BSV Especial Coronavírus #22 Flordelis, porrada na boca e Fahrenheit 451 à la Paulo Guedes
Geórgia Santos
28 de agosto de 2020
Apesar de a pandemia continuar e o número de mortes aumentar de forma constante, o presidente Jair Bolsonaro precisa dar explicações sobre os cheques que a primeira-dama recebeu de Fabricio Queiroz. Um repórter do jornal O Globo perguntou porque Michele Bolsonaro recebeu 89 mil do ex-assessor da família, mas o presidente não só não respondeu como não gostou. Disse que a vontade era encher a boca do jornalista de porrada.
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Então, nos nos unimos ao coro que se formou nas redes sociais – e fora dela – e perguntamos: Presidente Jair Bolsonaro, porque a sua esposa, Michelle, recebeu R$ 89 mil de Fabricio Queiroz?
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Essa reação de Bolsonaro é o retrato da ignorância. Bolsonaro é o retrato da IGNORÂNCIA. E agora, como se não bastasse tudo o que ele faz, fica claro que ele quer que todos sejamos ignorantes. Afinal, a proposta de reforma tributária do governo federal prevê cobrança de contribuição para o setor de livros. Calcula-se uma alíquota de 12% para novo imposto.
Com a taxação, os livros ficarão cada vez menos acessíveis. Uma espécie de Fahrenheit 451 à la Paulo Guedes, que diz que só a elite consome livros no Brasil. Para falar sobre o tema, a entrevistada desta semana é Rita Lenira Bittencourt, doutora em literatura e professora de letras da UFRGS.
O episódio ainda fala sobre o caso escabroso que envolve a deputada Flordelis, suspeita de ser a mandante do assassinato do Pastor Anderson, que fora seu filho adotivo, depois genro e, por fim, marido. Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox e outros agregadores.
BSV Especial Coronavírus #20 O vírus do autoritarismo e a máscara de Bolsonaro
Geórgia Santos
12 de agosto de 2020
Enquanto a gente se protege desse vírus novo, o governo de Jair Bolsonaro infecta a democracia brasileira com um vírus antigo, o do autoritarismo.
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Na última semana, o Vós lançou um documentário em áudio chamado Democracia Infectada, justamente mostrando os traços do autoritarismo de um governo extremamente militarizado e centrado na figura de Bolsonaro
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Passados alguns dias, uma série de eventos corrobora o nosso argumento. Na edição deste mês da Revista Piauí, uma reportagem da jornalista Monica Gugliano reconstrói o dia em que Bolsonaro decidiu intervir no Supremo Tribunal Federal. No dia dois de agosto, reportagem de Raquel Lopes na Folha de São Paulo indica que o governo Bolsonaro tem uma média de uma denúncia de assédio moral por dia por parte de servidores. Eles relatam perseguição ideológica e toda uma sorte de constrangimentos.
Sem contar o dossiê do Ministério da Justiça e Segurança Pública sobre quase 600 servidores públicos ligados a movimentos antifascistas. Tudo isso associado a um comportamento antidemocrático de Jair Bolsonaro que, convenhamos, não é novidade.
Para discutir a desintegração da democracia brasileira, participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch. Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox e outros agregadores.
Em 2012, eu tive um sonho com Brilhante Ustra. Um pesadelo, melhor dizendo. Embora minha recordação é de que tenha sido um sonho breve, foi algo tão intenso que eu o recordava nitidamente na manhã seguinte, ao ponto de me sentir capaz de registrá-lo. Publiquei um texto sobre ele no meu antigo blog, que hoje está offline.
Era assim:
“Sonhei que estava em uma coletiva de imprensa na qual falaria o Brilhante Ustra. Pelo jeito, ele ia anunciar que estava livre de processos judiciais, comemorar a impunidade garantida a ele pela Lei da Anistia – ao menos, é essa a pauta que eu recordava ter recebido.
A sala era ampla e estava cheia de entusiastas, muitos militares, alguns poucos repórteres. Um deles, conhecido meu de pautas em Assembleias e Câmaras por aí, comentou comigo, em voz baixa:
– Pelo jeito, esse cara se escapou mesmo…
Respondi, em um cochicho, com um tom de ironia:
– Se escapou nada, nem imagina a matéria que eu vou fazer sobre essa palhaçada toda!
Ustra estava com uma expressão radiante, plena de confiança. Sorria. Recebia tapinhas nas costas. No centro da sala, uma imensa bandeira brasileira, de verde vivo e chamativo. Nos cantos do palco (pelo jeito, a coletiva seria em um palco), estranhos arranjos misturando rosas brancas, lírios e metralhadoras.
Eu, sentado a um canto, sinto nojo daquilo tudo.
