Geórgia Santos

A materialização coletiva da dor

Geórgia Santos
27 de janeiro de 2023

Eu não lembro de como eu soube, mas eu entendi rápido. Em algum momento da manhã do dia 27 de janeiro de 2013 – cedo, muito cedo -, depois de tatear à procura do rádio de pilhas e do controle remoto da televisão, eu olhei através do vidro da janela da sala e lá estava: o estado inteiro havia sido tomado por algo que eu só consigo descrever como a materialização da dor.

 

Fogo. O incêndio da Boate Kiss começou quando o vocalista da banda Gurizada Fandangueira disparou um sinalizador de uso externo dentro do ambiente fechado. A espuma acústica pegou fogo. O local estava superlotado, sem ventilação e só havia uma saída de emergência. Homens com camisetas amarradas no rosto carregavam tantas pessoas quanto conseguiam e tentavam derrubar as paredes com marretas. Os bombeiros foram acionados e chegaram rapidamente, mas não davam conta de controlar a situação a tempo de salvar a todos.

Perplexidade. Era inacreditável que aquilo estivesse acontecendo. Jovens estavam morrendo. Mas quais?

Nomes. Alan, Alexandre, Alex, Alisson, Allana, Anas, André, Andressas, Andrieli, Andrise, Angelo, Ariel, Augustos, Bárbara, Benhur, Bernardo Bibiana, Brady, Brunas, Brunos, Camila, Carolina, Carlitos, Carlos, Cássio, Cecília, Clarissa, Crisley, Cristiane, Daniel, Daniela, Daniele, Danilo, Danrlei, David, Débora, Deives, Diego, Dionatha, Douglas, Dulce, Driele, Elisandro, Emerson, Emili, Ericson, Érika, Evelin, Fábio, Felipe, Fernandas, Fernandos, Flávias, Francieles, Gabrielas, Geni, Gilmara, Giovane, Greicy, Guido, Guilherme, Gustavos, Heitores, Helena, Helio, Henrique, Herbert, Igor, Ilivelton, Isabela, Ivan, Jacob, Jaderson, Janaína, Jennefer, Jéssica, João, Josés, Julia, Julianas, Juliano, Karin, Kellens, Kelli, Larissas, Laureane, Leandra, Leandros, Leonardos, Letícias, Lincon, Louise, Luanas, Lucas,  Luciane, Lucianos, Luís, Luisa, Luiz, Luíza, Maicons, Manoeli, Marcelo, Marcos, Marfisa, Maria, Marianas, Mariane, Marinas, Martim, Marton, Matheus, Maurício, Melissas, Merylin, Micheles, Miguel, Mirela, Mônica, Murilos, Natana, Natascha, Nathiele, Neiva, Octacílio, Odomar, Pâmela, Paola, Patrícia, Paulas, Pedros, Priscila, Rafaéis, Rafaela, Raquel, Rhaissa, Rhuan, Ricardos, Robson, Rodrigos, Roger, Rogérios, Rosane, Ruan, Sabrina, Sandras, Shaiana, Silvio, Stefani, Susiele, Taís, Taíse, Tanise, Thailan, Thaís, Thanise, Tiagos, Ubirajara, Vagner, Vanderlock, Vanessa, Victor, Vinícius, Viviane, Vitória, Walter e Wictor.

Incredulidade. Eu conhecia um dos “Roger”, o Roger Dall’agnol. Filho da Nilvete e do Adão. Ela é dona de uma Floricultura na minha cidade, Paraí. A gente não compra flores na Anil, compra na Nilvete. É nesse ponto que a materialização da dor começa a se tornar coletiva, quando as vítimas passam a ter nomes, pais, irmãos, famílias, empregos. Quando os mortos passam a ter vidas.

Amigos. O nome Renata não estava na lista, mesmo assim eu pensei nela, na minha melhor amiga. Ela me telefonou à tarde, eu acho, já exausta. Ela estava de plantão na Rádio Gaúcha naquele final de semana e, se não me engano, viajou à Santa Maria ainda nas primeiras horas da manhã. Ela, jornalista experiente, chorava muito. Assim como eu não via o nome dela replicado, ela imaginava como teria sido reconhecer o meu e chorava, agradecida e assustada. Choramos as duas, abraçadas de longe, materializando na voz a dor de dezenas de amigas que precisaram reconhecer o corpo das suas.

