BSV Especial Coronavírus #14 Bolsonaro subindo no telhado
Geórgia Santos
20 de junho de 2020
Abraham Weintraub não é mais Ministro da Educação, para felicidade geral da nação e daqueles que, segundo ele, não tem Deus no coração. Mas muita água rolou nesta semana antes da saída de Weintraub. Muita.
Na segunda-feira, 15, a extremista bolsonarista Sara Winter foi presa pela Polícia Federal (PF) em função de sua participação em manifestações antidemocráticas. A prisão foi decretada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), a pedido da Procuradoria Geral da República (PGR).
Na terça-feira, 16, como parte do mesmo inquérito que investiga a origem de recursos e a estrutura de financiamento desses grupos suspeitos da prática de atos antidemocráticos, a PF bateu à porta de aliados de Jair Bolsonaro. A polícia cumpriu uma série de mandados de busca e apreensão solicitados pela PGR. A ação atingiu parlamentares como o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) e influenciadores como o blogueiro Allan dos Santos. Fernando Lisboa, outro alvo, outro blogueiro, até chorou.
Na quarta, 17, o pleno do Tribunal de Contas da União (TCU) aprovou um pedido para fazer um levantamento do número de militares da ativa e da reserva nos últimos três governos. E, é claro, fazer um levantamento especialmente sobre os militares no governo Bolsonaro. A ideia é verificar se há uma militarização excessiva do serviço público. ?Mas o TCU seguiu dando o que falar na quinta-feira, 18, já que o Ministério Público (MP) solicitou que se investigue uma suspeita de compra superfaturada de cloroquina pelo exército.
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Mas a quinta-feira não acabou por aí
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Fabricio Queiroz foi preso. O Queiroz. O próprio. Acusado de gerenciar as rachadinhas dos salários de servidores dos gabinetes da família Bolsonaro, em especial o senador Flávio Bolsonaro. Ele também é apontado como uma das conexões do clã com milicianos e com o Escritório do Crime, no Rio. Queiroz foi preso em Atibaia (SP), em um imóvel de Frederick Wassef, advogado de Jair Bolsonaro. O próprio.
Bolsonaro fez questão de defender Queiroz publicamente, dizendo que foi uma prisão espetaculosa, como se ele fosse o pior bandido da face da terra. Bolsonaro ainda fez questão de dizer que ele não estava foragido e que não havia mandado de prisão impetrado contra ele.
Mas a quinta-feira ainda não acabou. Foi justamente na quinta-feira que os brasileiros se despediram do inadequado Abraham Weintraub do Ministério da Educação e testemunharam o abraço mais estranho de todos os tempos, como mostra a foto de capa. Aliás, bizarro e, assim como o ministro, inadequado em tempos de pandemia.
Na sexta-feira, 19, o nosso país, governado por um grupo criminoso e altamente disfuncional, atinge o número de um milhão de casos de coronavírus e quase 50 mil mortes.
Para fazer uma análise sobre o impacto de todos esses fatos no governo Bolsonaro, participam os jornalistas Geórgia Santos, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.
O presidente Jair Bolsonaro acompanhou, da área externa do Palácio do Planalto, em Brasília, a manifestação de apoiadores de seu governo, que está sendo realizada neste domingo (15) na capital federal e em outras cidades do país.
Ao que parece, a opinião pública se cansou de Jair Bolsonaro.
Embora seja um marco que entrará para a história, o gesto de cumprimentar lunáticos de verde e amarelo que pediam golpe em pleno temor do coronavírus não é exatamente um ponto de partida. Na verdade, a impressão é de que Bolsonaro, eleito pela capacidade de ser o avatar dos recalques e preconceitos de uma nação inteira, perdeu há algum tempo o pulso das massas. Lembremos da patética insinuação de fraude no primeiro turno das eleições de 2018 – cometida, segundo o presidente, para impedir que ele fosse eleito em primeiro turno. A maluquice, ao que parece, tinha o objetivo de energizar sua massa de fanáticos e pressionar a Justiça Eleitoral; fora algumas falas discretas de TSE e Congresso, não teve efeito algum. Passou em branco.
Estamos acostumados a pensar em quanto as barbaridades de Jair Bolsonaro passam em branco para prejuízo da nação. Talvez precisemos começar a pensar em quanto esse passar em branco é prejudicial para o próprio Bolsonaro.
No exercício vulgar da política que Bolsonaro faz, uma polêmica que não acontece é uma agenda perdida. E a percepção de que os protestos de 15 de março falhariam – os protestos tão acalentados, propagandeados com uso da máquina pública, capazes de dar fôlego ao sonho autocrático de quem sempre detestou a democracia – parece ter pesado sobre a mente do presidente. Até Luiz Henrique Mandetta, o até então discreto ministro da Saúde, recebia aplausos na imprensa, jogando o presidente (em sua visão, ao menos) para segundo plano.
Cego pelos piores sentimentos políticos, Bolsonaro não enxergou a sombra do coronavírus pairando sobre o país.
Diante de uma doença potencialmente trágica e que apavora todo o mundo, era hora de recuar. Mas Bolsonaro, animal político xucro que é, não recua jamais. Avançou aos pinotes, sonhando com os aplausos da claque, com multidões reacionárias enfrentando o medo do Covid-19 em nome de um Brasil livre dos comunistas. Decidiu ignorar os médicos e a decência, rompendo o próprio isolamento para apertar mãos e tirar selfies junto à turba demente que gritava seu nome.
Apostou errado, em mais de um sentido. Para praticamente todo o mundo que assistiu do lado de fora, os atos ficaram marcados como o que de fato são: um desfile de gente louca e inconsequente. Bolsonaro, por sua vez, surge coma figura vil que quer virar ditador e não tem vergonha de fazer política rasteira em meio à promessa de cadáveres – algo que, sejamos justos, descreve de modo exato o que ele efetivamente é. Longe de ficarem emparedados pelos protestos, Congresso e STF saíram com uma disposição renovada para anulá-lo de vez – com direito a humilhação pública, na figura de um gabinete de crise no qual o Presidente da República sequer foi convidado a tomar assento.