Começa a tocar o hino nacional. Todos se erguem, em júbilo absoluto, para saudar a pátria mãe. É como a abertura de uma convenção partidária. Eu permaneço sentado, segurando o bloquinho e a caneta.
– O senhor precisa se levantar. É o hino – diz uma pessoa, cujo rosto eu não enxergo.
– Não vou me levantar – respondo eu, em voz branda, mas já prevendo incomodação.
– Levante e saúde o líder – disse outro, mais ríspido, me tocando no ombro.
Repeli sua mão. Outras pessoas começam a se aproximar. Meu colega jornalista (que estava de pé, mas sempre esteve de pé, então não era por adesão a eles que se erguia) tentava debilmente me defender.
– Não vou levantar. Não vou! – continuava eu, já cercado, levando os primeiros empurrões, enquanto o hino tocava mais alto, cada vez mais alto.
Acordo a instantes do linchamento.”
Hoje entendo que esse sonho foi profético. Para mim, nem é questão de acreditar nessas coisas ou não: basta comparar o que me restou de memória com o que vejo hoje, nos jornais impressos e nos sites de notícias, e a certeza é impossível de contornar.
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Lembro do arranjo de balas de grosso calibre que alguém achou por bem fazer para homenagear a Aliança Pelo Brasil, movimento fascista que finge desejar ser um simples partido político
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Lembro dos alucinados marchando e batendo continência para uma réplica da Estátua da Liberdade, em frente a uma loja da Havan. Lembro do parlamentar que transformou uma bandeira brasileira em terno, e de outro que vociferou frases horrendamente racistas em plenário, às vésperas do Dia da Consciência Negra. Lembro do filho do presidente dizendo que, se os opositores não ficassem quietinhos, podia rolar um novo AI-5 – um desaforo que deveria resultar em cassação de mandato, embora eu tenha a triste certeza de que não chegaremos nem perto disso.
Lembro da ideia simplória e estúpida de que basta espalhar colégios militares pelas principais cidades brasileiras para a educação dar um salto de qualidade. Do presidente propondo, aos sorrisos, que militares em operações de Garantia da Lei e da Ordem tenham carta branca para matar. Do governador do Rio de Janeiro metralhando favelas com helicópteros, comemorando a morte de um sequestrador com grotescos socos no ar. E lembro não só do então deputado federal (e agora presidente) evocando a memória de um torturador desumano para agredir Dilma Rousseff, como do chanceler distribundo o livro abjeto desse ser repugante como se fosse leitura recomendável, de sua viúva tomando chá com Jair Bolsonaro, dos que ostentam camisetas repugnantes defendendo que Ustra ainda vive.
A verdade é que Ustra, mesmo condenado em segunda instância, escapou-se da justa punição pelos horrores que perpetrou. E que, mesmo morto e enterrado, encontrou uma caricatural e grotesca forma de sobrevida.
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Tenho certeza que, a essa altura, Brilhante Ustra sorri no inferno
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É possível tirar o sorriso de escárnio do rosto morto do facínora? Não tenho dúvida de que sim. Mas acordar desse pesadelo passa por uma etapa fundamental – duas, na verdade: preservar a memória do que foi e não permitir que, mais tarde, se esqueça o que hoje está sendo. Se hoje a ideia burra e mentirosa de que “tudo era melhor na ditadura” ganhou força ao ponto de virar um elemento de debate, é porque o lado mais obscurantista do Brasil teve sucesso em manter e, depois, disseminar essa falsidade. Se hoje pessoas se dizem discípulas de alguém como Ustra, é porque há sucesso crescente na estratégia reacionária de reinventar a história. É contra isso que precisamos nos erguer, é isso que não podemos permitir. É assim que podemos nos libertar da idolatria a torturadores e assassinos, arremessar Ustra e outros de sua laia de volta ao abismo do qual jamais deveriam ter saído.
OUÇA Bendita Sois Vós #36 Os novos modelos autoritários
Geórgia Santos
4 de novembro de 2019
Nesta semana, vamos falar sobre como se constroem os novos modelos autoritários. Eles não começam com golpe, mas com presidentes eleitos democraticamente que, aos poucos, enfraquecem as instituições. Eles acontecem de dentro pra fora. E o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, nem tão aos poucos assim, vem se tornando um exemplo disso – na linha dos governo das Filipinas, Turquia, Rússia e Hungria.
Desde o início do governo ele se posiciona contra as Universidades Federais, contra o Ibama, contra a mídia, contra o STF, e esses são apenas alguns exemplos. E na semana que passou, o descaso pelas instituições ficou mais claro.