Dor. À época, eu também era repórter da Rádio Gaúcha. A mim coube acompanhar o destino dos sobreviventes hospitalizados na capital, naquele dia e nos meses subsequentes. Era uma tarefa que eu não gostava de cumprir, conversar com as famílias. Era invasivo. Mas, aos poucos, estabeleci uma relação de confiança com alguns dos parentes que eram, pouco a pouco, consumidos pela dor. Foi no Hospital Cristo Redentor que uma mãe pediu pra ser entrevistada. Ela queria falar ao vivo e assim foi.

Eu não sabia o que ela queria dizer, mas o rosto dilacerado pelo pavor indicava uma reação visceral, uma acusação, provavelmente. Talvez clamor por justiça. Mas ao aproximar a boca da espuma do microfone, a expressão facial foi suavizada. Aquela mãe, que já não estava inteira, só pediu uma oração. Só isso. Não cabia mais nada dentro dela além da necessidade de ter vivo o filho de 21 anos. Mas não adiantou. O filho faleceu naquele mesmo dia e o vazio era avassalador. Era a própria tristeza emaranhada na carne daquela mulher, que aos poucos se transformava em uma estátua de sofrimento. A dor se materializava diante dos meus olhos de novo, e de novo, e de novo.

Morte. Eu nunca esqueci aquele dia 27 de janeiro de 2013 e acho que ninguém vai esquecer, mas a Justiça não respondeu. Ninguém foi responsabilizado. Ninguém foi preso. E a materialização da dor jamais será erodida.

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Todo Dia Oito #8 Aracy, a justa que adorava batom vermelho

Geórgia Santos
8 de outubro de 2021

Todo Dia Oito. Todo dia oito, uma história, todo dia oito, uma mulher

No oitavo episódio do podcast, Aracy, a justa que adorava batom vermelho. Ela conviveu com uma das grandes injustiças enfrentadas por mulheres casadas com homens notáveis. Viver à sombra do marido. Ser a “esposa de alguém”. Aracy Guimarães Rosa é a Ara a quem é dedicada uma das maiores obras da literatura brasileira. Mas como uma certa ironia do destino, para uma mulher que tanto enfrentou injustiças, depois de viúva, ela foi reconhecida como uma Justa Entre As Nações.

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Pesquisa: Flávia Cunha e Geórgia Santos

Roteiro: Geórgia Santos e Flávia Cunha

Locução: Raquel Grabauska, como Aracy Carvalho Guimarães Rosa

Apresentação e edição: Geórgia Santos

Trilha sonora original: Gustavo Finkler

Os áudios com a vozes de Eduardo Tess, Margarethe Levy e Bella Herson foram extraídos do documentário “Esse viver ninguém me tira”, de Caco Ciocler. Além dos livros citados ao longo do episódio e do documentário, para a pesquisa sobre a vida de Aracy foram consultados artigos de Daniel Reizinger Bonomo , Tânia Biazoli e Neuma Cavalcante, e reportagem da jornalista Eliane Brum publicada na revista Época em 2008. Além da trilha original, ouve-se trecho de Casinha Feliz, de Gilberto Gil, e o tema de abertura da minissérie da Globo, Grande Sertão: Veredas.

PodCasts

BSV Especial Coronavírus #6 E Sérgio Moro caiu – ou saiu

Geórgia Santos
24 de abril de 2020

Como tem sido nos últimos episódios, pouco vamos falar de coronavírus porque, senhoras a senhores, Sérgio Moro está fora do governo Bolsonaro.

O ex-juiz federal e agora ex-ministro da Justiça pediu demissão na manhã desta sexta-feira, 24 de abril, após troca no comando da Polícia Federal (PF).  Sérgio Moro foi enfático ao dizer que há interferência política de Jair Bolsonaro na instituição e citou inquéritos no STF. Ele ainda surpreendeu ao reconhecer que nem no auge da LaVa-Jato, durante o governo do PT, havia esse tipo de interferência na PF.

Jair Bolsonaro, obviamente, não gostou e fez um pronunciamento absolutamente confuso, mentiroso e grosseiro no final da tarde. Disse que Moro estava mentindo e sugeriu chantagem. Segundo Bolsonaro, Moro queria ser indicado a uma cadeira no Supremo Tribunal Federal.