Com protestos de adesão modestíssima, analistas internacionais enojados e uma economia em queda livre, o que os nobres deputados e magistrados têm a temer de Bolsonaro?
Atacou fraco. Abriu o flanco. E agora está sofrendo – e sentindo – o contra-ataque.
Desde ontem, panelas e gritos de Fora Bolsonaro se fazem ouvir das janelas em quarentena do Brasil. Janaína Paschoal, que esteve perto de ser vice na chapa que o elegeu, desancou Bolsonaro com fúria quase inédita; Reale Jr., por sua vez, pediu uma junta médica para avaliar a sanidade mental do presidente. Ninguém, absolutamente ninguém ergueu-se em seu auxílio. Mesmo os militares, sempre evocados como força capaz de impor a ordem a um país de devassidão e petismo, seguem guardando um significativo silêncio. E as ruas, que sempre acreditou serem suas (o que era verdade até a facada, e nunca mais voltou a ser depois disso), agora cospem em seu rosto.
A irresponsabilidade de Bolsonaro não despertou apoio, mas fúria. Deu aos que se opõem a ele uma oportunidade e um sentimento coletivo.
O que todos sabiam, mas nem todos expressavam, agora ganhou voz e significado: o presidente é um imbecil. Uma figura asquerosa e vulgar, que não se importa com nada que não nutra relação direta e imediata com seus delírios de autocrata. Um fraco. Alguém que ri e tira selfies enquanto o povo sofre e tem medo. O pretenso homem do povo é uma caricatura tosca do flautista do conto de fábulas, conduzindo ratos golpistas cheios de doença em uma melodia de talkeis.
Que golpe poderá Bolsonaro dar, em semelhante cenário? Aí está: nenhum. E o que poderá fazer Bolsonaro para recuperar o pulso perdido das massas, em um horizonte que pode trazer longos meses consecutivos de quarentena coletiva? Isso mesmo: nada.
Na política, nada é irreversível. Talvez as coisas mudem rapidamente, e nas próximas semanas já tenhamos de novo um Jair Bolsonaro confiante e dono da situação. Hoje, contudo, parece claro que Bolsonaro não tem mais as rédeas em mãos. As decisões que importam sobre o coronavírus estão sendo tomadas à revelia, enquanto o suposto líder fica murmurando ameaças frouxas via imprensa. Um pedido de impeachment, bem ou mal elaborado que seja, já está na mesa de Rodrigo Maia. E os edifícios do país começam a bater panela, exigindo que o presidente pegue o boné e vá embora de uma vez. Se gritarem bem alto, não duvido que consigam, mais cedo ou mais tarde.
A verdade é que os ventos da política brasileira viraram. Desde domingo, o afastamento de Bolsonaro tornou-se uma possibilidade real, ainda que não imediata. O sonho de golpe virou um bumerangue, que tem tudo para acertá-lo na cara.
O presidente Jair Bolsonaro conversa com turistas no Palácio da Alvorada.
Vamos começar com um exercício simples.
Projete sua mente para o início de 2023. A posse presidencial, toda aquela festa da democracia em Brasília, bandeiras verde-amarelas tremulando em todo o entorno do Planalto. Ao fim da rampa, Jair Bolsonaro – talvez sorridente, talvez ressabiado – segura a faixa presidencial, que ostentou sem necessidade inúmeras vezes durante os quatro anos anteriores, pela última vez. A seu lado, o homem ou mulher que assumirá a República em seu lugar. E Bolsonaro, de forma republicana, colocando a faixa no peito de seu sucessor ou sucessora, completando um ciclo de governo e dando início ao outro – tudo dentro da mais absoluta ordem democrática, com as instituições funcionando normalmente.
Agora, abra os olhos e responda, com sinceridade. Você realmente consegue visualizar isso acontecendo?
Nem eu.
E não estamos malucos, de forma alguma. O fato é que as eleições de 2022 não estão nem um pouco garantidas, e não existe nada suficientemente sólido para nos garantir que elas irão ocorrer. Nada. Nadica de coisa nenhuma.
A gente sabe, mesmo não querendo admitir. E a gente também sabe qual o motivo de tanta incerteza: o próprio Jair Bolsonaro e seu governo. Para essa aliança sombria, a democracia é um inimigo ou, na melhor das hipóteses, um incômodo a ser retirado do caminho. E estão agindo para destruir todos os alicerces democráticos, sem nenhum disfarce, diante dos nossos olhos.
Tem gente que escolhe a cegueira, mas mesmo esses enxergam muito bem o que está acontecendo.
O compartilhamento de mensagens convocando para protestos que pedem o fechamento do Congresso Nacional é apenas mais um dos muitos crimes de responsabilidade cometidos por Bolsonaro desde que tomou posse. É uma corda, que vem sendo esticada todos os dias e, por vezes, é submetida a violentos puxões. Não resta dúvida de qual seja a linha de chegada dessa corrida mórbida: o fechamento do Congresso e do STF, a criminalização do dissenso, a instauração de um regime de exceção com alicerces criminosos.
Pode levar vários meses, talvez um ano, talvez mais. Mas é essa a meta. E nenhuma ponderação, nenhum esforço racional ou freio democrático tem feito com que esse impulso sombrio seja contido. Há recuos, mas nenhum sinal de trégua, nada que sequer se aproxime de uma domesticação.
O cenário pode não ser dos mais agradáveis, mas seu enunciado é, na verdade, bastante simples. Ou as ditas instituições reagem, ou serão fechadas.
No momento, eu não apostaria nessa reação, infelizmente. Não sem um sacolejão violento por parte da sociedade.
Por agora, o governo Bolsonaro não tem força (política e bruta) para instaurar uma ditadura. E é meio por isso que ainda não estamos em uma. Pouco coeso, cravejado por disputas internas, em um clima de deslealdade aberta entre seus integrantes, o regime ainda tem o problema extra de ter um presidente que não consegue ser um líder – e tudo isso impede (talvez felizmente) ações sistemáticas de vulto. Tudo isso é verdade, e precisa ser levado em conta nesta complicada e tensa equação.
