Samir Oliveira

Um ano depois: LGBTs vão do medo à luta para enfrentar Bolsonaro

Samir Oliveira
20 de novembro de 2019

Os dias que se seguiram à vitória de Jair Bolsonaro no segundo turno das eleições de 2018 foram marcados por um sentimento de medo profundo entre a comunidade LGBT. Era como se, de repente, nossas vidas estivessem ainda mais em risco. Como se passássemos a viver sob o fio de uma espada, pronta para decepar nossos sonhos, nossas conquistas e nossas possibilidades de ser e amar.

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Como pode uma política que agride nossa existência receber o voto entusiasmado de quem diz nos amar?

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Um ano já se passou desde então. Eu senti esse medo. Meus amigos sentiram este medo. Foi impossível não se deixar tomar por este sentimento. Ainda mais quando muitos de nós percebemos, como foi o meu caso, que este projeto violento de Brasil foi eleito com o apoio de nossos familiares, amigos e conhecidos. Como pode uma política que agride nossa existência receber o voto entusiasmado de quem diz nos amar? O Brasil ainda ficará devendo esta resposta a milhões de LGBTs por um bom tempo.

O sentimento imediato era de que os 57 milhões de brasileiros que votaram em Bolsonaro não toleravam nossa existência. Como viver em um país que está disposto a patrocinar nosso extermínio? Conheço gente que não conseguiu suportar. Pessoas que partiram antes das eleições e não pretendem mais voltar. E pessoas que ainda estão pensando em se mandar de vez.

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Assim como percebi medo e horror, também vi brotar um sentimento de resistência muito grande entre LGBTs
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Mais do que nunca, nossa estética virou uma forma de afrontar o sistema. As cores do arco-íris, que tanta repulsa causam à base de apoio mais dura do bolsonarismo, ostentam nosso orgulho. As paradas LGBTs continuam levando multidões às ruas, demonstrando ao mundo que não iremos voltar ao armário. A criminalização da LGBTfobia pelo STF foi uma conquista civilizatória em tempos de Bolsonaro. A decisão do Supremo de equiparar LGBTfobia ao crime de racismo é um espinho na garganta do bolsonarismo. Não é pouca coisa que ela tenha ocorrido justamente durante o reinado de ódio que se instalou no país.

Também causa indigestão a esta gente o fato de que um casal gay se encontra no epicentro da oposição ao governo. O jornalista Glenn Greenwald e o deputado federal David Miranda (PSOL-RJ) viram suas vidas serem reviradas do avesso pela segunda vez. A primeira aconteceu quando revelaram ao mundo a rede suja de espionagem dos Estados Unidos. Agora Glenn, com a coragem característica dos bons jornalistas, desnudou a tragédia farsesca de um juiz-acusador e de um procurador apaixonado por si mesmo. E com isso atraiu para si a fúria do bolsonarismo e os insultos dignos de quinta série associados à sua sexualidade e à sua família. A disputa chegou ao esgoto quando até mesmo sua mãe, com câncer em estágio terminal, e seus filhos foram atacados.

A conjuntura política é grave. Não podemos contar apenas com nosso voluntarismo diante da corrosão democrática que o país vive. O melhor que temos a fazer é nos organizarmos para enfrentar este período histórico. Nossa resistência individual precisa encontrar na luta coletiva um elo que dê sentido à revolta e à mobilização por transformações estruturais no Brasil. 

Bolsonaro nada mais é do que a face mais desumana de um sistema podre que recorreu ao medo para rebaixar ainda mais as condições de vida da classe trabalhadora. O recrudescimento da opressão contra a população LGBT está inserido neste projeto nefasto de país, em que interessa ao capitalismo que nós sejamos considerados cidadãos de segunda categoria, para que possamos ser mais facilmente explorados. Por isso, nossa resistência precisa andar lado a lado de uma luta que também seja antissistêmica, encontrando sentido nas trincheiras ao lado das mulheres, da negritude, do sindicalismo, dos ambientalistas, dos estudantes, e de todas e todos que estejam dispostos a apontar um novo rumo para o país.

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O medo experimentado após o resultado eleitoral vem, ao longo deste ano que insiste em não terminar, cedendo lugar à certeza de que não estamos sozinhos
Mas apenas nossos aliados de sempre não bastam
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Precisamos conduzir um esforço de diálogo com setores da base bolsonarista que não compactuam com ideias fascistas – base essa que vem sendo corroída desde a posse do presidente. Bolsonaro não seguirá seu mandato agarrado ao que existe de mais alucinado, radical e intransigente em sua base de apoio – e a criação de seu novo partido indica essa tentativa de organizar com mais solidez este setor. Suas declarações absurdas e as palhaçadas cotidianas servem para manter um núcleo fiel energizado, mas afastam franjas importantes do bolsonarismo que não estão dispostas a ir para o vale tudo em nome de uma cruzada ideológica e antidemocrática da extrema-direita.