Agora, a Procuradoria-Geral da República (PGR) vai investigar quem está falando a verdade. E nós vamos discutir o que esse dia de maluco representa. Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flavia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no SpotifyItunes e Castbox

Vós Pessoas no Plural · BSV Especial Coronavírus #6 E Sérgio Moro caiu – ou saiu
Igor Natusch

A defesa de Schrödinger de Moro e Dallagnol convence cada vez menos

Igor Natusch
18 de julho de 2019
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, durante audiência pública na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados.

A defesa por insinuação vem sendo, praticamente desde o início, a tática de Sérgio Moro e procuradores da Lava-Jato diante dos diálogos obtidos pelo The Intercept Brasil. Eles dizem que as mensagens não têm nada de mais, são absolutamente normais, mas ainda assim podem ter sido adulteradas e enfim, todo mundo já está por dentro da argumentação. O problema é que a conversa fica cada vez menos convincente, na medida em que as revelações se sucedem. E disfarça cada vez menos o que se esconde por trás da falta de ênfase: o desconforto em estar sempre na defensiva, e a incerteza sobre o tamanho do problema que está por vir.

Como exemplo ilustrativo, tomemos a declaração da conta oficial de Sergio Moro no Twitter, datada do último dia 16:

Trata-se de uma fala muito interessante, que traz várias revelações em suas entrelinhas. Para começo de conversa: se não há nada sério no material revelado, qual a necessidade de manifestar-se? Terá um ministro da Justiça, mesmo em licença (inesperada e um tanto estranha, diga-se), tempo para desperdiçar com frivolidades sem valor, para brincar de Schrödinger e defender-se do gato que, segundo ele, nem mesmo está na caixa?

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Ao contrário do que pretende o ministro, a própria manifestação atesta a seriedade do assunto e fornece indício a favor da autenticidade das informações
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Mais: se o que foi revelado não é autêntico, o que impede Sergio Moro de atestar a adulteração com seus próprios registros ou arquivos? Se o material divulgado por tantos veículos de mídia é editado de forma a falsear seu conteúdo, e levando em conta o desgaste evidente causado pelos diálogos, o que aguarda o ministro para ingressar com uma ação por calúnia, por exemplo? Se Glenn Greenwald e sua equipe estão mentindo sobre tudo, dando aparência de crime onde nada de ilícito ocorreu, basta a Moro apresentar as evidências e liquidar, de um só golpe, com a carreira do jornalista inglês.

Nada disso. Para contestar diálogos, Moro usa apenas o Twitter. Para provar que são falsos, parece esperar a intervenção da Polícia Federal – que, segundo boatos fortes dos últimos dias, estaria organizando operação para capturar o suposto hacker responsável pelos vazamentos. Sergio Moro insinua um crime grave contra sua imagem pública e sua honra, mas não move um dedo para desmascará-lo; parece, na verdade, aguardar que isso seja feito por alguma força externa. Por que?

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Parece válido imaginar que, se Moro não prova que é vítima de calúnia, é porque não pode
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Na verdade, são justamente as evasivas dos envolvidos na #VazaJato que nos oferecem a maior certeza de que há mais coisa pela frente, que a amizade entre Sergio Moro e Deltan Dallagnol é ainda mais fraterna e não-republicana do que se revelou até aqui.

Para Dallagnol, em especial, a situação é grave. As negociações entre os dois para a realização de um vídeo promovendo as chamadas 10 medidas contra a corrupção, por exemplo, são infames e escandalosas, elas próprias indícios da mesma corrupção que os super-heróis da vez se propuseram tão tenazmente a combater. E as movimentações do procurador para lucrar com palestras, usando a esposa como sócia para fugir de críticas, são o descumprimento evidente de uma regra clara da magistratura.

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Se houver a necessidade de uma cabeça decapitada (e quem poderá dizer que não será necessário, quando a única certeza é a incerteza sobre o que virá?), é razoável supor que o pescoço de Dallagnol é um candidato nada desprezível.  Afinal, ninguém usou máscaras com seu rosto em protestos, ou criou acampamentos e vigílias em sua homenagem
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Os fatos se sucedem, de qualquer modo. Nas poucas horas que tirei para batucar esse texto, a Folha de São Paulo já trouxe outra grave denúncia: a de que Sergio Moro interferiu em acordos de delação durante as negociações dos mesmos – o que é absolutamente vedado ao juiz, tanto por procedimento quanto por simples lógica. A resposta do ministro, claro, veio pelo Twitter – dizendo uma verdade (que é dever legal do juiz exigir mudanças ou recusar a homologação) para desviar do ponto central (que isso se dá ao fim da negociação conduzida pelo Ministério Público, não durante o processo).