Não se pense, porém, que esse pessoal não vai buscar concretizar suas taras autoritárias. Está buscando, sim – e será cada vez mais vulgar e agressivo nessas tentativas, porque esta é a sua natureza, este é o cenário em que se sente mais confortável para atuar.
Apostar que a eleição de 2022 é um horizonte consolidado é pouco mais que um delírio desejoso, um alegre devaneio de verão. A única chance de existir um 2022 é forçando que ele exista.
A luta – desde já, e com urgência cada vez maior – é para interromper ou, pelo menos, enfraquecer essa enxurrada das trevas. É punir quem comete crimes contra a democracia. É fazer com que os delírios autocratas voltem a oferecer riscos àqueles que os acalentam, é garantir que o ataque à Constituição volte a ter consequências. Mesmo que isso signifique expulsar da cadeira presidencial aquele que a vê como um trono, como uma propriedade da qual não pretende abrir mão jamais. E apenas o sucesso nesse enfrentamento pode garantir a sobrevivência de um edifício democrático com alicerces fragilizados, que se esfarela a cada ataque e balança cada vez mais.
É preciso impor 2022 aos que anseiam por cancelá-lo. Desde agora. Ou talvez a profecia sinistra se confirme, e não seja mesmo necessário mais do que um cabo e um soldado para apagar a luz.
A família Bolsonaro não tem nada, absolutamente nada a ver com a morte de Adriano da Nóbrega, miliciano, assassino de aluguel e chefe do Escritório do Crime. Nadinha de nada, coisíssima nenhuma. Estão completamente inocentes, sem culpa nenhuma no cartório. Qualquer um consegue ver: é só querer enxergar.
Por exemplo: vocês não viram o presidente Jair Bolsonaro no Twitter, deixando clara sua preocupação com a aparente execução do ex-PM? Ninguém perguntou nada, ninguém disse um ai, e lá estava ele, cedo de manhã em plena terça-feira, desviando de seus muitos compromissos para deixar claro que estava muito, muito preocupado com a morte de Adriano da Nóbrega. Exigindo uma perícia independente, temendo que inocentes sejam acusados no caso Marielle, que sejam forjadas mensagens e áudios nos celulares apreendidos junto ao morto. Um homem preocupado com a verdade!
Vocês acham que Jair Bolsonaro agiria assim, de forma tão desprendida, pedindo justiça para a morte de uma pessoa como Adriano da Nóbrega, se tivesse algo a ver com a história?
Ora, é claro que não!
Quanta tolice, quantas insinuações cruéis desse bando de malvados esquerdopatas!
E o advogado dos Bolsonaro, Frederick Wassef, dando entrevista para dizer que a morte do miliciano é uma farsa e que querem incriminar a família presidencial no crime? A maldade chegou a tal ponto que ele precisou vir a público defender os pobres Jair e Flávio das cretinas e cruéis insinuações! Teve até que defender o morto, denunciar as horríveis torturas que a perícia com certeza vai revelar, dizer que o miliciano não era miliciano! Pede para federalizar o caso, e é claro que isso é com a melhor das intenções, com o objetivo exclusivo de esclarecer essa situação toda!
Longe de tentar desviar a atenção para longe de seu cliente, Wassef quer apenas nos chamar à razão. O que Marielle tinha que Adriano não tem?
Respondam, bando de hipócritas, corações de pedra, malvados!
É bonito ver que mesmo Flávio Bolsonaro, perseguido por acusações absurdas de rachadinha, desviou-se de seus inúmeros problemas para defender o santo homem que morreu sozinho em solo baiano. Postou um vídeo da autópsia em seu perfil de Twitter, vejam só. Tudo para denunciar as torturas sofridas pelo corpo! Dirão que é excesso de preocupação, que está querendo esconder algo, mas é o contrário: um homem sério, desinteressado, que se importa com seu povo e quer revelar a verdade, doa a quem doer! Quanta dignidade, a de nosso querido Flávio!
Como se vê, não existe motivo algum para desconfianças e insinuações. Vocês estão entendendo? Ficou claro? Será que precisamos frisar mais duzentas, quinhentas, mil vezes que os Bolsonaros não têm nada a ver com nada disso daí?
Não existe nada acontecendo. Nada. Circulando. Deixem a família Bolsonaro em paz!
Não há nada a temer, de qualquer forma. Uma explicação surge no submundo das redes sociais: Adriano foi executado pela PM da Bahia, estado governado pelo PT, o que deixa evidente que a queima de arquivo foi para favorecer os malvados do PT! Vão forjar provas contra Bolsonaro, vocês não percebem? Ninguém nunca enxergou qualquer conexão entre Adriano e os petistas, e muita gente enxergou inúmeras conexões entre a família Bolsonaro e as mílicas, mas quem se importa? Problema é o Rui Costa, que é amigo de bandidos como Lula! E os mandantes da facada em Bolsonaro, onde estão? É tudo fraude, tudo fruto de fake news, a imprensa protege os petistas e persegue os que querem salvar o país!
Do Celso Daniel ninguém fala nada nunca nunca nunca, já perceberam?
O Brasil de Paulo Guedes sonha em excluir ainda mais
Igor Natusch
13 de fevereiro de 2020
O ministro da Economia, Paulo Guedes, faz palestra de encerramento do Seminário de Abertura do Legislativo de 2020
Um dos aspectos mais insuportáveis do governo Bolsonaro é o modo como ele nos abriga a tratar sempre dos mesmos assuntos. É uma consequência natural de qualquer processo humano movido pelo recalque: por mais que se disfarce a ideia fixa detrás de discursos elaborados e tergiversações diversas, a mancha suja está sempre na mente. O recalcado não consegue esquecer o foco de seu rancor nem quando toma um copo d’água: é o que é, ou pelo menos aquilo em que permitiu a si mesmo se transformar.
Paulo Guedes não é exatamente um recalcado. Possivelmente o seja em alguns ou vários aspectos, é claro: porém, não é em nome de sua mágoa individual que comete frases odiosas como a que comemora a alta do dólar, dizendo que isso de empregada doméstica viajar para a Europa já tinha virado bagunça. É em nome do recalque alheio, isso sim.