Essas pessoas precisam estar do nosso lado na luta pelos direitos sociais, contra o autoritarismo e em defesa das chamadas “minorias”. Muitas pesquisas já demonstram evidências fartas de que nem todo mundo que votou em Bolsonaro é racista, misógino e LGBTfóbico. Não podemos desprezar este dado, pois não iremos virar este jogo apenas com nossas próprias forças. Temos que energizar nossas bases e falar para os nossos também, mas precisamos ir além, encontrando em nossa organização coletiva um canal para ampliarmos nossas vozes e furarmos as bolhas.

Foto capa: Mídia Ninja

Samir Oliveira

Parada Livre de Porto Alegre: um berro contra os retrocessos

Samir Oliveira
2 de novembro de 2017
Foto: Fernanda Piccolo

No dia 26 de novembro Porto Alegre realiza a XXI edição da Parada Livre. Um evento de massas, que reúne pelo menos 35 mil pessoas todos os anos na Redenção em uma verdadeira festa política de luta por direitos e celebração da diversidade.

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O tema deste ano não poderia ser mais adequado:

“Berro contra os retrocessos”

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É com esta combatividade que os LGBTs irão às ruas neste dia. O momento político do país exige uma resposta frontal ao conservadorismo e uma reação afrontosa às tentativas medievais de censurar expressões de sexualidade e identidade.

A Parada Livre representa essa resistência construída democraticamente por uma série de coletivos e organizações. É verdade que é preciso que ela seja cada vez mais política, no sentido de incidir sobre a estrutura política que nega nossos direitos, abafa nossa liberdade e espanca nossos corpos. Esse processo está permanentemente em curso, com as linguagens e estéticas próprias que a população LGBT domina para fazer política. Afinal, a própria existência da Parada é um ato político. É extremamente político que dezenas de milhares de corpos LGBTs saiam às ruas juntos para expressar seus afetos e exercer a plena liberdade de ser quem são.

A Parada Livre deste ano será mais uma etapa de um novo ciclo de lutas que a população LGBT vem travando no Brasil nos últimos meses. Os ataques de setores proto-fascistas da sociedade exigem uma resposta forte e impulsionam uma articulação entre todo o movimento.

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Ataques constantes

A representação maior deste novo ciclo foi a reação ao fechamento da exposição QueerMuseu em Porto Alegre. O episódio fortaleceu grupos de extrema-direita que destilam ódio contra qualquer manifestação de diversidade. Iniciou-se uma cruzada medieval contra a arte e as expressões de sexualidade e gênero no Brasil. O recuo vergonhoso do Santander diante destes grupos violentos catalisou esse sentimento antidiversidade.

A reação do movimento LGBT foi imediata e forte. Mais de duas mil pessoas se reuniram em frente ao Santander em plena quarta-feira para defender a liberdade artística. A vanguarda do movimento se uniu à categoria artística num duro enfrentamento aos grupos de ódio – especialmente ao MBL e seus satélites, que compareceram presencialmente no protesto e provocaram os ativistas.

A decisão da Justiça, em primeira instância, de autorizar a chamada “cura gay” representa um retrocesso de pelo menos 30 anos no que diz respeito ao consenso médico-psiquiátrico, científico e psicológico de que homossexualidade não é uma doença. Também esse episódio gerou uma onda de lutas muito forte. Em Porto Alegre, milhares foram às ruas para lutar contra este absurdo.

A população LGBT carrega consigo a responsabilidade de estar no enfrentamento diário à intolerância e ao fascismo, pois são seus corpos e suas expressões de afeto, identidade e sexualidade que estão sendo atacadas.

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O Brasil é o país que mais mata LGBTs no mundo. Só neste ano foram 169 transexuais assassinados e assassinadas. A população de travestis e transexuais é a mais vulnerável nesse contexto de extermínio

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Fortalecer a Parada Livre é fortalecer essa resistência tão necessária nos dias de hoje. É lutar por vidas humanas que estão em risco por causa do preconceito e da intolerância. Por isso é tão criminoso que a prefeitura de Porto Alegre tenha suspendido o apoio que sempre deu ao evento. O movimento não se intimidou diante da postura autoritária de Nelson Marchezan Júnior e batalha duramente por financiamento, contando com a parceria de casas noturnas e bares LGBTs e com a criatividade militante na venda de bottons, camisetas e canecas – que podem ser compradas através da loja virtual http://www.lojaafirme.com.br.

A Parada Livre deste ano não será menor. Pelo contrário, expressará com muita força o verdadeiro berro contra os retrocessos que a população LGBT dará na Redenção em 26 de novembro. Será fabuloso!

Foto: Fernanda Piccolo