OUÇA Bendita Sois Vós #24 Criminalização da homofobia e transfobia
Geórgia Santos
22 de junho de 2019
No segundo episódio da segunda temporada do Bendita Sois Vós, o tema é a criminalização da homofobia e da transfobia pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Afinal, nem só de Vazajato vive o Brasil – embora novas revelações sejam publicadas pelo The Intercept Brasil a cada semana.
Por oito votos a três, os ministros do STFconsideraram que atos preconceituosos contra homossexuais e transexuais devem ser enquadrados no crime de racismo. A pauta vinha sendo debatida desde fevereiro deste ano, quando o relator, Ministro Celso de Mello, deu parecer favorável à causa. Os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol discutem os méritos e controvérsiasda questão que, inclusive, não foi bem recebida por Jair Bolsonaro. O presidente do Brasil acredita que é preciso um ministro evangélico na corte.
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Além do debate, um teste do Buzzfeed para medir o nosso conhecimento sobre novo entendimento da lei
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No quadro Sobre Nós, Raquel Grabauska traz uma adaptação do texto Garopaba Mon Amour, de Caio Fernando Abreu. Um retrato da violência decorrente do pensamento torpe e moralizador que insiste em perseguir homossexuais no Brasil e no mundo.
Muitos intelectuais do século 19 e 20 viveram no armário. Alguns do século 21 ainda vivem, com receio de expor sua sexualidade em uma sociedade em parte conservadora, apesar dos inegáveis avanços da pauta LGBT, como a decisão do STF que criminaliza a homofobia e a transfobia.
Ainda existem vozes contrárias, como a de líderes religiosos que evocam a “liberdade de expressão” para continuar pregando que a homossexualidade é pecado. Isso seguirá liberado, apesar da decisão do Supremo. O que está proibido é incitar a violência contra a comunidade LGBT, pelo simples fato de existirem.
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Lamentavelmente, os crimes de ódio contra gays ocorrem há muito tempo e uma dessas possíveis vítimas é o escritor espanhol Federico García Lorca
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Digo possível porque sua execução durante a Guerra Civil espanhola é cercada de controvérsias. Investigações mais recentes apontam que talvez não tenham sido os fascistas os responsáveis pela morte de Lorca, mas que poderia se tratar de uma briga familiar em torno de terras. De qualquer forma, seja lá quem foram seus executores, o que pairou no ar na época de sua morte (1936) e segue como um dos pontos de convergência das teorias sobre os motivos de seu assassinato é a sua homossexualidade, acima do fato de sua visão política de esquerda e antifascista.
Lorca, apesar de nunca ter assumido publicamente sua orientação sexual, não teve um casamento de fachada com uma mulher, como era costume na época. O fato de circular pela sociedade espanhola sempre acompanhado de homens também provocava desconforto. Mesmo perante partidários de esquerda, Lorca enfrentava dificuldades em relação à sua sexualidade. Relatos apontam que Luis Buñuel (diretor do antológico Cão Andaluz) preferiu afastar Salvador Dalí da influência “negativa” de Lorca, já que os dois tinham uma relação muito próxima.
Salvador Dalí e Federico García Lorca, 1927 / Reprodução: Internet
Mas antes de Buñuel “roubar” Dalí da convivência de Lorca, houve pelo menos um registro de um trabalho artístico envolvendo o escritor e o pintor. Em 1927, Dalí foi o responsável pela concepção cênica e figurinos da primeira montagem do espetáculo teatral Mariana Pineda, um dos poucos trabalhos declaradamente políticos de Lorca. A peça teatral é baseada na vida de Mariana de Pineda Muñoz, figura lendária da região de Granada. É até hoje, na região, um símbolo de liberdade e resistência à opressão. No texto do dramaturgo, a história da heroína é romantizada, ao mostrar o amor frustrado da protagonista por um revolucionário foragido e a justificativa para ordenar sua execução é por ter guardado uma bandeira:
(Exaltada e protestando ferozmente). Não pode ser! Covardes! Quem ordena tais vilanias na Espanha? Que crime cometi? Porque me matar? Onde está a razão da justiça? Na bandeira da liberdade bordei o maior amor da minha vida. E eu tenho que ficar aqui encerrada? Queria ter asas cristalinas para voar em busca de você.”