Ou seja, os acontecimentos em si são imprevisíveis, mas o padrão de reação que despertam é mais que claro: respostas nunca enfáticas, sempre oscilando entre desprezar o conteúdo e insinuá-lo fraudulento, com a sombra de um hacker nunca revelado insinuando crimes e conspirações. “Não há gato dentro da caixa, mas o gato não é meu!”

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É um esforço não de esclarecimento, mas de realce das sombras

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Não condiz com a postura de quem nada tem a temer. E apenas reforça a importância do trabalho da imprensa em pressionar os poderosos da vez, além de reiterar a necessidade de ir cada vez mais fundo no que esses arquivos têm a dizer. É nisso, no fim das contas, que a sociedade pode contar para não mergulhar de vez no nevoeiro.

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil 

Igor Natusch

Sergio Moro, a Lava-Jato e a Operação Mãos Sujas

Igor Natusch
10 de junho de 2019

Dizer que a Lava-Jato foi ferida de morte seria uma grande besteira, é claro. Mas não há exagero em apontar que a operação, personificada em suas figuras definidoras, está definitivamente desmoralizada a partir da série de reportagens divulgadas pelo The Intercept Brasil no último domingo. A broderagem explícita, escandalosa e ilegal entre Moro e a operação, em especial o procurador Deltan Dallagnol, estava há tempos visível, mas ainda existia em um terreno, digamos, não material. Agora, com a revelação de conversas indecentes e dos acordos absurdos que qualquer um pode ler, está escancarada de forma acachapante, impossível de ignorar.

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Os justiceiros estão nus, e sua nudez é tamanha que ignorá-la deixou de ser um acordo coletivo para virar profissão de fé. A Operação Mãos Limpas Made in Brasil revela suas mãos encardidas, imundas. A casa caiu, em suma

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Estivesse o Brasil em condições normais de temperatura e pressão, o ministro Sergio Moro renunciaria ao cargo ainda hoje

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Sabemos, no entanto, que o Brasil está muito longe das CNTP dos tempos de escola. As reações de Moro e Dallagnol até aqui, fazendo pouco ou nenhum caso das graves revelações, demonstram uma aposta na força do capital político e social adquirido: isso é algo menor, não nos tira do rumo, olhem tudo que já fizemos pela nação, seguiremos atuando de forma incansável para combater a chama corrupta que consome o país. Difícil imaginar que as multidões que organizaram “Acampamentos Sérgio Moro” e usaram camisetas com o rosto do ídolo vão simplesmente abandoná-lo a essa altura – afinal, como bem sabemos, a idolatria não deixa de ser uma forma de teimosia.

Apostar em uma rápida desidratação que forçasse Moro a juntar os cacos de dignidade e pedir a renúncia seria apostar em um Brasil onde a razão, o respeito às instituições e o bom senso fossem levados em conta. Talvez esse Brasil exista em algum best seller de livraria de aeroporto, porque no mundo real não há nem sinal dele.

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Ainda assim, o golpe é duríssimo. O capital moral de Moro e da Lava-Jato sangra em praça pública, com consequências imensas e potencialmente imprevisíveis

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O STF, apenas para citar o aspecto mais óbvio, tem em mãos material mais do que suficiente para botar abaixo boa parte da Lava-Jato – o que, por óbvio, implica sim em tornar nulos os casos contra Lula e soltá-lo o mais rapidamente possível. Se isso de fato ocorrerá, veremos nos próximos capítulos.

Verdade que nada do que vem sendo exposto significa que não tivemos desvios criminosos na Petrobrás e que agentes públicos não tiveram envolvimento na bandalheira. Nada inocenta Lula ou qualquer outra pessoa das acusações imputadas. Mas não se pode, em um Estado que se pretende de Direito, manter alguém preso apenas porque se deseja que ele fique atrás das grades, muito menos tolerar que o julgador atue como acusador. Se o absurdo uso de escutas de advogados para montar o caso contra o ex-presidente já seria suficiente para abalar decisivamente a condenação (e é), os fatos agora revelados deixam tudo ainda mais inescapável.