O ministro da Economia sabe que, no imaginário brasileiro, existir é ter alguma coisa. E que essa distinção passa também pelo não-ter dos outros: se eu ganho ou tenho um pouco mais, eu tenho alguma ascendência sobre os que menos (ou nada) têm.
É por isso, por exemplo, que os auto-proclamados patriotas desprezam tudo que remeta ao “povão”: o povo é pobre, e ser pobre é personificar tudo que não presta, em mais de um sentido. Para alguém que vive a ilusão de ser rico um dia, o pobre é tudo de que se quer distância. Se uma empregada doméstica (uma serviçal, uma lacaia!) se torna capaz de juntar uns trocados e planejar uma viagem, a fronteira fica mais tênue. O que se acha alguma coisa fica mais próximo daqueles que não têm direito a nada, apenas a serem pobres e morrer.
O governo Bolsonaro joga desde o início com esse ressentimento. E Paulo Guedes sempre esteve nesse barco: a diferença é que agora está se sentindo mais à vontade para usar o ódio de classe como cartada de legitimação.
É um discurso cruel. E que dá à política econômica um papel ativo na construção da grande ilusão, no resgate da pátria que sempre esteve lá e, ao mesmo tempo, nunca existiu. Não pode restar dúvida de para qual lado se espera que a economia cresça, nesse caso.
O Brasil reacionário segue excludente, mas sente saudades de excluir ainda mais. E Guedes diz: excluiremos. Essa festa danada de pobre achar que é gente vai acabar. Podem deixar com a gente.
Ninguém pode abraçar uma perversidade tão explícita e achar que não é perverso. Pode fingir não ser, e talvez até engane algumas – ou muitas – pessoas. Mas a perversidade estará lá, como uma mancha que estraga o vermelho da maçã, podridão que consome de dentro para fora.
Assisti, no começo desta semana, um trecho em vídeo de uma entrevista do agora ex-secretário da Cultura Roberto Alvim ao Terça Livre. Não é algo que eu assistiria normalmente, pois costumo manter meu consumo de jornalismo limitado a fontes bem menos lamentáveis, mas passou pela linha do tempo do Twitter e, dado aos últimos acontecimentos (vamos, eu sei que você não esteve em Marte no final da semana passada), achei válido assistir.
No vídeo (que, deduzo eu, era bem anterior à situação envolvendo Goebbels, Wagner, a Cruz de Lorena etc), Alvim lamenta uma suposta perseguição esquerdista contra ele. Desde sua conversão, ele teria virado um proscrito, cuspido fora por seus pares. E conclui: ao sair do governo (o que, então, era só uma hipótese), teria que ir pro interior criar galinhas, pois não teria emprego em um ambiente teatral contaminado pelos esquerdopatas.
Temo que esteja absolutamente certo. De fato, a sua carreira artística muito provavelmente está encerrada. E não acho nada errado que seja assim.
Tenho dito muitas vezes, e vou repetir: as coisas precisam voltar a ter consequências.
Antes da conversão ao catolicismo, motivada pela cura de um tumor no intestino, Roberto Alvim era um dramaturgo e diretor respeitado, embora talvez não tão consagrado quanto desejava. Seu trabalho ousado e cheio de riscos, porém, tinha garantido amigos importantes (Chico Buarque e Vladimir Safatle, citando apenas dois exemplos) e um respeito generalizado dentro do cenário teatral brasileiro.
Evidente que virar devoto de Jesus, por si só, não transforma ninguém em maldito na arte brasileira: o problema é se aproximar da ala mais reacionária dessa devoção, e mais ainda de uma figura como Jair Bolsonaro, que declarou guerra aberta a qualquer tipo de arte livre. Nada mais natural do que um artista querer distância de reacionários, que nutrem ódio visceral pelo que a arte livre é representa – e passar a ver alguém que se abraça a esse pessoal como uma pessoa, no mínimo, pouco digna de confiança.
Essa é a primeira ponte incendiada. A segunda ele queimou junto a seus novos e transitórios amigos, quando o desastrado vídeo da semana passada despertou ultraje generalizado.
A mão pesada em Goebbels e Wagner não me parece desprovida de significado: para alguém sem padrinhos importantes e que não tem currículo político anterior, reforçar aspectos ideológicos é uma forma de tentar se manter no poder. Talvez ele encarasse seu jogo de cena como uma demonstração de força e convicção política, ou que promover uma “arte genuinamente brasileira” garantiria uma adesão capaz de consolidar sua posição. Seja como for, o rebote foi mais forte do que o esperado – suficiente para comprometer sua efêmera ascensão entre os reacionários com quem escolheu andar. Foi cuspido fora, sem constrangimento. E como poderia esperar outra coisa?
Essa gente não sabe o que é lealdade. Para eles, Roberto Alvim é carne morta, não serve para mais nada.
Rapidamente surgirão outros memes ambulantes, outras figuras dispostas a cumprir o papel de ex-esquerdopatas na legitimação de uma agenda de emburrecimento e destruição. E ao ex-secretário, caído em desgraça pela falta de sutileza, restará o galinheiro, torcendo para que os ovos caipiras se valorizem no mercado.
Não é questão de excesso ou falta de piedade. É dever urgente de todos nós, que resistimos à enxurrada de insensatez vulgar e autoritária que ameaça nos carregar, permitir e contribuir para que as consequências existam, sejam visíveis e se façam sentir. E Roberto Alvim é um exemplo muito adequado da necessidade de colher os frutos – o que não tem absolutamente nada a ver com vingança. Se quiser voltar para o lado de cá, é preciso reconstruir as pontes incendiadas – e a nenhum de nós cabe pegar o martelo e os pregos, juntar as madeiras e as cordas para a reconstrução.
Construir o que está sendo posto em chamas levou muito, muito tempo; ninguém pode pretender carregar as tochas como se fosse apenas detalhe, como se nada fosse.
Uma tarde qualquer nos escritórios de George Soros
Igor Natusch
4 de dezembro de 2019
– Em resumo, fomos desmascarados – diz uma figura séria e sisuda, de óculos fundo de garrafa, posicionado na cabeceira da mesa. Enquanto fala, um serviçal enxuga de modo meticuloso os pingos de suor amarelado que surgem na careca e ameaçam escorrer pela testa da figura que preside a reunião.