O nome “Bolsonaro” surgiu nas investigações do assassinato de Marielle Franco e o presidente foi rápido em desacreditar a imprensa e a polícia. E, como se não bastasse, disse que teve acesso a provas antes da investigação para, segundo ele, evitar que fossem adulteradas.
Quase completando um ano de governo, a exemplo do que fazia nas eleições, Jair Bolsonaro é um risco cada vez maior à democracia brasileira. Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol.
Em O Fim da História, Gilberto Gil disse que não acredita que o tempo venha comprovar ou negar que a História possa se acabar. Na poesia, tanto pode findar quanto pode ficar. “Basta ver que um povo derruba um czar e derruba de novo quem pôs no lugar.”
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Mas e se o tempo vier a comprovar que a História se pode negar?
Ao longo de duas décadas, entre 1964 e 1985, houve suspensão de direitos políticos; não havia eleições para presidente; o Congresso foi fechado; houve restrições à liberdade de imprensa e manifestação; perseguição à oposição; censura à classe artística; exílio forçado; e uma série de outras atrocidades. Os relatos de tortura colhidos pela Comissão da Verdade são assustadores. Choques elétricos, afogamentos, pau-de-arara, cadeira do dragão, estupros, tortura com animais fazem parte de um triste rol de performances desempenhadas pelos militares brasileiros por mais de 20 anos. Mas, segundo Bolsonaro, “o período militar não foi uma ditadura.”
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Pessoas foram torturadas. Pessoas desapareceram. Pessoas foram assassinadas
Mas, segundo Bolsonaro, “o período militar não foi uma ditadura”
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O presidente eleito ignora os livros de História para eleger as memórias de um torturador como obra de cabeceira. A Verdade Sufocada – A história que a esquerda não quer que o Brasil conheça (2006) foi escrito por Carlos Alberto Brilhante Ustra, coronel reformado do Exército Brasileiro, ex-chefe do DOI-CODI, um dos órgãos mais atuantes na repressão política durante a ditadura militar no Brasil. Para historiadores, sociólogos e cientistas políticos, não se pode considerar que o livro ofereça precisão histórica. Dr. Tibiriçá, como era conhecido, foi o primeiro militar condenado pela Justiça Brasileira pela prática de tortura durante o regime, em 2008. Mas, segundo Bolsonaro, “o período militar não foi uma ditadura.”
O problema em negar a História é que ela é cíclica. Quando se nega a história, ela volta a acontecer. Quando normalizamos autoritarismo e tortura, volta a História e reescreve o capítulo cujo título era pra ser “Nunca Mais”. “Nunca Mais”, “Nunca É Demais”, “Nunca Mais”, “Nunca É Demais”, e assim por diante. Tanto faz.
Não quero viver dentro dos meus livros de História
Geórgia Santos
16 de outubro de 2017
Cansei de ouvir pessoas que queriam “ter vivido nos tempos da Ditadura.” Não porque apoiassem, mas porque queriam ter tido a chance de lutar contra o regime, de protestar contra a Guerra do Vietnã, de ter ido à Woodstock, de entrar pra uma guerrilha. E não foram poucos os relatos desse tipo. Na faculdade, pipocavam sempre que se tocava no assunto. Muito romântico. Muito ridículo (desculpem-me, mas é).
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Pois talvez os “saudosistas” tenham uma chance
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Sempre tive fascínio pelas aulas de História. Sem saber das palavras de Heródoto, desde pequena acreditava que era importante conhecermos o passado para compreender o presente e idealizar o futuro. Sem saber da existência de Marx, acreditava que o passado poderia ser um instrumento de combate às injustiças e desigualdades. Mas nunca quis viver dentro dos livros de História que carregava.
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Estava perfeitamente confortável com o sentimento de distância do passado de autoritarismo
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Verdade que não conseguia conter as lágrimas ao ler sobre o Holocausto. Derretia por dentro ao ler sobre a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos e a batalha para acabar com a segregação racial. Ficava hipnotizada com a história da Ditadura Militar brasileira, apesar de não compreender como parte da população fora a favor do golpe – apenas mais tarde soube que era a maioria, muito mais tarde.
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Mas tudo parecia distante, como se tivesse acontecido há séculos
E cá tínhamos a história para evitar que
repetíssemos os mesmos erros
Eu me sentia segura fora dos meus livros de História
Neste ritmo, talvez estejamos mais perto de um regime de exceção do que nossa vã imaginação pudesse imaginar até pouco tempo. Estamos retrocedendo a uma velocidade tão assustadora que me sinto puxada para dentro de meus livros de História, como em um redemoinho sombrio de erros do passado, e ali deparo com o preconceito, com o ódio, com a intolerância, com a ignorância. Não quero ficar aqui dentro.