Se houve tabelinha entre juiz e força-tarefa para prender Lula (e quem duvidará que houve, depois de tudo que se revelou desde ontem?), o caso revela-se nulo, sua condenação nada vale e ele é um homem livre. Agir de forma diferente é confirmar que a Constituição virou papel para acender lareira, que estamos no reino do arbítrio e nada vale senão a vontade de quem tem poder. Se o material publicado pelo The Intercept Brasil foi obtido pelo hacker de forma ilegal, ainda assim ele serve para declarar nulidade de processos – o que, aliás, diz o próprio ministro Alexandre de Moraes, em livro elogiado por sua doutrina.

É um jogo de muitos riscos – e soltar Lula, é claro, também envolve riscos tremendos para muitas pessoas. Mas a disputa de poder entre Lava-Jato e Supremo não é de agora, e fica difícil visualizar os ministros perdendo a chance de aplicar em seus inimigos um golpe potencialmente mortal. Isso para não falarmos no quanto o sonho de Moro em tornar-se ministro do STF fica distante depois do escândalo em torno de seus procedimentos.

Além disso, temos as ruas. A revelação das conversas nada institucionais de Moro surge dias antes de uma greve geral, convocada para o dia 14 – um ato que, desde o início, amplia a pauta dos cortes em universidades em um discurso potencialmente mais amplo, mais aberto ao combate à reforma da previdência, por exemplo. Não é nada difícil imaginar que os setores que pedem Lula Livre estão inflamados, e engrossarão ainda mais essas manifestações daqui para frente.

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Quem viveu 2013 sabe que os protestos se transformaram em fenômeno viral justamente quando se tornaram permeáveis a outros gritos, indo (de forma não raro histriônica e caótica) muito além da pauta original do transporte público. Em uma semana que se promete horrorosa para o governo, os movimentos de oposição ao governo Bolsonaro ganham uma boa chance de saírem das cordas de vez

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Não se trata, aqui, de tentar prever uma onda de arrependidos abandonando Moro e Bolsonaro rumo à oposição. É um cenário meio fantasioso, na verdade, e que no fundo pouco interessa. O que surge, a partir das conversinhas de Moro e da inserção delas em um cenário já incerto e conturbado, é a possibilidade de um movimento agregador de insatisfações, até aqui, pulverizadas. Impossível dizer se acontecerá, mas os fatores estão presentes. E, caso ocorra uma escalada da crise, somada a um fortalecimento de seus antagonistas, Lava-Jato e governo Bolsonaro estarão colocados, juntos, no olho do furacão. Tudo por força de Sergio Moro, o elo que liga essas duas pontas em risco.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

PodCasts

OUÇA Bendita Sois Vós #22 Marielle, presente!

Geórgia Santos
16 de março de 2019

Nesta semana, o assunto não poderia ser outro a não ser o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes, ocorrido há um ano. Na noite de 14 de março de 2018, a ativista e vereadora pelo PSOL foi morta a tiros no Rio de Janeiro. Marielle nasceu e foi criada na favela da Maré. Tinha 38 anos de idade, atuava há mais de dez anos na defesa dos direitos humanos, das mulheres e jovens negros, de moradores de favelas e pelo direito de pessoas LGBT. Marielle também era combativa na denúncia de execuções extrajudiciais e outras violações cometidas por policiais e milicianos. Nesta semana, um ano depois de sua morte, algumas respostas.

Na terça-feira, dia 12, a polícia civil do Rio de Janeiro prendeu dois suspeitos de participarem do assassinato da vereadora. O policial militar reformado Ronnie Lessa e o ex-policial militar Élcio Vieira de Queiroz. Ambos negam participação no crime. Mas segundo a denúncia, Lessa teria disparado os tiros e Queiroz dirigido o carro que interceptou Marielle. É um avanço, mas, como disse o delegado Giniton Lages, da Delegacia de Homicídios, nada está encerrado.

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Por isso, a nossa pergunta é: quem mandou matar Marielle?