– Sem essa. Besteira – retruca um dos presentes, homem já idoso mas ainda dotado de farta cabeleira, óculos de sol suaves que ameaçam escorregar pelo amplo narigão.
Os demais presentes, por sua vez, mantêm um preocupado silêncio. Sabem que um encontro daqueles não seria convocado em nome de besteiras. A figura que preside a reunião segue imperturbável. Com um rápido olhar, ordena ao serviçal que abra um notebook colocado a seu lado, de forma que todos os demais na mesa possam ver o que está na tela.
Como a figura na cabeceira da mesa não tem braços, cabe ao serviçal operar o mouse e fazer os comandos necessários. Surge uma página de notícias brasileira. Nela, está a manchete:
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Dante Mantovani, novo presidente da Funarte, diz que ‘rock leva ao aborto e ao satanismo’
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Nenhum dos presentes entende uma palavra em português, de modo que nenhum deles esboça qualquer reação. Com um clique, o serviçal aciona a tradução automática do Google. A manchete surge reescrita, agora em inglês:
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Dante Mantovani, Funarte’s new president, says ‘rock leads to abortion and satanism’
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A compreensão desperta um denso e preocupado silêncio. Durante vários segundos, só se ouve o som monótono do ar condicionado, ligado em modo ventilação. Os presentes trocam olhares, mexem-se desconfortáveis em suas cadeiras.
– O que é Funarte? – pergunta um senhor de cabelo pintado e rosto fino, com barba rala e bigodinho.
– Não importa, Ritchie – responde o homem ao seu lado, um senhor que talvez parecesse respeitável, não fossem os mullets e as roupas coloridas que usava. Parecia alguém vindo às pressas de alguma praia do Havaí. Instantes depois de interromper o amigo, dirige-se ao cabeça da reunião. – Isso… É no Brasil, Theo? Essa pessoa faz parte do governo do Brasil?
– Adorno, George. Me chame de Dr. Adorno – responde ele, seco.
– OK, desculpe – corrige-se George. – Essa pessoa é do governo brasileiro, Dr. Adorno?
A cabeça mumificada de Theodor W. Adorno olha novamente para o serviçal. Este, obediente, ergue a bandeja onde ela está localizada – única parte que resta do corpo do filósofo – e a deposita um pouco à frente. Aparentemente, a luz da tela o estava incomodando.Neste momento, de forma inesperada, a porta da sala abre-se abruptamente. Um senhor de rosto inconfundível surge, esbaforido.
– Desculpem, rapazes – balbucia, com uma voz que parece feita para cantar músicas sobre como o dinheiro não é importante, pois o dinheiro não é capaz de comprar amor. – Tivemos mau tempo e o pouso demorou.
Há apenas uma cadeira vazia, ao lado do idoso cabeludo e de óculos de sol.
– Oi, John – diz o recém-chegado, sentando-se.
– E aí, Paul – responde John Lennon, com um tom irônico na voz.
Após ter certeza que todos estavam de novo concentrados nele, Adorno recomeça a falar.
– Senhores, desde que o governo de Jair Bolsonaro assumiu no Brasil, a posição de nossa grande revolução cultural global encontra-se em risco. Enquanto era só aquele Olavo de Carvalho falando sobre eu ter escrito as músicas dos Beatles, estava tudo sob controle: nosso uso massivo da indústria cultural impedia que qualquer ideia contrária ao Grande Plano tivesse credibilidade. – Faz uma pausa, como quem estivesse com um pigarro na garganta, embora sua voz fosse produzida por um sintetizador digital. – Mas a coisa tornou-se perigosa para nós. Bolsonaro destruiu todas as barreiras que criamos, e dissemina informações sensíveis via redes sociais.
– Nosso acordo com Mark não era esse – interrompe Paul McCartney, muito interessado.
– Zuckerberg não é confiável. Nunca foi – resmunga George Harrison, em tom taciturno.
– Seja como for – retoma Adorno, aparentemente irritado com a interupção – nosso segredo está sendo revelado para mais e mais pessoas, através de grupos de WhatsApp. E agora este senhor, Dante Mantovani, está no governo. E ele sabe de tudo.
– Ora, vamos, Theo. Ele não pode saber de tudo – diz John Lennon, incrédulo e desaforado.
O notebook está, agora, ao lado da cabeça morta-viva de Theodor Adorno. Fazendo uso de um espelho, trazido pelo serviçal, ele lê trechos da reportagem:
– “Além dos temas mais técnicos da música erudita, Mantovani discute aspectos da cultura relacionados à filosofia. Em um dos vídeos, ele relaciona Adorno, teórico da Escola de Frankfurt, com os Beatles e reforça teorias da conspiração de que havia infiltrados comunistas na CIA, serviço de inteligência americano. ‘A União Soviética levou agentes infiltrados para os Estados Unidos para realizar experimentos com certos discos, realizados inclusive para crianças'”.
O silêncio volta a cair pesado na sala.
– “O rock ativa a droga, que ativa o sexo, que ativa a indústria do aborto. A indústria do aborto, por sua vez, alimenta uma coisa muito mais pesada, que é o satanismo. O próprio John Lennon disse abertamente, mais de uma vez, que ele fez um pacto com o diabo para ter fama e sucesso”.
– Filho da mãe – resmunga Lennon, agora tão preocupado quanto os demais.
– Caiu a casa, então? – a voz de Ringo Starr surge alta, quase como um grito. – O que a gente pode fazer?
– Teremos que fazer alguma coisa – afirma McCartney, com voz fria. – No que você está pensando, Dr. Adorno? Talvez no… – Um momento de hesitação. – Plano Leslo?
– Você está louco – grita George Harrison. – Eu não vou sair da minha aposentadoria agora!
– Talvez seja necessário, George – tenta atalhar Ringo.
