, apesar de tudo.

Samir Oliveira

O candidato anti-LGBT perdeu na Costa Rica, mas suas ideias cresceram

Samir Oliveira
5 de abril de 2018
Foto: Fabricio Alvarado | Arquivo Pessoal

A Costa Rica acaba de sair do segundo turno de suas eleições presidenciais com um resultado que, por um lado, representa um alívio a todos os defensores dos direitos humanos, mas por outro acende um sinal vermelho de alerta permanente.

O candidato reacionário e anti-LGBT Fabricio Alvarado foi derrotado, mas suas ideias ganharam peso.

No pleito do dia 1 de abril o cantor evangélico e apresentador de TV Fabricio Alvarado ficou com 39,2% dos votos, sendo derrotado pelo jornalista e escritor Carlos Alvarado, que obteve 60,8% de apoio popular. A virada surpreendeu o país, invertendo o resultado do primeiro turno e contrariando a previsão das pesquisas de opinião, que demonstravam um cenário extremamente polarizado.

A Costa Rica é reconhecida como a democracia mais sólida da América Central. Talvez seja mais conhecida ainda por ser um dos poucos países do mundo sem Forças Armadas. Mas estas eleições trouxeram à tona outra faceta do país: o conservadorismo brutal de sua sociedade em temas como sexualidade e direitos humanos.

Estas duas questões transformaram-se no eixo do debate eleitoral. Apenas um mês antes do primeiro turno, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) determinou que a Costa Rica legalizasse o casamento civil igualitário. A decisão posicionou o assunto no centro de todas as campanhas. Enquanto o governista Carlos Alvarado, de centro-esquerda, celebrou a sentença, o oposicionista de direita afirmou que um eventual governo seu não respeitaria o julgamento e ainda retiraria o país deste importante organismo multilateral.

Fabricio Alvarado mobilizou os piores sentimentos do país com sua candidatura. Sob o pretexto de defender uma suposta “família natural”, foi totalmente contrário a qualquer concessão de direitos à população LGBT. Garantiu que sua primeira medida no governo seria a revogação de um decreto que protege servidores federais e usuários dos serviços públicos contra a discriminação.

Os pronunciamentos do presidenciável da direita beiraram as raias do crime ao defender a chamada “cura gay”, uma invenção reacionária do fanatismo neopentecostal.

“Estou de acordo em que as pessoas que queiram sair da homossexualidade devam ter um espaço onde sejam atendidas e restauradas”, declarou. Isso mesmo, o termo exato que ele utilizou foi este: restauração.

Fabricio Alvarado é uma espécie de Marco Feliciano costarriquenho. Ele chegou a dizer que a homossexualidade é uma invenção do Diabo. E o pior é que muita gente foi seduzida por sua retórica preconceituosa. “Quando o inimigo (o Diabo) consegue confundir sexualmente uma pessoa e desviar sua identidade sexual, o que está fazendo é destruir sua identidade em Deus”, declarou.

Felizmente o jogo virou no segundo turno e Carlos Alvarado viu sua votação aumentar de 21,7% para 60,8%. O candidato do governista Partido Ação Cidadã (PAC) representa a continuidade de um projeto de centro-esquerda desgastado e envolvido em denúncias de corrupção. Não faço aqui uma defesa de sua plataforma, que não empolga e definitivamente não representa qualquer novidade. Mas é preciso dizer que sua vitória foi uma vitória contra a homofobia e o preconceito. A derrota de Fabricio Alvarado simbolizou um levante da Costa Rica contra o crescimento da intolerância, tanto é que o índice de eleitores que compareceram às urnas aumentou do primeiro para o segundo turno.

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Mas o alerta que faço no título não é em vão

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Apesar de ter sido derrotado, Fabricio Alvarado garantiu uma sólida base social no país. Entrou na eleição como o único deputado de um partido pequeno, o Partido da Restauração Nacional (PRN), e saiu do pleito como o líder da segunda maior bancada no Congresso, com 14 parlamentares -à frente inclusive da bancada governista, que elegeu 10 deputados.

A vitória da homofobia e do preconceito no primeiro turno acendeu o sinal de alerta e a sociedade costarriquenha soube reagir à altura. Mas o crescimento estrondoso do PRN demonstra que o fundamentalismo religioso está a poucos passos do poder. E eles não vão desistir, por isso nós devemos seguir resistindo.