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Mas o Bendita Sois Vós desta semana será diferente, não vamos nos propor a responder à pergunta como é de praxe. Acreditamos, ainda, na seriedade da investigação e que cabe às autoridades essa reposta. Verdade que as prisões trouxeram à baila uma série de informações gravíssimas que mostram uma proximidade suspeita com uma série de pessoas importantes no contexto da política nacional. Mas nesta semana nós não vamos discutir ou debater ou conjecturar. Vamos ouvir. Vamos ouvir a irmã de Marielle, Anielle Franco.

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“Cada um na família perdeu a Marielle de uma forma diferente”

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Em um depoimento bastante objetivo, Anielle fala de como recebeu a notícia da prisão, da falta que sente da irmã, da dificuldade em lidar com mentiras e agressividade e do projeto do Instituto Marielle Franco. Mas principalmente, ela mostra um pouco da essência daquela que, segundo ela, era o ponto de equilíbrio da família.

No Sobre Nós, Raquel Grabauska e Vida Schabbach trazem O Método, de Julio Cesar Monteiro Martins,  um texto realístico sobre o período da Ditadura Militar que faz parte da antologia de contos chamada Histórias de um Novo Tempo.

Geórgia Santos

Coração bobo

Geórgia Santos
2 de abril de 2018

Meu coração tá batendo como quem diz: não tem jeito. Canta Alceu Valença e canto eu. Ele canta que o coração dos aflitos pipoca dentro do peito. Canto eu que o coração dos aflitos encolhe dentro do corpo. Coração bobo. Encolhe a cada palavra de ódio, encolhe toda vez que alguém perde a razão, encolhe sempre que a empatia se apaga, encolhe quando o absurdo se torna a verdade de alguns.

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O coração dos aflitos pipoca dentro do peito

O coração dos aflitos encolhe cada vez mais

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É como se a gente não conseguisse fugir do destino de que já não há mais coração. A gente se ilude dizendo: já não há mais coração. Canta Alceu Valença e canto eu. Já não há. Não pode haver diante do absurdo que se torna a verdade de alguns. Ontem mesmo, o procurador da República Deltan Dallagnol escreveu no Twitter sobre o que ele chamou de “Dia D da luta contra a corrupção na Lava Jato.” Nada fora do comum. É prerrogativa de ofício e ele já havia se posicionado sobre o tema da prisão em segunda instância. “Uma derrota significará que a maior parte dos corruptos de diferentes partidos, por todo país, jamais serão responsabilizados, na Lava Jato e além.” A derrota seria a concessão do habeas corpus ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Nenhuma novidade. Inclusive concordo que o precedente é perigoso, embora considere que a prisão em segunda instância talvez seja o precedente uma vez analisado o texto da constituição. Mas ele continua: “O cenário não é bom. Estarei em jejum, oração e torcendo pelo país.”

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Um procurador da República discorre sobre uma questão jurídica e espera que ela se resolva não com a análise de legislação do Estado laico em que vive, mas com oração, com jejum, com torcida. O absurdo que se torna a verdade de alguns está normalizado. Já não há coração que aguente. Não pode haver.

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Pouco tempo depois, o juiz federal Marcelo Bretas respondeu: “Caro irmão em Cristo, como cidadão brasileiro e temente a Deus, acompanhá-lo-ei em oração, em favor do nosso país e do nosso povo.” Assim, em alguns minutos, duas autoridades transformaram uma discussão jurídica absolutamente válida em uma disputa entre o bem e o mal. Por meio da narrativa, mistura-se religião ao judiciário – para além da questão do aborto. O absurdo que se torna a verdade de alguns é reforçado. Já não há coração inteiro. Não pode haver.

O colunista da Veja, Ricardo Noblat, solta o balão de ensaio e escreve que um “ministro muito próximo do presidente Michel Temer duvida que haja eleições em outubro próximo.” Já não há coração. Não pode haver. Os amigos de Michel Temer são presos e a resposta do Planalto é que não passa de conspiração. Já não há coração. Não pode haver. Tiro, relho, racismo, hipocrisia. Já não há coração. Não pode haver.

A desesperança me toma e, como já não há mais coração, penso que talvez aquele de quem não falamos o nome deva mesmo ser o próximo presidente do Brasil. Quem sabe assim o fundo do poço não chegue mais depressa e mais depressa podemos sair de lá.