– Não venha com essa, Ritchie. Eu estou aposentado, cumpri todas as metas do Grande Plano, não quero mais nada com isso! De mais a mais, como vamos explicar que eu e John estamos vivos até hoje? Já foi uma barra daquelas transformar o Billy em Paul McCartney depois que precisamos…
Interrompeu-se bruscamente. Os olhares de reprovação eram gerais.
– Eu sou Paul McCartney, George – acentua Paul, com um desagrado quase irreconhecível na voz. – Eu sempre fui, e sempre serei Paul McCartney. Billy Shears é só uma teoria de conspiração. Ele nunca existiu. OK?
– OK, me perdoe, Paul. Mas ainda assim, não tem como acionar o Plano Leslo agora. Free As a Bird foi divertida de gravar, mas vimos os riscos já naquela época. Algumas pessoas suspeitaram do papo de “gravações quase perdidas”. É perigoso. Não dá para fazer uma turnê de reunião. Vamos precisar pensar em outra coisa!
– Pois eu acho que seria uma ótima ideia – diz então Lennon, após uma curta risada. – Combater uma teoria maluca de conspiração transformando uma teoria maluca de conspiração em realidade! “Os Beatles estão de volta! John e George nunca morreram! Turnê mundial com participação especial de Theodor W. Adorno nos backing vocals!”
– Exato – acrescenta Adorno. A expressão de seu rosto morto é singular: se ele ainda tivesse um corpo, talvez se pudesse dizer que esfregava as mãos de satisfação. – Vivemos tempos em que o tecido da realidade está rasgado. Para evitar a ruína do Grande Plano, talvez seja hora de abrir mão da realidade de vez. Revelar que dois Beatles estavam vivos esse tempo todo renderá uma atenção midiática inédita na história. Todas as atenções estarão direcionadas para nós. Será um potencializador fantástico para nossa mensagem. O mundo estará cantando she loves you yeah yeah yeah, e as revelações desse Sr. Mantovani serão definitivamente desmoralizadas.
Enquanto Adorno falava, o ânimo dos presentes mudou. Antes preocupados e irritadiços, todos pareciam mais confiantes, convencidos. Mesmo George Harrison sorria de leve.
– Senhores, é a hora dos Fab Four reconquistarem a música pop – a voz digital do filósofo se erguia, em inusitada empolgação para alguém tão austero. – Uma nova beatlemania! Com os atuais recursos de palco, podemos fazer shows de várias horas sem que isso seja cansativo para o público ou para vocês. Posso inclusive entregar algumas músicas novas, lançar um novo single no Spotify, um documentário para o Netflix. E então, temos um acordo?
Um a um, os quatro músicos uniram as mãos. Ringo tinha uma lágrima de emoção escorrendo lentamente pelo rosto.
– Serviçal, faça uma ligação – disse então Adorno, retomando a sisudez, mesmo que ainda sorrisse. – Temos que agendar uma turnê.
Foto: Montagem sobre fotografia de Dante Mantovani (Reprodução) e Theodor Adorno (Reprodução).
O namoro entre Bolsonaro e Lava-Jato acabou – e a separação será litigiosa
Igor Natusch
19 de setembro de 2019
Presidente da República, Jair Bolsonaro e o ministro da Justiça, Sergio Moro durante a final da Copa América 2019, entre as seleções do Brasil e Peru.
Houve um tempo em que o bolsonarismo e a luta contra a corrupção andavam de mãos dadas – mesmo que, mais recentemente, fosse apenas para manter as aparências. Esses dias, contudo, estão cada vez mais distantes. E o que se percebe, de forma cada vez mais indisfarçável, é a iminência da separação.
Não é um rompimento que desagrade aos Bolsonaros, isso é certo.
Se há algo que se move sempre para frente neste governo, é a disposição em transformar o poder em negócio de família, sem qualquer disfarce, sem prender-se ao mínimo de decência. Mesmo a fundamental disputa no Senado pela reforma da previdência fica em segundo plano: mais importante é encher as burras dos senadores com cargos lucrativos no governo, para que topem a infâmia de sagrar Eduardo Bolsonaro embaixador nos EUA. Não é possível imaginar uma submissão mais escandalosa do público ao mais mesquinho interesse pessoal.
Mas pudores dessa natureza nunca fizeram qualquer diferença para Jair Bolsonaro, acostumado desde sempre a ver a política como uma generosa teta na qual mamar.
Para Bolsonaro e os seus, o argumento contra a corrupção foi apenas mais uma dessas torneiras vertendo leite. Muito útil durante a eleição do ano passado, fiador importante de popularidade a partir de Sergio Moro ministro, mas nunca uma bandeira irrenunciável – mesmo porque, no modelo bolsonarista de política, nenhuma bandeira é tão importante que não possa, em algum momento, virar pano de chão.
Com o avanço dos meses, esse papo de combater o crime a qualquer custo foi ficando pesado para o governo federal. Não apenas pela situação de Flávio Bolsonaro, enrascada que está exigindo uma série de ações pouco republicanas para ser minimizada, mas também pela posição cada vez mais incômoda de Moro no ministério. As muitas humilhações a que foi submetido não parecem ter sido suficientes para convencer o ex-juiz a desistir da pasta, escada importante para suas pretensões futuras, seja no STF, seja em um cargo eletivo próprio. E, mesmo desmoralizados pelas ruidosas revelações da Vaza Jato, Moro e a operação Lava-Jato seguem populares. Mais do que Bolsonaro, como provam as pesquisas.
Livrar-se de Sergio Moro, livrar a cara do filho encurralado, cravar os dentes ainda mais fundo no poder. Para cumprir todas essas tarefas, o caminho é um só: usar a bandeira contra a corrupção como capacho para limpar os pés.
Diante de tal tarefa, a aposta dos Bolsonaros tende a ser a de sempre: a radicalização no discurso ideológico.
A disposição de colocar Augusto Aras na PGR, rasgando vergonhosamente a lista tríplice e escancarando a disposição de brigar contra a Lava-Jato em nome da salvação do 01, disparou de vez a cisão. Janaína Paschoal, a proponente do impeachment de Dilma, revela seu desagrado; Moro, cansado de ser feito de palhaço, condiciona sua permanência à manutenção de Maurício Valeixo como diretor-geral da PF. E Olavo de Carvalho, guru picareta do delírio reacionário à brasileira, apressa-se a dar o tom: a “luta contra a corrupção”, segundo ele, foi inventada pelo PT nos anos 1990, como parte da rebuscadíssima, maléfica e eternamente inconclusa estratégia comunista para tomar o poder em escala global.
