Voos Literários

Ocupações, (in)justiça e literatura

Flávia Cunha
20 de junho de 2017

Nos últimos dias, surgiu mais um gre-nal (ou fla-flu) nas redes sociais. A forma como ocorreu a reintegração de posse de um prédio público do governo do Estado, no centro de Porto Alegre, dividiu opiniões. Mesmo na mídia tradicional, não houve consenso, já que a ação da Brigada Militar foi considerada por muitos truculenta e inadequada e a decisão judicial abriu margem para que a operação ocorresse à noite, em plena véspera de feriado.

Vamos a um resumo dos fatos. Uma ação judicial determinou a desocupação de um imóvel que há cerca de dois anos abrigava moradores da chamada Ocupação Lanceiros Negros (uma referência aos negros livres que lutaram bravamente na Revolução Farroupilha). Vale ressalvar que o prédio já estava vazio há muito tempo quando essas famílias foram morar no local.

Mas o que realmente gerou questionamento foi a forma de atuação do poder público. A ocupação tinha crianças e até bebês. Como em uma situação assim não estava presente o Conselho Tutelar, por exemplo? Um comentarista de uma das maiores emissoras de rádio do Rio Grande do Sul considerou que princípios constitucionais foram violados, o que é gravíssimo.

O colunista de um grande jornal questionou porque um juiz recebe um polpudo auxílio-moradia enquanto  famílias de sem-teto ficam sem ter onde morar. A associação da categoria, em resposta, divulgou uma nota a respeito do comentário. Antes, a Ajuris havia lamentado a forma como ocorreu a reintegração de posse.

Em meio a esse cenário, recorro a Franz Kafka e seu célebre livro O Processo. A obra é uma grande crítica à injustiças e arbitrariedades do sistema. O julgamento de Josef K. por um tribunal misterioso demonstra a fragilidade do cidadão perante as autoridades, situação enfrentada muitas vezes no Brasil, principalmente pelos mais pobres.

O trecho a seguir, selecionado do início da obra, revela as incoerências do sistema, a partir da réplica de um dos guardas que aborda o protagonista, no início do processo:

Que é que o senhor quer? Julga que pode terminar rapidamente com o seu enorme processo, o seu maldito processo, só por se pôr a discutir conosco, que não passamos de guardas, questões de documentos de identificação e de mandados de captura? Nós somos apenas funcionários subalternos, que pouco ou nada percebem de documentos de identificação e que, neste caso, não têm outra missão a não ser a de vigiá-lo dez horas por dia. É para isso que nos pagam. No entanto, ainda somos capazes de compreender que as altas autoridades, ao serviço das quais estamos, antes de darem uma ordem de prisão, tiram minuciosas informações acerca da pessoa a ser detida e dos motivos da detenção. Assim, não há possibilidades de engano. As nossas autoridades, até onde eu conheço, e os meus conhecimentos não vão além das categorias mais baixas, não são daquelas que andam atrás das culpas das pessoas, mas, como diz a Lei, são forçadas pelos delitos a enviarem-nos a nós, os guardas.

Franz Kafka é considerado um dos grandes escritores de todos os tempos. Nascido em Praga, capital da atual República Checa, Kafka integra o canône literário alemão, por ter escrito nesse idioma. O livro O Processo é póstumo, tendo sido publicado em 1925, um ano depois de sua morte. Porém, permanece muito atual em seu nonsense, célebre na obra kafkiana também em outras obras, como A Metamorfose.

O livro O Processo foi para as telonas pela primeira vez na década de 1960, com direção do ícone do cinema Orson Welles e protagonizado por Anthony Perkins.