Voos Literários

Especial Dia do Trabalho – Saramago, Kafka e Caio F.

Flávia Cunha
1 de maio de 2018

Escritores são, em geral, seres inconformados com a realidade. Então, não foi difícil selecionar 3 livros para refletirmos neste Dia do Trabalho, livros que abordam, de alguma forma, o universo do trabalho e suas injustiças e incoerências. Os autores escolhidos são reconhecidos pela forma perspicaz de trazer para a ficção idiossincrasias do mundo real. Vamos aos trechos de obras de José Saramago, Franz Kafka e Caio Fernando Abreu.

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“A distribuição das tarefas pelo conjunto dos funcionários satisfaz uma regra simples, a de que os elementos de cada categoria têm o dever de executar todo o trabalho que lhes seja possível, de modo a que só uma mínima parte dele tenha de passar à categoria seguinte. Isto significa que os auxiliares de escrita são obrigados a trabalhar sem parar de manhã à noite, enquanto os oficiais o fazem de vez em quando, os subchefes só muito de longe em longe, o conservador quase nunca.”

José Saramago – Todos os Nomes, o trecho selecionado fala do funcionamento de um grande cartório, chamado na história de Conservatória Geral do Registo Civil. O conservador citado no texto é o grande chefe, que não trabalha ‘quase nunca’.  

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“Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto.

(….)

Bem, suponhamos que dizia que estava doente? Mas isso seria muito desagradável e pareceria suspeito, porque, durante cinco anos de emprego, nunca tinha estado doente. O próprio patrão certamente iria lá a casa com o médico da Previdência, repreenderia os pais pela preguiça do filho e poria de parte todas as desculpas, recorrendo ao médico da Previdência, que, evidentemente, considerava toda a humanidade um bando de falsos doentes perfeitamente saudáveis.”

Franz Kafka – A Metamorfose. Nesse clássico da Literatura Mundial, o protagonista, mesmo passando por uma incrível transformação corpórea, tem na ausência forçada ao trabalho sua principal angústia. Irônico, no mínimo.

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“Pense nesse milagre, homem. Singelo, quase insignificante na sua simplicidade, o pequeno milagre capaz de trazer alguma paz àquela série de solavancos sem rumo nem ritmo que eu, com certa complacência e nenhuma originalidade, estava habituado a chamar de minha vida, tinha um nome. Chamava-se ? um emprego.

(…)

Verdade que só um completo idiota ou alguém totalmente inexperiente sentiria, nem digo êxtase, mas qualquer espécie de animação por ter conseguido um trabalhinho de repórter no Diário da Cidade, talvez o pior jornal do mundo. Acho que ainda não tinha me transformado num idiota, não completamente pelo menos.”

Caio Fernando Abreu – Por Onde Andará Dulce Veiga. Caio F. usa de todo seu sarcasmo para descrever a sensação do protagonista desse romance ao conseguir um emprego. O trabalho de repórter vai resolver, ainda que de forma precária, a difícil situação financeira enfrentada pelo personagem. A crítica do escritor é embasada na realidade. Caio Fernando Abreu trabalhou durante muito tempo para sobreviver como jornalista.

 

Voos Literários

Ocupações, (in)justiça e literatura

Flávia Cunha
20 de junho de 2017

Nos últimos dias, surgiu mais um gre-nal (ou fla-flu) nas redes sociais. A forma como ocorreu a reintegração de posse de um prédio público do governo do Estado, no centro de Porto Alegre, dividiu opiniões. Mesmo na mídia tradicional, não houve consenso, já que a ação da Brigada Militar foi considerada por muitos truculenta e inadequada e a decisão judicial abriu margem para que a operação ocorresse à noite, em plena véspera de feriado.

Vamos a um resumo dos fatos. Uma ação judicial determinou a desocupação de um imóvel que há cerca de dois anos abrigava moradores da chamada Ocupação Lanceiros Negros (uma referência aos negros livres que lutaram bravamente na Revolução Farroupilha). Vale ressalvar que o prédio já estava vazio há muito tempo quando essas famílias foram morar no local.

Mas o que realmente gerou questionamento foi a forma de atuação do poder público. A ocupação tinha crianças e até bebês. Como em uma situação assim não estava presente o Conselho Tutelar, por exemplo? Um comentarista de uma das maiores emissoras de rádio do Rio Grande do Sul considerou que princípios constitucionais foram violados, o que é gravíssimo.

O colunista de um grande jornal questionou porque um juiz recebe um polpudo auxílio-moradia enquanto  famílias de sem-teto ficam sem ter onde morar. A associação da categoria, em resposta, divulgou uma nota a respeito do comentário. Antes, a Ajuris havia lamentado a forma como ocorreu a reintegração de posse.

Em meio a esse cenário, recorro a Franz Kafka e seu célebre livro O Processo. A obra é uma grande crítica à injustiças e arbitrariedades do sistema. O julgamento de Josef K. por um tribunal misterioso demonstra a fragilidade do cidadão perante as autoridades, situação enfrentada muitas vezes no Brasil, principalmente pelos mais pobres.

O trecho a seguir, selecionado do início da obra, revela as incoerências do sistema, a partir da réplica de um dos guardas que aborda o protagonista, no início do processo:

Que é que o senhor quer? Julga que pode terminar rapidamente com o seu enorme processo, o seu maldito processo, só por se pôr a discutir conosco, que não passamos de guardas, questões de documentos de identificação e de mandados de captura? Nós somos apenas funcionários subalternos, que pouco ou nada percebem de documentos de identificação e que, neste caso, não têm outra missão a não ser a de vigiá-lo dez horas por dia. É para isso que nos pagam. No entanto, ainda somos capazes de compreender que as altas autoridades, ao serviço das quais estamos, antes de darem uma ordem de prisão, tiram minuciosas informações acerca da pessoa a ser detida e dos motivos da detenção. Assim, não há possibilidades de engano. As nossas autoridades, até onde eu conheço, e os meus conhecimentos não vão além das categorias mais baixas, não são daquelas que andam atrás das culpas das pessoas, mas, como diz a Lei, são forçadas pelos delitos a enviarem-nos a nós, os guardas.

Franz Kafka é considerado um dos grandes escritores de todos os tempos. Nascido em Praga, capital da atual República Checa, Kafka integra o canône literário alemão, por ter escrito nesse idioma. O livro O Processo é póstumo, tendo sido publicado em 1925, um ano depois de sua morte. Porém, permanece muito atual em seu nonsense, célebre na obra kafkiana também em outras obras, como A Metamorfose.

O livro O Processo foi para as telonas pela primeira vez na década de 1960, com direção do ícone do cinema Orson Welles e protagonizado por Anthony Perkins.