O casamento entre reacionários políticos e ativistas do Judiciário é, cada vez mais, de fachada. Não há mais paixão, nunca houve muito respeito mútuo e, a essa altura, mesmo o tesão já se perdeu.
O jogo, agora, é fazer com que o rompimento inevitável tenha o menor efeito possível sobre a horda fiel a Bolsonaro. O que também traz, é claro, um fortalecimento da família como únicos detentores do poder, assumindo de vez a nau desgovernada, para o bem e para o mal. Jogar a Lava-Jato para o lado de lá está longe de ser uma tarefa simples, mas não parece haver grandes constrangimentos na hora de tentar essa acrobacia.
Acumular inimigos sempre foi uma má estratégia de guerra. Mas Bolsonaro e os seus não se importam, ao contrário; na verdade, eles até que gostam bastante dessa posição.
A defesa de Schrödinger de Moro e Dallagnol convence cada vez menos
Igor Natusch
18 de julho de 2019
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, durante audiência pública na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados.
A defesa por insinuação vem sendo, praticamente desde o início, a tática de Sérgio Moro e procuradores da Lava-Jato diante dos diálogos obtidos pelo The Intercept Brasil. Eles dizem que as mensagens não têm nada de mais, são absolutamente normais, mas ainda assim podem ter sido adulteradas e enfim, todo mundo já está por dentro da argumentação. O problema é que a conversa fica cada vez menos convincente, na medida em que as revelações se sucedem. E disfarça cada vez menos o que se esconde por trás da falta de ênfase: o desconforto em estar sempre na defensiva, e a incerteza sobre o tamanho do problema que está por vir.
Como exemplo ilustrativo, tomemos a declaração da conta oficial de Sergio Moro no Twitter, datada do último dia 16:
Sou grande defensor da liberdade de imprensa, mas essa campanha contra a LavaJato e a favor da corrupção está beirando o ridículo.Continuem, mas convém um pouco de reflexão para não se desmoralizarem. Se houver algo sério e autêntico, publiquem por gentileza.
Trata-se de uma fala muito interessante, que traz várias revelações em suas entrelinhas. Para começo de conversa: se não há nada sério no material revelado, qual a necessidade de manifestar-se? Terá um ministro da Justiça, mesmo em licença (inesperada e um tanto estranha, diga-se), tempo para desperdiçar com frivolidades sem valor, para brincar de Schrödinger e defender-se do gato que, segundo ele, nem mesmo está na caixa?
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Ao contrário do que pretende o ministro, a própria manifestação atesta a seriedade do assunto e fornece indício a favor da autenticidade das informações
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Mais: se o que foi revelado não é autêntico, o que impede Sergio Moro de atestar a adulteração com seus próprios registros ou arquivos? Se o material divulgado por tantos veículos de mídia é editado de forma a falsear seu conteúdo, e levando em conta o desgaste evidente causado pelos diálogos, o que aguarda o ministro para ingressar com uma ação por calúnia, por exemplo? Se Glenn Greenwald e sua equipe estão mentindo sobre tudo, dando aparência de crime onde nada de ilícito ocorreu, basta a Moro apresentar as evidências e liquidar, de um só golpe, com a carreira do jornalista inglês.
Nada disso. Para contestar diálogos, Moro usa apenas o Twitter. Para provar que são falsos, parece esperar a intervenção da Polícia Federal – que, segundo boatos fortes dos últimos dias, estaria organizando operação para capturar o suposto hacker responsável pelos vazamentos. Sergio Moro insinua um crime grave contra sua imagem pública e sua honra, mas não move um dedo para desmascará-lo; parece, na verdade, aguardar que isso seja feito por alguma força externa. Por que?
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Parece válido imaginar que, se Moro não prova que é vítima de calúnia, é porque não pode
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Na verdade, são justamente as evasivas dos envolvidos na #VazaJato que nos oferecem a maior certeza de que há mais coisa pela frente, que a amizade entre Sergio Moro e Deltan Dallagnol é ainda mais fraterna e não-republicana do que se revelou até aqui.
Se houver a necessidade de uma cabeça decapitada (e quem poderá dizer que não será necessário, quando a única certeza é a incerteza sobre o que virá?), é razoável supor que o pescoço de Dallagnol é um candidato nada desprezível. Afinal, ninguém usou máscaras com seu rosto em protestos, ou criou acampamentos e vigílias em sua homenagem
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Os fatos se sucedem, de qualquer modo. Nas poucas horas que tirei para batucar esse texto, a Folha de São Paulo já trouxe outra grave denúncia: a de que Sergio Moro interferiu em acordos de delação durante as negociações dos mesmos – o que é absolutamente vedado ao juiz, tanto por procedimento quanto por simples lógica. A resposta do ministro, claro, veio pelo Twitter – dizendo uma verdade (que é dever legal do juiz exigir mudanças ou recusar a homologação) para desviar do ponto central (que isso se dá ao fim da negociação conduzida pelo Ministério Público, não durante o processo).
Ou seja, os acontecimentos em si são imprevisíveis, mas o padrão de reação que despertam é mais que claro: respostas nunca enfáticas, sempre oscilando entre desprezar o conteúdo e insinuá-lo fraudulento, com a sombra de um hacker nunca revelado insinuando crimes e conspirações. “Não há gato dentro da caixa, mas o gato não é meu!”
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É um esforço não de esclarecimento, mas de realce das sombras
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Não condiz com a postura de quem nada tem a temer. E apenas reforça a importância do trabalho da imprensa em pressionar os poderosos da vez, além de reiterar a necessidade de ir cada vez mais fundo no que esses arquivos têm a dizer. É nisso, no fim das contas, que a sociedade pode contar para não mergulhar de vez no nevoeiro.