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Mas não. Esse papo de que já não há mais coração é uma ilusão

A gente se ilude

Canta Alceu Valença e canto eu

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A letra que sugere uma desilusão amorosa é uma homenagem ao Clube Náutico Capibaribe, que por anos demoliu o coração do torcedor pernambucano. Mesmo diante de derrotas, porém, os aflitos sempre voltam para casa. É assim comigo. A desesperança é só da boca pra fora, é só um desabafo de um coração cansado.

Eu continuo acreditando nas pessoas, continuo acreditando na democracia representativa, no Estado de bem-estar social, na liberdade de expressão, religião e associação, nos Direitos Humanos, na igualdade.

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Coração bobo, bobo, bobo, bobo, bola, bola, bola de balão

A gente se ilude dizendo: já não há mais coração

 

Imagem: Pixabay

Voos Literários

Ocupações, (in)justiça e literatura

Flávia Cunha
20 de junho de 2017

Nos últimos dias, surgiu mais um gre-nal (ou fla-flu) nas redes sociais. A forma como ocorreu a reintegração de posse de um prédio público do governo do Estado, no centro de Porto Alegre, dividiu opiniões. Mesmo na mídia tradicional, não houve consenso, já que a ação da Brigada Militar foi considerada por muitos truculenta e inadequada e a decisão judicial abriu margem para que a operação ocorresse à noite, em plena véspera de feriado.

Vamos a um resumo dos fatos. Uma ação judicial determinou a desocupação de um imóvel que há cerca de dois anos abrigava moradores da chamada Ocupação Lanceiros Negros (uma referência aos negros livres que lutaram bravamente na Revolução Farroupilha). Vale ressalvar que o prédio já estava vazio há muito tempo quando essas famílias foram morar no local.

Mas o que realmente gerou questionamento foi a forma de atuação do poder público. A ocupação tinha crianças e até bebês. Como em uma situação assim não estava presente o Conselho Tutelar, por exemplo? Um comentarista de uma das maiores emissoras de rádio do Rio Grande do Sul considerou que princípios constitucionais foram violados, o que é gravíssimo.

O colunista de um grande jornal questionou porque um juiz recebe um polpudo auxílio-moradia enquanto  famílias de sem-teto ficam sem ter onde morar. A associação da categoria, em resposta, divulgou uma nota a respeito do comentário. Antes, a Ajuris havia lamentado a forma como ocorreu a reintegração de posse.

Em meio a esse cenário, recorro a Franz Kafka e seu célebre livro O Processo. A obra é uma grande crítica à injustiças e arbitrariedades do sistema. O julgamento de Josef K. por um tribunal misterioso demonstra a fragilidade do cidadão perante as autoridades, situação enfrentada muitas vezes no Brasil, principalmente pelos mais pobres.

O trecho a seguir, selecionado do início da obra, revela as incoerências do sistema, a partir da réplica de um dos guardas que aborda o protagonista, no início do processo:

Que é que o senhor quer? Julga que pode terminar rapidamente com o seu enorme processo, o seu maldito processo, só por se pôr a discutir conosco, que não passamos de guardas, questões de documentos de identificação e de mandados de captura? Nós somos apenas funcionários subalternos, que pouco ou nada percebem de documentos de identificação e que, neste caso, não têm outra missão a não ser a de vigiá-lo dez horas por dia. É para isso que nos pagam. No entanto, ainda somos capazes de compreender que as altas autoridades, ao serviço das quais estamos, antes de darem uma ordem de prisão, tiram minuciosas informações acerca da pessoa a ser detida e dos motivos da detenção. Assim, não há possibilidades de engano. As nossas autoridades, até onde eu conheço, e os meus conhecimentos não vão além das categorias mais baixas, não são daquelas que andam atrás das culpas das pessoas, mas, como diz a Lei, são forçadas pelos delitos a enviarem-nos a nós, os guardas.

Franz Kafka é considerado um dos grandes escritores de todos os tempos. Nascido em Praga, capital da atual República Checa, Kafka integra o canône literário alemão, por ter escrito nesse idioma. O livro O Processo é póstumo, tendo sido publicado em 1925, um ano depois de sua morte. Porém, permanece muito atual em seu nonsense, célebre na obra kafkiana também em outras obras, como A Metamorfose.

O livro O Processo foi para as telonas pela primeira vez na década de 1960, com direção do ícone do cinema Orson Welles e protagonizado por Anthony Perkins.