Conforme análise de especialistas, a peça teatral aborda a opressão sofrida pela mulher e a luta contra o patriarcado, o autoritarismo e a moral religiosa. E talvez, ouso dizer, tenha sido a saída encontrada pelo escritor e dramaturgo para abordar também a opressão vivida por gays, em uma época em que a pauta LGBT ainda estava longe de ser consolidada. Menos de 10 anos depois da primeira montagem desse espetáculo teatral, em que a protagonista é executada, Lorca enfrenta o mesmo destino.
A luta contra o patriarcado, o autoritarismo e a moral religiosa ainda é necessária para integrantes da comunidade LGBT (e também para mulheres) em pleno século 21.
Não é qualquer crime, é crime de ódio – e ele só aumenta no Brasil
Samir Oliveira
25 de janeiro de 2018
Todos os anos o Grupo Gay da Bahia (GGB) monitora o assassinato de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais no Brasil. É o mais próximo que existe de uma estatística oficial, ainda assim é algo bastante precário e totalmente subnotificado, pois o levantamento se baseia em notícias nos meios de comunicação. Ainda assim, os dados são assustadores: 2017 registrou um aumento de 30% nos homicídios de LGBTs em relação a 2016. Foram 445 mortes no ano passado e 343 no ano retrasado.
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A cada 19 horas um LGBT é assassinado ou se suicida no Brasil. A impunidade é a regra nestes casos, pois menos de 10% das ocorrências geraram abertura de processo e punição dos assassinos
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Estes dados já são assombrosos por si só. Tão devastadora quanto a realidade é a reação das pessoas com ela. Contrariando todas as indicações de cuidado com minha saúde mental e meu bem estar emocional, eu perdi um tempo considerável lendo caixas de comentários de notícias e postagens que repercutiram o levantamento do Grupo Gay da Bahia. A constatação principal que faço me surpreendeu, talvez porque eu esteja acostumado ao conforto da minha própria bolha: a maioria das pessoas não sabe o que é um crime de ódio.
Ou não sabem, ou não querem mesmo entender. O que observei foi uma reação emocional de pessoas cisgêneras e heterossexuais baseada na sensação de insegurança que vivenciam todos os dias. Este sentimento deu voz a uma resposta bastante absurda diante das informações reveladas pelo GGB. Algo como: “Milhares de pessoas morrem todos os dias” ou “Não importa se é gay ou não, muita gente é assassinada e nem por isso tem a visibilidade que os gays tem”. As versões mais canalhas simplesmente questionam: “E os heterossexuais assassinados?”.
Há uma confusão, intencional ou não, a respeito do conceito de crime de ódio. Como se os dados trazidos pelo Grupo Gay da Bahia se referissem a qualquer pessoa LGBT morta no país, e não somente àquelas que foram vítimas de homofobia, transfobia ou bifobia. É evidente que a violência no Brasil chega a níveis dramáticos e atinge todo mundo. Mas pessoas heterossexuais não são assassinadas por serem heterossexuais. Não sofrem preconceito devido à sua orientação sexual. Assim como quem é cisgênero não é vítima de transfobia. As mortes destas pessoas ocorrem pelos mais diversos motivos, que não envolvem ódio contra sua orientação sexual ou identidade de gênero. Motivos estes que também vitimam a população LGBT, aliás: latrocínios, mortes relacionadas ao tráfico de drogas etc.
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Os assassinatos de LGBTs monitorados pelo GGB não demonstram crimes comuns, mas crimes de ódio – e eles só vêm aumentando no Brasil
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Sensibilizar-se em relação a esta realidade não vai retirar de ninguém o direito à segurança. É preciso reconhecer que alguns grupos estão vulneráveis a tipos de violência que não atingem a maioria da população. Isso não significa, como incrivelmente muita gente pensa, que será criada uma casta privilegiada de cidadãos LGBTs, com direitos extraordinários ou acesso à segurança pública em detrimento dos pobres heterossexuais e cisgêneros entregues à própria sorte.
O que se reivindica são políticas públicas para uma realidade concreta: o combate ao preconceito contra LGBTs. Não é algo abstrato. O preconceito mata cada vez mais, como demonstra o relatório do Grupo Gay da Bahia. O enfrentamento a ele não se faz apenas com medidas de segurança pública ou com a criminalização de condutas ofensivas, mas especialmente com um trabalho preventivo nas escolas. Por isso é tão importante que se fale em gênero e sexualidade nestes ambientes, consolidando uma cultura de acolhimento e compreensão sobre a diversidade entre crianças e adolescentes. Para que o aluno que chama o coleguinha de viado hoje não se torne o assassino de amanhã.