O governo Bolsonaro é revolucionário – e isso não é nada bom
Igor Natusch
3 de julho de 2019
Presidente da República Jair Bolsonaro chega ao Comando Militar do Sudeste.
Jair Messias Bolsonaro está sendo uma figura revolucionária na política brasileira. Gostando ou não das consequências disso, o fato é esse, e só se torna possível compreender minimamente os primeiros seis meses do governo Bolsonaro a partir dessa constatação.
Esse texto não vai ser uma viagem agradável, então peço que o leitor ou leitora tome fôlego antes de seguirmos em frente.
A partir do atual mandato, o presidencialismo de coalizão à brasileira está encerrado. Esqueça os tempos do passado, quando os grupos políticos construíam, por diálogo, compra ou cooptação, consensos que permitiam algum tipo de governabilidade: isso está no passado, e vai demorar para retornar plenamente, se é que vai voltar um dia.
O Brasil de Bolsonaro propõe uma nova política: impositiva, onde a divergência só se manifesta enquanto conflito, onde o objetivo nunca é convencer, mas sim coagir grupos divergentes a aderir a determinado pensamento. Ou, se isso for impossível, tentar fazer com que desapareçam.
O consenso nada significa para Bolsonaro. Sua trajetória política jamais teve qualquer interesse pela construção: típico deputado “do fundão”, ele nunca liderou uma comissão, jamais defendeu projetos de lei minimamente significativos, migrou entre partidos e vendeu sua própria candidatura sem nenhum constrangimento, dentro de suas próprias regras. A política, para Bolsonaro, sempre foi um projeto pessoal e familiar – e poderíamos acusá-lo de várias coisas nesses primeiros seis meses, mas jamais de estar agindo de forma incoerente.
O conflito é mais que uma estratégia de governo: é uma manifestação espontânea e mais, o ethos e a alma desta administração. Talvez possamos falar em um presidencialismo de crise, em que a estabilidade e a resolução de conflitos não são apenas menosprezadas, mas até mesmo indesejáveis para que o sistema siga em funcionamento.
São dois processos básicos, em permanente sucessão: deixar claro quem são os inimigos e manter os aliados sempre à distância, tratando-os como transitórios e descartáveis – livres, enfim, para serem arremessados para o lado adversário na primeira oportunidade.
Não é à toa que os mais recentes atos em favor do governo incluíram entre os inimigos do santo governo mesmo grupos como o MBL, que são tudo, menos esquerdistas. Não é à toa que aliados fundamentais, como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, sejam tratados como obstáculos do Executivo, ou que o STF esteja permanentemente acuado a cumprir sua única função aceitável, que é manter o ex-presidente Lula na cadeia. Não é à toa que Bolsonaro estava “por aqui” com Joaquim Levy, que o general Santos Cruz foi ridicularizado publicamente antes de ser afastado do governo, que o general Juarez Cunha foi afastado dos Correios por agir “como um sindicalista”.
No presidencialismo de crise bolsonarista, o conflito é a assinatura, e nenhuma aliança tem qualquer tipo de solidez.
Além da estética do enfrentamento permanente entre os Poderes, que aproxima o momento brasileiro de uma interminável tentativa de sequestro, é escancarada a falta de solidariedade e lealdade dentro da própria gestão. Como já disse aqui várias vezes, Bolsonaro não é líder, mas sim o avatar que representa vários grupos heterodoxos. Entre eles, a única pauta comum é o patriotismo chão e tosco, profundo como uma poça d’água. Fora disso, não há interesse em construir nada, nenhum respeito a bandeiras alheias, sequer um gesto de consideração. Nem mesmo seus medos, ódios e preconceitos os aproximam, pois não são sempre os mesmos, e cada um reconhece o seu recalque como mais urgente que os demais. Nessa aliança entre figuras que se desprezam, todos querem ser protagonistas, brigam às cotoveladas para ver quem receberá primeiro os aplausos da torcida.
Diante de tão sufocantes exigências de fidelidade, e com quase nenhuma lealdade oferecida em retribuição, quem vai ser aliado de Bolsonaro?
A resposta é simples: ninguém.
A tendência será de pagar deslealdade com deslealdade, de tratar como descartável um governo incapaz de ser um aliado confiável.
E aí se impõe a questão que Bolsonaro e seus apoiadores próximos, sejam quais são, deveriam fazer: é possível atuar em tantos campos de batalha ao mesmo tempo?
Dizer que Bolsonaro não conta com apoio popular seria uma tolice. Verdade que seus índices de popularidade são os mais baixos de um presidente recém-eleito desde a redemocratização, mas ainda há muita gente ao seu lado: os que desejam andar armados nas ruas, os que sentem-se oprimidos pela comunidade LGBT, os que acreditam que seus filhos correm risco real de doutrinação esquerdista nas escolas e universidades do país. Os que se agarram no patriotismo sem reflexão e em gritos de guerra paupérrimos para terceirizar o próprio senso crítico estão com Bolsonaro, e ao lado dele estarão por bastante tempo ainda – afinal, ninguém projeta tanto em um pretenso herói para abandoná-lo no primeiro solavanco da viagem. Mas quem muito exclui pouco agrega, e os atos pró-governo do dia 30 de junho – menores de público, inchados de inimigos – mostraram isso com clareza. E as manifestações contra Bolsonaro, significativas e numerosas em todo o país, também entram nessa equação.
Não haverá paz. Jair Bolsonaro não é o gerador de crises: ele é a crise, ele a personifica e dela necessita para legitimar a própria existência.
E nisso reside também o caráter exaustivo de seu governo: sem a crise, ele é um conjunto vazio. Então, é preciso reproduzir o conflito o tempo todo, para que se discuta a tomada de três pinos ao invés de falar de um crescimento econômico ínfimo ou de mais de 13 milhões de desempregados no Brasil. A revolução personificada em Bolsonaro é feita apenas de pressa e ímpeto, de tal forma que nem mesmo sua figura principal está no controle e até seu próprio líder é, em boa medida, dispensável. Se deixada livre, tende a deixar somente terra arrasada em seu lugar – e por isso mesmo precisa ser temida, exposta, questionada e combatida.